(As questões económicas
do nacionalismo populista, de direita e de esquerda, têm dominado o centro de todas
as preocupações, talvez
seja tempo de prestarmos mais atenção ao que está a mudar em termos de apreço
pelos valores da democracia, há literatura para isso…)
Numa reportagem que a Antena 1 transmitia de França em plena campanha da Frente
Nacional e de um perigoso convencimento que grassa por aquelas hostes, um interveniente,
devoto de Marine LePen, esgrimia sucintamente: “Marine c’est la France, Macron c’est
la finance”. Um militante de extrema-esquerda em crise de lucidez diria mais ou menos o seguinte: “Marine
c’est le diable, Macron c’est la finance, comment on peut choisir?”. Na
primeira fórmula, sucinta, de alguém que certamente irá votar Le Pen com o
manto do patriotismo nele enrolado como bandeira, está condensada toda a deriva
nacionalista, vendida como ressurgimento do patriotismo. Num artigo que
escreveu para o Público há duas ou três semanas, Pacheco Pereira dissertava
sobre as cavernosas tradições menos nobres que não foram erradicadas da França
mais profunda para explicar muito do apoio que a Frente Nacional vai
assegurando por largas franjas do território francês. As raízes económicas do
ressurgimento do nacionalismo populista têm sido bastante invocadas e também
neste blogue se dedicou tempo a essa matéria. Menos atenção tem sido concedida à
própria evolução do sistema de valores, caracterizados segundo grupos transversais
de populações inquiridos em diferentes momentos do tempo. E dentro da evolução
do sistema de valores devemos estar atentos aos valores de identificação e
apreço do modelo democrático.
Por via da sugestão de um artigo de David Alexander ex-conselheiro do Primeiro-ministro
australiano John Howard, dei com um artigo de ciência política de 2016,
publicado no Journal of Democracy de
julho, centrado na exploração de uma fonte, pouco invocada em Portugal, o World
Value Surveys. O artigo chama-se “The Democratic Disconnect”, publicado ao abrigo de um tema geral designado de The Danger of Deconsolidation, de autoria
e Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk. Os autores estão essencialmente interessados
em analisar a evolução de valores que permitam medir a legitimidade do regime e
não a dos governos. Essa pesquisa é feita em função de indicadores que permitam
aferir da defesa pelos cidadãos do sistema democrático como um todo, do seu
apoio a instituições nucleares da democracia liberal como os direitos cívicos, a
propensão para desenvolver as suas causas políticas no interior do sistema e a
sua abertura ou tolerância a alternativas autoritárias de governação.
O que a análise dos surveys mostra é que não estamos apenas perante uma crescente
animosidade relativamente a lideranças políticas ou políticos em geral. A
propensão para apoiar a legitimidade democrática está ela própria em queda e vá
lá saber-se se a primeira influencia a segunda, provavelmente sim. É claro que
a memória das gerações da guerra mantém a aprovação da legitimidade democrática
ainda em valores elevados. Mas o que é surpreendente é o menor apoio à legitimidade
democrática dos jovens de hoje face aos jovens de períodos anteriores. Uma das
formas através das quais se concretiza a degradação das condições de aceitação
da democracia não é tanto a do critério eleições, mas antes a menor propensão
para se identificar com alguns valores liberais democráticos como a defesa dos
direitos cívicos. Isso traduz-se, por exemplo, pelo menos nos EUA na menor
propensão para hoje os jovens participarem em ações de protesto cívico e político.
E talvez o facto mais preocupante tem vindo a aumentar a propensão para
tolerar alternativas autoritárias, por exemplo a crescente percentagem de
inquiridos que aceitaria soluções militares de governo, mais visivelmente em
estratos superiores de rendimento da sociedade e nos jovens.
Daí os autores falarem de riscos de desconsolidação democrática que não
podem ser interpretados como sinais cataclísmicos de destruição a curto prazo da
democracia, mas que minam os fundamentos das sociedades democráticas e tendem a
explicar alguns comportamentos que consideraríamos apenas aberrantes.
Os tempos vão difíceis e vale a pena integrar estas dimensões para tentar
perceber o que nos vai cercando. A escolha não é entre a França e a finança,
mas entre a democracia, mesmo tolhida por esta evolução de valores, e a desconsolidação
democrática a todo o gás. Por muito que custe à miopia de um certa extrema-esquerda,
que de extremo tem sobretudo a miopia em estado avançado.
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