(Para lá da
querela entre o ministro das Finanças e o governador do Banco de Portugal que o
país bem dispensa e que os próprios deveriam resolver para bem da diferença
entre as questões essenciais e de circunstância, existe matéria de discussão bem mais interessante
do que todos os motivos do mundo que possam justificar as referidas picardias…)
A comunicação social tem concedido ampla cobertura
à presumida querela entre o ministro das Finanças e o Governador do Banco de
Portugal, cuja marcha tem tido diferentes momentos de revelação. Hoje, como é
conhecido, essa comunicação social está mais interessada em explorar as margens
das querelas do que debater as matérias que nelas estejam implícitas. Temos a
comunicação social que compramos ou consumimos, por isso não nos podemos
queixar de algo para a qual a procura contribui, apesar de alguma dessa comunicação
social estar de rastos. Mas por detrás das minudências de uma picardia não
resolvida, existe regra geral matéria bem mais relevante e à qual deveríamos prestar
mais atenção.
Assim, por exemplo, tem passado despercebido
que, para lá dos putativos remoques do conflito que podem encontrar-se no pingue-pongue
de discursos públicos e oficiais, vá lá saber-se o que se passa nos corredores
do poder, está em consulta pública uma coisa que se chama “Proposta
de reforma da supervisão financeira em Portugal”, produto de um
grupo de trabalho apresentado como independente liderado por Carlos Tavares,
que ocupou até há pouco tempo a presidência da CMVM. Um pouco perdido no sítio
WEB do GPEARI – Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações
Internacionais do Ministério das Finanças (http://www.gpeari.min-financas.pt/consulta-publica/relatorio-do-grupo-de-trabalho-para-a-reforma-da) e sem visibilidade no
Portal do Governo, o que não me parece a melhor maneira de suscitar uma
consulta pública, esta proposta de reforma constitui, em meu modesto entender,
o epicentro do mais recente afrontamento entre ministro das Finanças e governador
do Banco de Portugal. Não vou explorar o lado picante da decisão do Governo (Mário
Centeno) de convidar para a liderança do grupo de trabalho uma personalidade (Carlos
Tavares) que é conhecido manter com o governador do Banco de Portugal uma relação
que não é perfeita e que vem de presidir a uma outra entidade reguladora. Não
vale a pena aqui recordar as peripécias de todo o processo que conduziu à
resolução do BES e a perceção que o público em geral formou de que a comunicação
entre os dois reguladores (Banco de Portugal e CMVM) não foi perfeita.
Na intervenção de Mário Centeno de 18 de
setembro de 2017 que apresentou o relatório do grupo de trabalho à consulta pública,
pode ler-se:
“(…) A estabilidade financeira é uma
responsabilidade do Estado e é também o principal objetivo dos sistemas de
supervisão financeira, para o qual todas as autoridades de supervisão devem
contribuir na medida das suas funções e responsabilidades.
Cabe ao Governo organizar o sistema nacional
de supervisão financeira por forma a assegurar a maior eficiência e eficácia no
cumprimento do objetivo da estabilidade financeira.
No atual sistema de supervisão há
entidades que decidem sozinhas sobre matérias com implicação sobre as contas públicas.
Esta situação deve ser corrigida.”
Mais recentemente, já depois de se ter
registado a troca de galhardetes entre as duas personalidades, o governador tomou
de novo a palavra na Conferência sobre Gestão de Riscos nos Bancos Centrais, não
propriamente no âmbito da intervenção, apuradíssima e rigorosa no plano técnico
como é habitual em Carlos Costa, mas na fase de apresentação de Yves Mersch, atualmente
responsável pelo departamento jurídico do Banco Central. Citemos:
“(…) como responsável pelo departamento jurídico
ele é um nosso importante aliado nos bancos centrais nacionais para preservar a
nossa independência, onde há tentações para reduzir essa independência. Para
ser claro, a tentação de reduzir a independência dos bancos centrais não é
apenas uma característica do que poderíamos dizer os países do Sul. Há países Nórdicos
em que essa tentação também existe. Isso significa que onde quer que o tesouro
esteja, haverá sempre a tentação para o apropriar. E isso não é apenas uma
questão dos Portugueses ou de outros: ponham o dinheiro em algum lado e a tentação
aparecerá, mais tarde ou mais cedo, mas aparecerá.”
Não vou agora analisar em pormenor a proposta
de reforma em consulta pública, isso fica para uma outra oportunidade após leitura
mais madura do documento.
Por agora e sem tomar posição fundamentada
sobre a matéria, não posso deixar de referir que o paradigma da independência do
banco central não é algo de intocável. A independência do banco central faz
parte de um paradigma de política monetária que o pós-crise de 2007-2008 tem
vindo a questionar, envolvendo um largo espectro de economistas em que pelo menos
alguns deles não podem ser considerados perigosos fanáticos do intervencionismo
governamental. Isto não significa que não possamos até chegar à conclusão de
que apesar de toda a crítica ao paradigma de política monetária de que a independência
não deva ser preservada. Por isso, a metáfora das tentações não me parece adequada,
tentações teremos todos até os reguladores e os santos não desceram à terra. O
que me interessa é saber se o mandato da estabilidade nominal que orienta o BCE
e consequentemente os bancos centrais nacionais é o mais adequado para os
tempos que vivemos. E não posso também ignorar que o mix de política fiscal e
de política monetária tem hoje um peso que não tinha nos tempos da formação do
paradigma da independência do banco central.
Ora, que me desculpem os visados, mas esse
debate é bem mais importante do que a discussão dos motivos de um relacionamento
mal resolvido, vá lá saber-se porquê.
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