segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

OLHA O BALÃO!

 


(O mundo parece preso por um fio delicado e frágil. À mínima disrupção da natureza, e neste caso estamos perante um abalo sísmico de grandes proporções, a vulnerabilidade das condições económicas e sociais nas zonas mais desfavorecidas do globo gera catástrofes gigantescas com efeitos devastadores sobre os mais pobres. Zonas da Turquia e da Síria são agora os territórios atingidos, mas outros exemplos irão suceder-se, confirmando esta trágica correlação da grande maioria dos desastres naturais incidirem em zonas pobres e vulneráveis. Praticamente ao mesmo tempo, o mundo ficou suspenso de um incidente com um balão de origem chinesa que sobrevoava estranhamente os EUA e que acabou por ser abatido, associado a um ato de espionagem chinesa sobre território americano. São vulnerabilidades de natureza bastante diversa que estão aqui em causa. Do terramoto na Turquia e Síria não vou falar por questões de pudor e de respeito para com a tragédia dos outros. Quanto à história do balão abatido, o caso merece reflexão, porque ele protagoniza mais uma manifestação da fragilidade instável em que o mundo se encontra, que alguns analistas já não hesitam em classificar de Guerra Fria 2.0.

Com a guerra da Ucrânia num ponto em que os desenvolvimentos de terreno sugerem que o otimismo ocidental em relação a uma derrota russa suscetível de obrigar Putin a recuar para não perder a face foi exagerado e partiu de uma má avaliação, o ambiente mundial é obviamente de grande instabilidade. São conhecidos na história os eventos que precipitaram a propagação incendiária de conflitos e, por isso, com os nervos à flor da pele e presos pelo escalamento possível do conflito, o episódio do balão chinês sobre os EUA não podia deixar de causar a emergência de toda a série de interpretações, das mais pessimístico-catastrofistas às mais elaboradas antecipações sobre o futuro das relações sino-americanas. Que o caso é estranho não tenho dúvidas disso, até porque espanta que um regime como o de Pequim se deixa envolver numa manobra algo ingénua, embora também possa admitir que se tratou de uma perda de controlo sobre um dispositivo pouco fiável, face à possível aleatoriedade dos ventos.

Com o estado das relações entre o ocidente, mais propriamente os EUA e a Europa, e a Rússia no estado lastimável em que se encontram, uma grande parte das condições de desanuviamento possível no mundo dependem fortemente do modo como evoluir a crise EUA-China. As relações já estiveram mais crispadas com Taiwan à mistura e nos últimos tempos o debate sobre essa evolução ganhou mais abertura e cenários possíveis com alguns sinais de que o PC chinês não está propriamente interessado no escalamento da crise. No passado houve incidentes mais graves do que este entre os dois países e afirma quem sabe que é frequente a invasão de satélites americanos e chineses do território do outro país.

O cada vez mais perspicaz Noah Smith não hesita em considerar que se vive já uma espécie de Guerra Fria 2.0 entre as duas potências, já que a Rússia se meteu por outros caminhos, provavelmente mais ínvios e perigosos do que uma “simples” Guerra Fria. Por estes tempos têm crescido nos EUA as opiniões que consideram que a evolução da China para o estatuto de maior potência económica do mundo será algo de imparável e apenas uma questão de tempo. Penso entretanto que essas teses subvalorizam as grandes questões da transição económica chinesa, sobretudo em contexto de inverno demográfico de grandes proporções e para o qual a recente eliminação das limitações ao número de filhos por casal constituir já uma medida tardia e incapaz de amenizar tal inverno.

Penso que Smith tem razão quando situa a evolução do conflito político-comercial entre os EUA e a China a partir do poder de influência que os interesses económicos americanos privados irão exercer para uma evolução ao sabor das suas conveniências. É necessário relembrar que o tempo do investimento direto estrangeiro e produtivo na China já acabou, pois o modelo económico já não necessita desse impulso e orienta-se hoje por outros caminhos. Smith recupera para o efeito umas declarações do antigo secretário de Estado do Tesouro americano, Henry Paulson, e hoje chefe máximo da Goldman Sachs, que se insurge em torno dos perigos reais enfrentados pela economia americana por força desse “decoupling” forçado que a crise das relações sino-americanas poderá determinar. Num cenário como o de hoje, em que o investimento direto estrangeiro produtivo não é já o motor dessas relações, a influência da chamada “indústria financeira” americana poderá ser determinante e será nessa base que o chefe da Goldman Sachs se pronunciou. Os números apresentados por Smith para o comportamento dos fluxos de IDE em percentagem do PIB chinês descrevem uma descida considerável do peso desse modo de financiamento da economia chinesa. Aliás, as grandes multinacionais estão a mover as suas cadeias de produção para fora da China, sugerindo conformidade com a descida do peso do IDE. Por outro lado, abre-se todo o mundo dos chamados investimentos de carteira (portfolio investment) em que a indústria financeira americana dá cartas e no qual a economia europeia é bem menos apetrechada. 

À luz deste contexto, o episódio do balão não tem qualquer explicação possível, sobretudo do ponto de vista do racional chinês. Por agora, o esticão de corda ficou-se aparentemente pela suspensão da viagem do secretário de Estado Anthony Blinken. As autoridades chinesas criticaram, mas no troppo e talvez nunca mais venhamos a saber quais as razões para tão estranho acontecimento.

Mas mais importante do que isso será acompanhar o modo como vai evoluir o relacionamento económico sino-americano. Se a intuição de Noah Smith estiver certa, assistiremos nos próximos tempos a desenvolvimentos nessa matéria. Entretanto, para mal das nossas indústrias exportadoras, prossegue a tentativa de Biden de fazer a indústria americana recuperar algumas posições em termos de produção nacional.

 

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