segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

DETALHES DE UM DOCUMENTO HISTÓRICO

Tive a feliz sorte de aceder ao brutal e muito interessante trabalho biográfico de Luís Valente de Oliveira (LVO), “Trilhos”. Nada menos do que 12 volumes de memórias em 59 capítulos (mais um posfácio e referências bibliográficas) ou, como escreveu o próprio, quase de um diário. Um verdadeiro manancial de informação dotado de profundo interesse histórico, não apenas sobre uma das personalidades mais notáveis de entre as que têm vindo a servir a sociedade portuguesa nas últimas muitas décadas como também sobre a evolução que foi marcando a nossa realidade em domínios-chave da mesma. Daqui saúdo, necessariamente agradecido, o Professor que por aí continua a dar quotidianamente o seu exemplo de transmissão e partilha de conhecimento e experiência num quadro de louvável e rara dignidade cívica.

 

Um dos tópicos incontornáveis da obra em apreço tem necessariamente de ser associado à questão da Regionalização e aos seus lamentáveis meandros naquele final do “cavaquismo”. Confesso que a minha curiosidade fez com que logo sobre ela me tenha precipitado, tendo retirado da leitura do capítulo XXXIV do volume 10º a ela dedicado diversos ensinamentos factuais relativos ao processo mas tendo também, e sobretudo, nela reconhecido a confirmação do modo de ser e estar de LVO em todo o seu esplendor. Dito isto, e por forma a que o leitor possa fazer a sua própria avaliação, opto por me limitar a reproduzir com a devida vénia ao protagonista uma parte especialmente clarificadora dessa componente do texto, parte essa em que o autor torna evidente quanto se debateu consigo mesmo perante o que lhe era dado observar ou pressentir naqueles bastidores, aliás bem reveladores do misto de falta de coluna vertebral e de ignorância que imperava naquele ambiente de oportunismo golpista em que já era visível o estado de desagregação daqueles tempos de fim de ciclo.


Foi, por isso, com o maior espanto quando, por volta das zero horas e trinta do dia 29 de julho de 1994, tendo acabado de conciliar o sono, fui despertado subitamente por um telefonema do Primeiro-Ministro que me vinha perguntar se descentralização não era a mesma coisa que regionalização e vice-versa... Respondi-lhe que a regionalização pressupunha a conjugação de dois processos, um de descentralização e outro de desconcentração, mas que a sua essência era a constituição de instâncias regionais com autonomia de decisão em domínios definidos por lei. Acrescentou que estava em reunião da Comissão Política do Partido do Governo e que discutiam a oportunidade da retirada do processo de regionalização do nosso programa de ação, substituindo-o pela descentralização, em torno da qual havia acordo generalizado. Insisti em que a descentralização fazia parte integrante da regionalização, mas percebi que ele já não estava a prestar atenção à minha justificação. Como se pode imaginar, já não dormi nessa noite!

 

Eu não integrava a Comissão Política, mas sabia que ela tinha sido convocada para uma reunião no dia 28 de julho, a última antes de férias. Pelos vistos, prolongara-se para depois da meia-noite... Foi com inquietação que peguei nos jornais na manhã seguinte, mas eles, obviamente, não diziam nada, dada a hora tardia a que tinha terminado a reunião. Mas as rádios já estavam todas em alvoroço. Fui à hora do costume para o meu gabinete, tendo dado instruções de que não estaria disponível para os órgãos de comunicação social. Queria saber o que se tinha passado, porque nada havia feito prever uma mudança tão radical e tão súbita. Pelo fim da manhã, comecei a fazer telefonemas a alguns membros da Comissão Política. Também tinha sido surpreendidos pela proposta. Ela havia sido apresentada por um dos elementos mais conservadores da Comissão Política que a justificou com a necessidade de ‘criar um facto político’ antes da partida para férias!... O Governo estava em baixa, sendo necessário dar mostras da sua atividade e iniciativa. À falta de melhor anunciar-se-ia o fim da regionalização que, para o proponente, iria ter uma repercussão imensa sobre as massas que rejubilariam e com isso restaurariam a imagem do Governo... Como eu tinha sido o intérprete de todo o processo, o Primeiro-Ministro e Presidente do Partido tivera a ‘atenção’ de me avisar do que estava para acontecer, não fosse eu ser surpreendido pela notícia através dos jornais. A minha reação imediata foi demitir-me! Mas, refletindo melhor, verifiquei que isso era o que deveria querer a tal ala mais conservadora, cujo comportamento eu conhecia desde há muitos anos... Nesse dia eu tinha o casamento da filha de um Amigo, ao fim da tarde, no Porto, de modo que decidi não procurar o Primeiro-Ministro que eu sabia ir para férias nessa mesma sexta-feira ou no sábado de manhã. Esclareci logo que não faria declarações públicas a esse respeito.

 

A minha luta interna era decidir se iria para a frente com o meu pedido de demissão ou não. Passei uns maus dias! E piores noites... Foi sem surpresa que verifiquei que a repercussão sobre a opinião pública havia sido nula ou quase. As pessoas estavam a pensar nas férias. A última coisa a que dariam importância era, seguramente, à estruturação administrativa da Nação! A própria Comunicação Social estava sintonizada para outros temas... Talvez na ‘rentrée’ o tema fosse retomado. Entretanto, comecei a pensar que a minha obrigação era continuar a lutar pela regionalização, a partir de dentro. E que uma obstinação na demissão ainda enfraqueceria mais o Governo que, efetivamente, não estava a atravessar os seus melhores tempos, como se veio a constatar um ano depois. E esse agravamento da impopularidade é que me seria assacado totalmente, eu seria responsabilizado por uma boa parte do desaire que o cansaço iria acabar por determinar. Quando regressei de férias, esperei que o Primeiro-Ministro tivesse a iniciativa de fazer um comentário sobre o caso. Não o teve nessa ocasião nem em outro qualquer momento até hoje! Nem mesmo quando lhe enviei dois livros que escrevi sobre o tema cuja receção não acusou."

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