sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

NOVO FÔLEGO NA POLÍTICA DE HABITAÇÃO?

 


(Como previa, a crise habitacional que atinge uma larga franja da população portuguesa, os mais pobres, os precários, os jovens em início de vida ou deslocados para estudar, a classe média e não só os seus grupos de mais baixo rendimento, sofreu uma enorme aceleração de expressão de carências com o novo contexto inflacionário. Reforçando essa aceleração, a pressão política sobre o governo aumentou de forma visível. Acossado por outras dimensões da atividade governativa e pressionado para apresentar resultados, de execução, de resposta a carências e a toda a série de críticas a que tem sido sujeito, seria de esperar que algo aparecesse em matéria de habitação. A existência de um ministério próprio, chefiado pela Secretária de Estado que se ocupava do assunto, tendeu a reforçar essa pressão, pois não tinha sentido esperar períodos de adaptação e conhecimento de pastas. O pacote legislativo ontem apresentado, estimado pelo Governo em 900 milhões de euros é de difícil avaliação crítica, já que muito na linha do que é a hoje a política e a sua comunicação, trata-se de um conjunto de medidas que vai ainda fazer a sua evolução, auscultação pública, discussão na Assembleia da República, entre outros processos, e só num Conselho de Ministros de 16 de Março é que teremos a sua expressão definitiva.)

Apetece-me começar recordando Sérgio Godinho:

“(…) Só há liberdade a sério

Quando houver

… A paz, o pão, habitação, saúde, educação (…)”.

Regressando ao tema, devo começar por uma expressão de conflito de interesses. Estou por estes dias a coordenar a avaliação externa do Programa 1º Direito, uma das peças fundamentais da política de habitação com que este Governo está a trabalhar, cujo destinatário é o IHRU, pelo que não entrarei em dimensões temáticas cobertas pela referida avaliação. Mas mesmo nesse contexto de reserva compreensível, tenho condições para ensaiar uma avaliação crítica do pacote agora apresentado e que fará o seu caminho até à sua expressão definitiva em termos legislativos e orçamentais.

O quadro estratégico de política de habitação que os dois governos de António Costa, o da geringonça e os de filiação socialista exclusiva, foi desenhado através de uma Resolução do Conselho de Ministros, designada de A Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH). Este referencial estratégico pretendia alocar à política de habitação em Portugal um novo impulso político do tipo do que foi alcançado com o Programa de Erradicação de Barracas (PER), com incidência particular nos municípios de Lisboa e Porto, agora com a pretensão de alargar esse impulso a todo o país, continente e regiões autónomas. É no âmbito desse referencial que têm de ser entendidos programas como o 1º Direito (focado na resolução de situações de habitação indigna, um conceito novo, e envolvendo famílias ou indivíduos sem capacidade económica e financeira para solver essa indignidade habitacional), o Arrendamento Acessível (uma tentativa algo tímida de intervir no mercado de arrendamento), o Porta de Entrada (para responder a questões de exceção) e outros. Nesse referencial, avulta a emergência dos municípios como o grande parceiro de execução desses programas, se bem que, pelo menos no programa 1º Direito, a intervenção possível de outras entidades como empresas municipais de habitação, entidades públicas com património público suscetível de gerar oferta de habitação, misericórdias e outras entidades privadas possam ser associadas à parceria de execução.

A NGPH está organizada segundo um novo paradigma de intervenção que coloca as pessoas e não o edificado no centro da política e, pode dizer-se, que deu origem a um referencial-impulso que não pode ser ignorado, mas que necessita de tempo de implementação para surtir efeito. Alguns dos instrumentos apresentam um tempo de maturação que não está adaptado a execuções muito rápidas. Por exemplo, o 1º Direito passa primeiro pela elaboração de Estratégias Locais de Habitação destinadas a definir as prioridades de situações de habitação indigna a resolver e que exigem desde logo a identificar das famílias que serão objeto de melhoria de condição habitacional e só depois se seguem os Acordos de Colaboração e de Financiamento de operações concretas de investimentos habitacionais. Entretanto, foi também publicada a Lei de Bases da Habitação, completando o quadro legislativo.

O meu ponto é este e muito simples, a NGPH e instrumentos associados constituem um relevante referencial de impulso, mas a aceleração da crise habitacional e a pressão de concretização de resultados teriam obviamente de determinar que, como diz o Manuel Carvalho, hoje no Público, o governo tivesse de fazer prova de vida, para o bem e para o mal deste tipo de situações. Ou seja, a pressão existente para a publicação de resultados impede, regra geral, que se responda aos dois mundos, o da coerência com o referencial existente e o da resposta às carências imediatas.

