quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

PARA LÁ DO CANAL, CONFUSÃO GERAL

 

(Até aqui, o acompanhamento da evolução da situação política no Reino Unido tem sido crucial para compreender, num contexto concreto, a inépcia do liberalismo conservador. Como o implacável observador Simon Wren-Lewis o descreve com minúcia e rigor, o desatino conservador é algo que não pode ser confundido com a inconsequente e fugaz passagem de Liz Truss por Downing Street. É mais do que isso e representa a falência de um modelo que vem desde as “habilidades” de Cameron e Osborne. Não conheço por estes dias pior serviço à causa liberal do que o desmando conservador e por isso os nossos azougados membros da IL nem se atrevem a olhar para o Reino Unido. Mas, por estranho que vos possa parecer, a agitação para lá do canal não se esgota no desatino dos conservadores. O Labour, candidato natural a uma alternância democrática, também não vive internamente melhores dias, numa espécie de síndrome de pavor perante a ida às urnas. Para complicar tudo isto e colocar o Reino Unido, cada vez mais desunido, em ebulição total, até a europeísta Escócia entrou também em convulsão. A primeira-ministra Nicola Sturgeon resignou, manifestando a sua convicta impossibilidade de dirigir os destinos escoceses à luz do seu princípio vital de que a Escócia se deveria desligar do Reino Unido e a assumir de vez a sua vocação europeia.)

Toda esta confusão pode ser entendida como o resultado último da desastrada construção política que o Brexit representou, desde a estúpida ideia de Cameron de caminhar para o referendo com o populismo a crescer até às malabarices negociais de Boris Johnson que deixou ainda mais atado o nó.

Quanto ao desatino conservador, Simon Wren-Lewis é especialmente arguto (link aqui)quando identifica o problema central – os conservadores têm sido completamente incapazes de aprender com os seus gigantescos erros. Quanto maior e mais evidente o erro, mais provável seria que o apelo à aprendizagem fosse mais forte. A obsessão pelo slogan “we have to cut taxes and go for growth” já entrou pelo domínio da patologia adentro, que se adensa juntando ao cardápio a sistemática eliminação de forças reguladoras. Os conservadores aproximam-se cada vez mais do que o populismo mais fanático tem vindo a protagonizar, que consiste na mais violenta hostilidade para com o mundo dos especialistas e da ciência em geral, entendidos como uma elite a marginalizar. Esta hostilização da elite face à origem de classe das teses conservadoras no Reino Unido é algo que me causa uma profunda perplexidade, que só consigo entender no quadro de uma profunda degenerescência dos valores conservadores no Reino Unido ou então explicada por algo ainda mais estranho que seria uma espécie de negação dos princípios e origens de classe em que o partido foi construído. A sistemática desvalorização das ciências sociais já vem dos tempos de Thatcher e o fanatismo da descida de impostos começa a perfilar uma macabra consequência – a margem de manobra para descer ainda mais os impostos implicará forçosamente a destruição do National Health System. Ou seja, a fúria desreguladora não hesita em colocar em causa uma das grandes conquistas do Welfare State.

Wren-Lewis é contundente a este respeito:

“(…) Dizer que o partido Conservador moderno não é capaz de aprender com os erros e adaptar-se, e que pode ser anti-ciência, devido à assunção de uma ideologia é apenas metade da história e hoje pode ser mesmo menos do que metade da história. Enquanto o neoliberalismo começou por ser uma ideologia que beneficiou o mundo dos negócios e das empresas em geral, quer no Reino Unido quer nos EUA parecer ter degenerado numa desculpa para algumas pessoas ricas, algumas das quais pertence ao mundo dos media, exigirem menos impostos e desregulação. (…) Por esta razão a iniciação de Truss e as tentativas de a fazer ressurgir não devem ser entendidas como uma aberração mas antes como o culminar de uma transformação do partido Conservador que começou com Thathcher e o neoliberalismo e que acabou com corrupção e intermináveis reivindicações de descidas de impostos.”

Ora, perante esta onda de autodestruição pelo menos dos princípios conservadores originais, o Labour, após uma vitória parcial relevante no West Lancashire, não podia arranjar melhor momento e oportunidade para abrir uma caçada a Corbyn e seus apoiantes, desenterrando acusações, com algum fundamento, de anti-semitismo e impedindo o ex-líder do Labour de concorrer a eleições. A permanência do poderio eleitoral de Corbyn em algumas circunscrições é um caso de estudo, diria patológico de sentido contrário, tamanha foi a sua inadequação aos tempos modernos. Mas com crise inflacionária, destruição em marcha no NHS e problemas habitacionais sérios, o velho Corbyn está como peixe na água, embora não tenha qualquer solução coerente e exequível para os afrontar. Mas como qualquer vulgar cidadão pensará, desenterrar uma luta tribal interna neste momento de oportunidade plena de conquista do poder não lembraria a qualquer um, mas pelos vistos o Labour está nisso determinado.

Estes britânicos!

A resignação de Nicola Sturgeon à frente do Partido Nacional Escocês é provavelmente de outra natureza e ainda não consigo compreendê-la em pleno. Sabemos que Sturgeon tem lutado pelo referendo da independência e parece que, segundo um modelo iniciado pela resignação da primeira-ministra da Nova Zelândia, terá concluído não ter energia nem motivação suficientes para conduzir essa dura batalha até ao fim. O que perante a hipótese de eleições nacionais se torna algo incompreensível, já que a dimensão da representação parlamentar constituirá sempre uma arma de afirmação dos desejos escoceses de independência.

De facto, para lá do Canal a confusão parece ser total e de certo modo o BREXIT é o grande agitador.

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