domingo, 7 de maio de 2017

TRADIÇÃO




(Num fim de semana de decisões cruciais lá pela França, por coincidência ou talvez não a minha noite de sábado ficou marcada por questões de tradição, mas também de sinais como vai o país …)

Entre as cerca de 10 pessoas que viam na intimista sala 2 do novo Trindade o Fátima de João Canijo e a vasta aglomeração de jovens de capa negra que enchiam toda a avenida dos Aliados e espaços contíguos estabelecia-se uma espécie e laço invisível. Afinal, estávamos envolvidos em duas tradições, que se vão renovando sabemos lá como.

Na tela tínhamos um Canijo contido mas pujante. A visão por dentro de uma peregrinação de mulheres de Vinhais é um documento de grande força, sobretudo pelo trabalho feito com um naipe de mulheres artistas de grande disponibilidade para a identificação com um conjunto de mulheres de um interior profundo em declínio mas em mutação, conforme os diferentes perfis das mulheres peregrinas o demonstram. O filme é também um documento sobre os traços de mudança que vão acontecendo por aquele tipo de territórios, com algumas imagens de grande impacto. Os territórios esventrados por IP e IC’s que vão mantendo com as origens uma difícil legibilidade, com péssima integração na estrutura viária existente. Aquele contraponto magnífico entre a peregrinação e o ambiente infernal da estrada, com camiões de grande porte que parece que esmagam a vulnerabilidade daquelas mulheres. A estrutura informal da mulher “gestora” D. Isaura que organiza a peregrinação em condições que ilustram magnificamente a fragilidade de alguns dos nossos tecidos sociais por paragens daquele tipo. A contínua tensão que se vai cavando num grupo com aquelas características com um magnífico José Martins que surge vindo sabe-se lá de onde para ameaçar aquele grupo e inventar atalhos que não estão na programação da Dona Isaura. A força espantosa dos nus impiedosos no banho de meio percurso que, alguns poderão achar excedentário, mas que tem uma força enorme para nos apresentar a vulnerabilidade cavada pelo tempo das suas vidas daquelas mulheres. Uma personagem enigmática, a professora, que creio não ter compreendido bem na lógica daquele grupo. E uma integração final da peregrinação na cerimónia da procissão de velas, também contida. 


As tradições passam pelo filme. Nada é dito sobre o que leva aquelas mulheres a um sacrifício tão violento. Há um respeito absoluto pela privacidade desses motivos. Fica no ar a questão de saber se é mais tradição do que devoção, ou simplesmente o seu contrário. Mas um filme que se recomenda sobretudo pela coragem da contenção, as imagens do país em mudança e um trabalho de atores notável com uma bela matéria-prima.

Na Praça era uma outra tradição, a das capas negra agora misturada com uma outra forma de estar na rua. Uma mole imensa, o Portugal jovem qualificado, talvez condenado à diáspora, não sabemos se trazendo a energia de mudança de que tanto precisamos.

Afinal, separados por umas curtas centenas de metros, duas dimensões do país em que temos de nos rever, no caso da Praça perante a massa anónima de turistas espantados com toda aquela encenação.

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