O “Mais Habitação”  (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=governo-aprova-pacote-mais-habitacao) é assim um programa compósito, diria mesmo “troppo compósito”, que faz prova de vida de que o Governo está ali para atuar e que para isso se socorre do que está mais à mão, criando uma espécie de segunda (ou múltiplas pistas) que completa o caminho mais estruturado e estratégico do conjunto de instrumentos de política enquadrados pela NGPH, largamente dependente da capacidade de investimento municipal. E, como não podia deixar de ser, a dimensão do arrendamento assume uma forte centralidade, até porque já deu para perceber que, no estado atual das taxas de juro, a resolução dos problemas por via de aquisição de casa própria só está ao alcance de uma massa de privilegiados, que não são obviamente as prioridades de uma política pública de habitação.

O reverso desta medalha é que o mercado de arrendamento constitui matéria crítica para qualquer governo em Portugal, sobretudo depois de generosos períodos em que se admitiu que o paradigma da aquisição de casa própria (favorecido por crédito à habitação demasiado fácil) poderia ser assumido como via central de resolução do problema habitacional.

Compreensivelmente, é nos domínios de intervenção propostos sobre o mercado de arrendamento que irão emergir os pontos de maior conflitualidade política, como exemplarmente a caótica discussão no painel do Eixo do Mal ontem ilustrou. Mas tenho para mim que quando se está perante situações de verdadeira emergência social, o governo não pode ser atacado por ter cão e não ter. No pacote ontem apresentado, existe matéria que baste para largas controvérsias. A ideia de Estado Senhorio em que o Estado arrenda imóveis privados que estão fora do mercado para posterior subarrendamento por períodos de 5 anos tendo em conta a taxa de esforço financeiro das famílias e que pode envolver ainda o pagamento de dívidas de inquilinos é a luz da referida emergência que tem de ser entendida. É uma modalidade de prova de vida arriscada, mas alguém acossado não pode deixar de responder com risco. O mesmo se diga em relação à requisição de casas devolutas e desocupadas para as colocar no mercado de arrendamento, já prevista em sede de Lei de Bases de Habitação, mas que no âmbito da crispação política hoje reinante vai dar ares de reminiscências de PREC. As restantes variantes de mercado regulado, com tetos máximos de rendas para contratos que se sucedam a contratos de cinco anos que chegam ao seu termo, tendo por referência a política de taxas de referência do BCE, e a multiplicação de subsídios de renda na sequência de quebras significativas de rendimento disponível parecem-me suscetíveis de menor conflitualidade.

O pacote agora apresentado faz ainda regressar ao terreno da discussão a questão do alojamento local e da possibilidade de incentivar alguma transferência de uso dessas habitações para o arrendamento. Esta matéria não deve dar origem em meu entender a uma nova escala de diabolização do alojamento local, que se revelou uma fonte relevante de rendibilidade para proprietários sobretudo em contexto de indigência de alternativa de colocação de poupanças. Já não tenho paciência para prolongar até à náusea esta discussão. Em economia de mercado, existe sempre o risco de excesso de investimento em alguns domínios. É óbvio que isso aconteceu em algumas situações, faz parte do jogo do investimento e os investidores não podem ignorar essa dimensão do risco. É altura de parar e dizer que, em matéria de regulação, o investimento já realizado é suficiente. A reabilitação urbana beneficiou sem dúvida com o investimento no alojamento local, mas ultrapassámos já o limiar da aceitabilidade em fazer reabilitação apenas por essa via. É altura de clarificar as regras e dizer que chega. E convém reconhecer que a margem de manobra de transformação das unidades de alojamento em arrendamento normal não é ilimitada. As tipologias de alojamento local servem dominantemente para situações temporárias de início de vida, casais jovens e pessoas individuais.

Concluindo, parece-me que o pacote agora apresentado, e sem ignorar as suas possíveis alterações até ao Conselho de Ministros de 16 de março, não pode distrair o governo do esforço de agilização dos outros instrumentos de política de habitação destinados a colocar no mercado novas habitações, essencialmente para arrendamento e com aposta na reabilitação de edificado. Converter o uso de imóveis de comércio ou serviços para habitação ou disponibilizar imóveis do Estado em regime de contratos de desenvolvimento de habitação, que fazem parte deste pacote, podem ser medidas interessantes, mas será essencial agilizar e dar uma nova dinâmica de execução aos instrumentos já existentes da NGPH.

O Governo mexeu-se, levará pancada por isso, mas a tal prova de vida era necessária. Está dada.

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