Tive a feliz sorte de aceder ao brutal e muito interessante trabalho biográfico de Luís Valente de Oliveira (LVO), “Trilhos”. Nada menos do que 12 volumes de memórias em 59 capítulos (mais um posfácio e referências bibliográficas) ou, como escreveu o próprio, quase de um diário. Um verdadeiro manancial de informação dotado de profundo interesse histórico, não apenas sobre uma das personalidades mais notáveis de entre as que têm vindo a servir a sociedade portuguesa nas últimas muitas décadas como também sobre a evolução que foi marcando a nossa realidade em domínios-chave da mesma. Daqui saúdo, necessariamente agradecido, o Professor que por aí continua a dar quotidianamente o seu exemplo de transmissão e partilha de conhecimento e experiência num quadro de louvável e rara dignidade cívica.
Um dos tópicos incontornáveis da obra em apreço tem necessariamente de ser associado à questão da Regionalização e aos seus lamentáveis meandros naquele final do “cavaquismo”. Confesso que a minha curiosidade fez com que logo sobre ela me tenha precipitado, tendo retirado da leitura do capítulo XXXIV do volume 10º a ela dedicado diversos ensinamentos factuais relativos ao processo mas tendo também, e sobretudo, nela reconhecido a confirmação do modo de ser e estar de LVO em todo o seu esplendor. Dito isto, e por forma a que o leitor possa fazer a sua própria avaliação, opto por me limitar a reproduzir com a devida vénia ao protagonista uma parte especialmente clarificadora dessa componente do texto, parte essa em que o autor torna evidente quanto se debateu consigo mesmo perante o que lhe era dado observar ou pressentir naqueles bastidores, aliás bem reveladores do misto de falta de coluna vertebral e de ignorância que imperava naquele ambiente de oportunismo golpista em que já era visível o estado de desagregação daqueles tempos de fim de ciclo.
“Foi, por isso, com o maior espanto quando, por volta das zero horas e trinta do dia 29 de julho de 1994, tendo acabado de conciliar o sono, fui despertado subitamente por um telefonema do Primeiro-Ministro que me vinha perguntar se descentralização não era a mesma coisa que regionalização e vice-versa... Respondi-lhe que a regionalização pressupunha a conjugação de dois processos, um de descentralização e outro de desconcentração, mas que a sua essência era a constituição de instâncias regionais com autonomia de decisão em domínios definidos por lei. Acrescentou que estava em reunião da Comissão Política do Partido do Governo e que discutiam a oportunidade da retirada do processo de regionalização do nosso programa de ação, substituindo-o pela descentralização, em torno da qual havia acordo generalizado. Insisti em que a descentralização fazia parte integrante da regionalização, mas percebi que ele já não estava a prestar atenção à minha justificação. Como se pode imaginar, já não dormi nessa noite!
Eu não integrava a Comissão Política, mas sabia que ela tinha sido convocada para uma reunião no dia 28 de julho, a última antes de férias. Pelos vistos, prolongara-se para depois da meia-noite... Foi com inquietação que peguei nos jornais na manhã seguinte, mas eles, obviamente, não diziam nada, dada a hora tardia a que tinha terminado a reunião. Mas as rádios já estavam todas em alvoroço. Fui à hora do costume para o meu gabinete, tendo dado instruções de que não estaria disponível para os órgãos de comunicação social. Queria saber o que se tinha passado, porque nada havia feito prever uma mudança tão radical e tão súbita. Pelo fim da manhã, comecei a fazer telefonemas a alguns membros da Comissão Política. Também tinha sido surpreendidos pela proposta. Ela havia sido apresentada por um dos elementos mais conservadores da Comissão Política que a justificou com a necessidade de ‘criar um facto político’ antes da partida para férias!... O Governo estava em baixa, sendo necessário dar mostras da sua atividade e iniciativa. À falta de melhor anunciar-se-ia o fim da regionalização que, para o proponente, iria ter uma repercussão imensa sobre as massas que rejubilariam e com isso restaurariam a imagem do Governo... Como eu tinha sido o intérprete de todo o processo, o Primeiro-Ministro e Presidente do Partido tivera a ‘atenção’ de me avisar do que estava para acontecer, não fosse eu ser surpreendido pela notícia através dos jornais. A minha reação imediata foi demitir-me! Mas, refletindo melhor, verifiquei que isso era o que deveria querer a tal ala mais conservadora, cujo comportamento eu conhecia desde há muitos anos... Nesse dia eu tinha o casamento da filha de um Amigo, ao fim da tarde, no Porto, de modo que decidi não procurar o Primeiro-Ministro que eu sabia ir para férias nessa mesma sexta-feira ou no sábado de manhã. Esclareci logo que não faria declarações públicas a esse respeito.
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