(O El País publica hoje um artigo curioso sobre a evolução da inflação em Espanha (link aqui). Sabemos que na sequência da sua vulnerabilidade intrínseca, que resulta das bastante heterodoxas alianças que o sustentam, o governo de Sánchez tem sido mais incisivo na luta contra a inflação comparado com o registado em Portugal. Neste contexto, o acompanhamento comparado dos dois processos inflacionários pode trazer elementos relevante de análise, claro que se tivermos em conta não apenas a diferente estrutura das duas economias, mas também a diferença audácia das políticas ensaiadas. O gráfico de autoria de Belén Trincado Aznar permite comparar a evolução da inflação atual, calculada a partir da variação anualizada entre trimestres, e também a inflação subjacente, incluindo o comportamento de alguns produtos em concreto. Vejamos o que ressalta destes números.)
A evolução da inflação atual ou corrente em Espanha parece querer antecipar um caminho para uma normalidade desejável, embora a inflação subjacente se mantenha em janeiro de 2023 num valor de 5%, bastante acima da taxa indicativa seguida pelos bancos centrais dos 2% (continuando a ser tabu a discussão do realismo deste valor). E, ao contrário do observado em Portugal, os produtos de alimentação revelam um comportamento descendente, pelo menos em relação ao pico de abril de 2022 que atingiu o valor de 20,6%, com quedas efetivas em alguns produtos cruciais como os legumes e a fruta.
O jornalista autor do artigo chama, entretanto, a atenção para uma possível mudança de comportamento dos preços, de que a subida dos preços do vestuário e calçado representa a principal interrogação, sugerindo mesmo, talvez precipitadamente, que a inflação terá passado de inflação-oferta a inflação-procura. Sabendo nós que, neste caso, estamos perante exemplos de bens claramente transacionáveis, cujo preço é na base claramente determinado a nível internacional (a Espanha, embora melhor situada do que Portugal, dificilmente pode ser considerada um price maker nestes produtos, a subida algo vertiginosa destes preços não é de interpretação fácil. Pode haver problemas de distribuição gerados por eventuais constrangimentos de cadeias de valor globais (afetando por exemplo a produção internacionalizada de grupos como a Zara, por exemplo) ou estarmos perante consequências de intensificação de procura. O que parece tornar-se evidente é que em Espanha, creio que extensivo a Portugal, o fim/início de 2022/2023 marca já a atenuação dos efeitos de contágio dos preços internacionais (disrupção de cadeias de valor globais e energia), abrindo caminho a um conjunto diverso de fatores explicativo para situarmos a resistência à descida da inflação.
Não temos hoje ainda uma clara perceção do estado da arte do mercado de trabalho nas duas economias, ambas com alguma subida do desemprego, mas os números não são ainda suficientemente expressivos para avaliarmos se o mercado de trabalho permanecerá em tensão, logo acrescentando por si só limites à contenção dos preços.
Mas o que me pareceu curioso é a referência realizada pelo jornalista ao efeito contraditório exercido pela despesa pública, leia-se do investimento público alimentado pela programação plurianual dos Fundos Europeus (PT 2030 e Espanha 2030) e pela necessidade de acelerar a execução do PRR em ambos os países. Com um mercado de trabalho em tensão, problemas de disponibilidade de mão de obra corrente e especializada e oferta de construção civil ainda por reorganizar em pleno, é óbvio que a aceleração da mobilização dos Fundos Europeus traz outra fonte de tensões inflacionárias.
Preso por ter cão e também por o não ter, dirão alguns. Para que a aceleração da mobilização dos Fundos Europeus não implique o recrudescimento descontrolado de tensões inflacionárias seria necessário reduzir à sua mínima expressão todos os constrangimentos de oferta. Não conheço em pormenor o ambiente regulador em Espanha para avaliar se a economia espanhola poderá ou não contornar esse constrangimento. Quanto a Portugal, a experiência passada aponta para que quase sempre a flexibilização regulatória e administrativa, num contexto radicado na experiência contrária, signifique perda de qualidade de execução e algum “fartar vilanagem” de processos. Estamos assim perante objetivos marcadamente contraditórios, matéria em que a economia é farta.
Nota final:
Ontem, na sua alocução dominical de largo espectro, o inefável Marques Mendes salientava e insurgia-se contra a vertiginosa subida dos preços alimentares. Esta subida cheira a esturro, sobretudo porque, a nível internacional, os preços dos alimentos estão em queda pelo décimo mês consecutivo. Significa isto que, na cadeia de valor de formação dos preços alimentares em Portugal, haverá circuitos que por inércia e aproveitamento de ganhos de ocasião estarão a prolongar efeitos que deveriam estar já plenamente amortecidos. Destes comportamentos de "salve-se quem puder" sabemos que a situação por cá é pródiga, afinal as rendas de exceção são tão aliciantes para quem tem dificuldade em ganhar estavelmente no tempo mais longo.
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