quarta-feira, 3 de maio de 2017

PODE A DEMOCRACIA RECUAR?




(As questões económicas do nacionalismo populista, de direita e de esquerda, têm dominado o centro de todas as preocupações, talvez seja tempo de prestarmos mais atenção ao que está a mudar em termos de apreço pelos valores da democracia, há literatura para isso…)

Numa reportagem que a Antena 1 transmitia de França em plena campanha da Frente Nacional e de um perigoso convencimento que grassa por aquelas hostes, um interveniente, devoto de Marine LePen, esgrimia sucintamente: “Marine c’est la France, Macron c’est la finance”. Um militante de extrema-esquerda em crise de lucidez  diria mais ou menos o seguinte: “Marine c’est le diable, Macron c’est la finance, comment on peut choisir?”. Na primeira fórmula, sucinta, de alguém que certamente irá votar Le Pen com o manto do patriotismo nele enrolado como bandeira, está condensada toda a deriva nacionalista, vendida como ressurgimento do patriotismo. Num artigo que escreveu para o Público há duas ou três semanas, Pacheco Pereira dissertava sobre as cavernosas tradições menos nobres que não foram erradicadas da França mais profunda para explicar muito do apoio que a Frente Nacional vai assegurando por largas franjas do território francês. As raízes económicas do ressurgimento do nacionalismo populista têm sido bastante invocadas e também neste blogue se dedicou tempo a essa matéria. Menos atenção tem sido concedida à própria evolução do sistema de valores, caracterizados segundo grupos transversais de populações inquiridos em diferentes momentos do tempo. E dentro da evolução do sistema de valores devemos estar atentos aos valores de identificação e apreço do modelo democrático.

Por via da sugestão de um artigo de David Alexander ex-conselheiro do Primeiro-ministro australiano John Howard, dei com um artigo de ciência política de 2016, publicado no Journal of Democracy de julho, centrado na exploração de uma fonte, pouco invocada em Portugal, o World Value Surveys. O artigo chama-se “The Democratic Disconnect”, publicado ao abrigo de um tema geral designado de The Danger of Deconsolidation, de autoria e Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk. Os autores estão essencialmente interessados em analisar a evolução de valores que permitam medir a legitimidade do regime e não a dos governos. Essa pesquisa é feita em função de indicadores que permitam aferir da defesa pelos cidadãos do sistema democrático como um todo, do seu apoio a instituições nucleares da democracia liberal como os direitos cívicos, a propensão para desenvolver as suas causas políticas no interior do sistema e a sua abertura ou tolerância a alternativas autoritárias de governação.

O que a análise dos surveys mostra é que não estamos apenas perante uma crescente animosidade relativamente a lideranças políticas ou políticos em geral. A propensão para apoiar a legitimidade democrática está ela própria em queda e vá lá saber-se se a primeira influencia a segunda, provavelmente sim. É claro que a memória das gerações da guerra mantém a aprovação da legitimidade democrática ainda em valores elevados. Mas o que é surpreendente é o menor apoio à legitimidade democrática dos jovens de hoje face aos jovens de períodos anteriores. Uma das formas através das quais se concretiza a degradação das condições de aceitação da democracia não é tanto a do critério eleições, mas antes a menor propensão para se identificar com alguns valores liberais democráticos como a defesa dos direitos cívicos. Isso traduz-se, por exemplo, pelo menos nos EUA na menor propensão para hoje os jovens participarem em ações de protesto cívico e político.

E talvez o facto mais preocupante tem vindo a aumentar a propensão para tolerar alternativas autoritárias, por exemplo a crescente percentagem de inquiridos que aceitaria soluções militares de governo, mais visivelmente em estratos superiores de rendimento da sociedade e nos jovens.

Daí os autores falarem de riscos de desconsolidação democrática que não podem ser interpretados como sinais cataclísmicos de destruição a curto prazo da democracia, mas que minam os fundamentos das sociedades democráticas e tendem a explicar alguns comportamentos que consideraríamos apenas aberrantes.

Os tempos vão difíceis e vale a pena integrar estas dimensões para tentar perceber o que nos vai cercando. A escolha não é entre a França e a finança, mas entre a democracia, mesmo tolhida por esta evolução de valores, e a desconsolidação democrática a todo o gás. Por muito que custe à miopia de um certa extrema-esquerda, que de extremo tem sobretudo a miopia em estado avançado.

Sem comentários:

Enviar um comentário