terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A PERCEÇÃO ANTECIPADA DA DESTRUIÇÃO TOTAL

 

(O jornalista Lorenzo Tondo, correspondente do Guardian, teve recentemente a experiência de trabalho de ver localmente a devastação provocada pela invasão russa da Ucrânia e a tragédia infraestrutural e humana provocada pelo terramoto na Turquia e na Síria. Devemos estar perante uma experiência reservada aos mais resistentes, pois não consigo imaginar experiência tão tenebrosa como esta comparação vivida localmente. Os dois acontecimentos, embora de origem diversa, o primeiro determinado pela destemperada ambição de reescrever a história e o segundo resultante de um fenómeno-risco natural ampliado pela incompetência e ganância humanas (a construção na Turquia) e pelos resultados devastadores de uma outra guerra (a Síria), poderiam representar uma antecipação ficcionada do caos que nos espera se as forças de destruição larvares no planeta não forem contidas e controladas. O problema é que não se trata de ficção mas de realidade pura e dura.

O jornalista do Guardian atreve-se a uma comparação, salientando o regresso uma vez mais da violência da guerra, na qual a aparente impreparação russa e a errada perceção quanto ao êxito da operação estarão a levar a violência aos mais altos níveis da desumanidade, à qual muito dificilmente os ucranianos não responderão na mesma moeda. Já no terramoto com epicentro no sul da Turquia, existe efetivamente um efeito surpresa que multiplica a escala dos danos para valores inimagináveis para o pensamento humano. A razão para que a devastação seja claramente maior na Turquia do que na Síria tem uma dimensão tenebrosa. Ela não só não foi similar na Síria porque a guerra contra o Estado Islâmico destruiu praticamente tudo que havia para destruir. Mas o que é trágico na Síria é que a devastação acontece num contexto de pobreza que ultrapassa todos os nossos referenciais de medida. O jornalista do Guardian refere que a primeira reação da população ainda residente nas zonas de impacto sírias foi que mais um bombardeamento ou ataque aéreo estava a ser consumado, o que diz bem da tragédia das coisas. Aliás, foram registados posteriormente ao abalo sísmico novos ataques e bombardeamentos. E obviamente na Turquia estamos a assistir à destruição de cidades inteiras, que caem como baralhos de carta montados por gente imprevidente. A massa para destruir era infinitamente mais elevada.

E nem perante uma devastação como esta, as populações turcas e sírias estão a ser igualmente tratadas. Os felizes sobreviventes turcos estão em deslocação para outras paragens, enquanto as populações sírias que foram apanhadas pelo conflito estão presas à zona de devastação.

Talvez a opinião pública europeia e mundial devesse não concentrar a sua humanidade e ajuda na Ucrânia e dedicar alguma atenção mais à tragédia humanitária que a população síria está neste momento a suportar, numa espécie de genocídio consentido ou pelo menos em relação à qual a indiferença já está enraizada.

O projeto europeu atravessa hoje um conjunto de frentes de “combate” relativamente às quais ainda não compreendi se estão assumidas ou se a Comissão e o Conselho vogam ao sabor da pressão mediática do momento:

  • A Ucrânia é obviamente um desafio enorme de posicionamento geopolítico, o qual transcende a putativa unanimidade na ajuda;
  •  A crise energética que bateu forte na União cola-se à necessidade de resposta ao “Big, Green and Mean” dos EUA na sequência do Inflation Reduction Act de Biden; existe aqui um vasto campo para a chamada Mission Economy de Mariana Mazzucato, mas para além da obra de Mazzucato, o Green Deal está ainda longe de representar a Missão que possa equivaler ao programa dos americanos;
  •  A frente humanitária está ao rubro e a União continua hesitante entre atacar o problema na origem, ajudando os países de origem dos refugiados a construir processos de desenvolvimento que mitiguem as migrações, ou vencer as resistências internas a uma maior abertura e integração;
  •  E a frente da defesa da democracia também não pode ser esquecida, pois as ameaças e derivas já são de respeito.

Os links para as duas reportagens do Guardian estão aqui e aqui.

 

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