domingo, 12 de fevereiro de 2023

NOVOS ELEMENTOS PARA COMPREENDER A GUERRA FRIA 2.0

 


(Começa a ser discutível insistir que uma nova era de guerra fria já está em marcha, quando o conflito derivado da invasão russa da Ucrânia se complica cada vez mais. Como José Pacheco Pereira ontem assinalava, com rigor, na sua crónica do Público, cada vez mais se torna insustentável aceitar soluções para dourar a pílula ao erro de Putin. De facto, os EUA, a Europa e a Nato não poderão nunca aceitar que uma invasão realizada pela força e contra o direito internacional redesenhe as fronteiras de países e, por isso, só uma derrota de Putin com a saída da Rússia dos territórios ocupados poderá sanar de vez o conflito. O pacifismo do PCP é assim manifestamente etéreo e branqueia a despudorada recomposição dos territórios europeus pela força das armas. Para um pacifista como eu, as consequências deste rigor analítico são duras de acolher, mas tenho neste momento poucas dúvidas de que o agravamento do conflito tenderá inevitavelmente a produzir-se. Por isso, é bastante nebulosa por estes dias a diferença entre o que será uma Guerra Fria 2.0 com a China à mistura e o risco de um escalamento das hostilidades. Nesse sentido, ainda no plano meramente analítico, é fundamental continuar a aprofundar o conhecimento sobre o que vai acontecendo no bloco que não alinhou com os EUA, União Europeia e NATO no seu apoio à Ucrânia, contrariando a tão egocêntrica e ocidental ideia de que sanções e outros constrangimentos poderão influenciar decisivamente o que se passa por esse universo, por mais diversas que sejam as posições no seu interior em relação à ofensiva russa.)

Comecemos, por exemplo, pelo que têm representado para a economia russa o próprio esforço de guerras e as sanções do ocidente, em clara escala de agravamento e intensidade.

Os dados oficiais russos que são considerados credíveis pela comunidade e imprensa internacional permitiram concluir que o PIB russo teve uma contração de apenas 2%, contrariando severamente todos os cenários mais ou menos devastadores e catastrofistas que diferentes famílias de peritos anunciaram para a economia russa. Esses dados não escaparam ao comentário sempre lúcido do Economist: a revista confirma a credibilidade dos números, acrescenta-lhe um nível baixo de desemprego embora com descida de remunerações, interrupção da subida do preço da habitação, ligeira descida das despesas de consumo e até refere que as previsões do FMI apontam para que a economia russa apresente até um ligeiro crescimento de 0,3% em 2023. Ou seja, uma de duas ou provavelmente resultado da sua combinação: ou a perspetiva sobre o alcance das sanções construída por quem as concebeu e lançou estava errada e sobrevalorizou o seu alcance ou o conhecimento ocidental dos meandros da economia russa era imperfeito e lacunar e daí o erro enorme de previsão sobre o modo como sanções e esforço de guerra seriam percebidos por quem lançou a invasão.

A minha única perplexidade quanto ao modo como Putin acautelou antecipadamente os danos da sua própria ousadia reside no facto de não entender como a Rússia se deu ao luxo de não proteger ativos financeiros depositados no exterior. A exposição ao congelamento ou confisco de ativos no exterior é algo que numa intervenção pensada como parece ter sido a da Ucrânia se acautela procurando outras paragens. O que não foi observado e daí a minha perplexidade.

A outra questão já aqui antecipada em posts anteriores com a devida vénia à abordagem pioneira de Branko Milanovic, é a do modo como a economia russa terá reagido ao embargo de exportações para a Rússia de tecnologia com origem no ocidente. Admitia-se que isso afetasse a economia russa segundo a via da substituição de importações em modo de regressão tecnológica. Também aqui o argumento da superioridade tecnológica ocidental tenha sobrevalorizado os impactos do embargo. É que não podemos desvalorizar de todo o facto do bloco asiático em torno da influência da China ter continuado a fornecer a economia russa de alguns inputs tecnológicos e o esforço de guerra necessita avidamente dessa possibilidade. O gráfico que abre este post ilustra na perfeição este meu ponto: segundo as autoridades alfandegárias russas, as importações de chips em 2022 terão aumentado substancialmente relativamente ao período que antecedeu a invasão – aumento de 1,8 mil milhões de dólares para 2,45 mil milhões entre janeiro-setembro de 2021 e idêntico período de 2022 (Elina Ribakova- @elinaribakova).

Uma análise mais fina é-nos proporcionada através de um estudo com origem no Silverado Policy acelerator (https://silverado.org/): os fornecimentos da China e de Hong-Kong terão permitido colmatar o embargo em matéria de circuitos integrados embora a ritmos inferiores (há a possibilidade de ter havido importações para stocks no pré-invasão); a oferta global de bens de consumo terá sido em parte reposta mas claramente com produtos de qualidade bastante inferior ao que os russos importavam, tais como smartphones e veículos de passageiros; a componente de peças para veículos automóveis terá sido a parte das importações mais afetada. Também aqui, embora sendo detetados impactos fortes, a economia russa sobretudo graças ao bloco asiático não comprometido com o embargo (recorda-se que o Japão e a Coreia do Sul aderiram a esse embargo) tem conseguido mgar essa limitação e daí, estima-se, a explicação para os dados do crescimento económico não serem catastróficos.

Um último ponto para acrescentar à explicação para a resiliência da economia russa às sanções económicas reside na capacidade de acumulação de divisas estrangeiras no período anterior à invasão. Essa capacidade explica-se pela Rússia integrar o universo dos exportadores de petróleo. Esse efeito de stock acumulado tenderá a esbater-se à medida que o ocidente for dependendo menos do petróleo e gás russos (a evolução da redução da dependência alemã tem sido notável). Mas a almofada que isso permitiu não pode ser escamoteada. É óbvio que tudo dependerá da evolução do novo contexto geopolítico em que a economia russa tenderá a integrar-se, com obviamente a China, a Índia e alguns países africanos à cabeça.

Uma nota para acompanhamento posterior

Mas também a China nos traz alguns elementos intrigantes. O sempre perspicaz Matt Klein no OVERSHOOT interroga-se sobre a diferença hoje registada entre as exportações chinesas calculadas pelas autoridades alfandegárias e os dados da balança de pagamentos. Na China tudo é grande: a estimativa do desvio aponta para 300 mil milhões de dólares. Impressionante, não?

 

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