O desatino de Marcelo começa a ultrapassar todos os limites concebíveis. Aceita-se, ou compreende-se, que o homem esteja desiludido com a sua perda de centralidade política; aceita-se, ou compreende-se, que o homem seja um isolado que necessita de miminho como de pão para a boca (citando as últimas e arrasadoras – desapiedadas mesmo! – considerações de José Miguel Júdice nas suas “Causas” da SIC-Notícias). O que não se aceita nem compreende é que o Presidente da República Portuguesa utilize o espaço público, que é supostamente um bem de todos nós, como um expediente mediador para nele procurar fazer uma catarse doentia e pungente, designadamente através de declarações contraditórias em relação a matérias que não são manifestamente de interesse geral. Pelo andar da carruagem, é de temer que os quinze meses que ainda restam a Marcelo até que seja forçado a deixar o Palácio de Belém possam constituir-se em momentos penosos de um cidadão que temos por superiormente inteligente (no sentido próprio da palavra) e que muito gostaríamos de avaliar finalmente como não destituído em absoluto de inteligência emocional.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
PIMENTA MACHADO ESTÁ VIVO EM NOSSOS CORAÇÕES!
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
DAS NOVAS CONTAS REGIONAIS
Publicação pelo INE das primeiras Contas Regionais elaboradas a partir da nova configuração das NUTS2, decidida intempestiva e gratuitamente pelo governo de António Costa. Pretende este post atualizar junto dos nossos leitores a informação disponível de acordo com a nomenclatura que passa a ser oficial, dando conta de algumas evidências que, não alterando muito do que era conhecido quanto à nossa realidade regional, permitem reforçar certos traços mais salientes.
A saber: (i) acima, a distribuição percentual do PIB português por grandes regiões, mostrando de forma clara a presença de dois grandes blocos (Grande Lisboa e Norte) contrastando com todas as restantes zonas (com exceção do razoável peso já detido pelo Centro); (ii) abaixo, e por ordem sucessiva, a distribuição percentual das exportações portuguesas de bens, no caso confirmando o diferenciado peso exportador do Norte e a quase irrelevância da Madeira, Algarve e Açores neste domínio, e a respetiva hierarquização do grau de abertura à exportação (de bens), no caso sublinhando a dominante exportadora da Península de Setúbal, seguida a certa distância pelo Norte, Centro e Alentejo, e a relativa baixa dimensão de abertura de uma Grande Lisboa em que os bens transacionáveis não estão no centro da sua dinâmica económica; (iii) mais abaixo ainda, o consagrado (e amaldiçoado) indicador de nível de vida que é o PIB per capita calculado à paridade de poderes de compra, estimado em relação à média da União Europeia, e mostrando uma média nacional no índice 81, uma situação largamente distinta em termos positivos da Grande Lisboa (127), com o Algarve e a Madeira a serem as únicas outras regiões acima da média nacional e todas as restantes (com exceção do Alentejo) a posicionarem-se num plano inferior ao limiar dos 75% (destaque para o impensável índice 54 da Península de Setúbal, que contribui, juntamente com o índice 63 de Oeste e Vale do Tejo, para que o Norte assim deixe estatisticamente de ser a grande região mais pobre do País); (iv) depois, a muito falível produtividade aparente do trabalho, onde o aspeto mais chamativamente paradoxal provém do estranho posicionamento do Norte manufatureiro e exportador (matéria a revisitar mais em profundidade), e o rendimento disponível bruto das famílias, este indo ao encontro da conhecida especificidade algarvia e da reconhecida vantagem remuneratória da zona lisboeta e colocando o Norte como clara lanterna vermelha do País (pesem embora algumas caraterísticas sociológicas facilitadoras, das estruturas familiares à economia informal, de uma relatividade de tal situação e de um maior grau de suportabilidade da mesma).
Aguarda-se agora a publicação de séries comparadas com maior alcance temporal, por forma a que algumas atualizações possam ser realizadas de molde a que algumas perplexidades possam ser devidamente explicadas – deixo um exemplo: a anteriormente ressaltada evolução em forte baixa do PIB per capita da ex-Área Metropolitana de Lisboa como resultante essencial do seu entorno (Península de Setúbal e Oeste e Vale do Tejo), o que nos remete para uma menos grave falta de dinâmica arrastadora da Região-Capital e para a correspondente necessidade de aprofundar os caminhos da sua economia e criação de riqueza. Matéria(s) a explorar em cenas de próximos capítulos.
A DESMOTIVADORA CENA DA POLÍTICA INTERNA
(Devo confessar que é cada vez mais difícil e penoso escrever sobre as incidências da política interna. A preparação do campo político para as Presidenciais tem sido trágica, desde o grau zero da política do Almirante, equiparado, vejam lá o desplante, a D. João II e a não menos penosa sucessão de possíveis candidatos à esquerda, para já não falar no titubeante posicionamento do PSD e do seu possível candidato Marques Mendes. Tenho referido a amigos próximos que já agora quantos mais melhor e que uma projeção de primeira volta com percentagens de votação inferiores a 10% seria o castigo ideal para toda esta falta de peso político de putativos candidatos. Entretanto, o atual Presidente tem feito tudo para desacreditar a função e deixar no ar uma péssima imagem do mandato presidencial, transformando a Presidência numa sucessão de estados de alma, como é, por exemplo, esta mais recente mudança de tom relativamente à governação de Montenegro. Já não há pachorra para aturar este frenesim de mensagens e pressupondo que Marcelo fala verdade quando se pretende retirar e não falar mais de política, o que é em si duvidoso, estaríamos verdadeiramente no silêncio aliciante do céu se isso vier a suceder e quanto mais depressa melhor. Pelas bandas do Governo, ele está cheio de contrastes que evidenciam uma ausência considerável de consistência interna. Basta comparar, por exemplo, os registos de um Fernando Alexandre e de um Leitão Amaro ou comparar o que vão dizendo o ministro das Finanças e o ministro das Infraestruturas Miguel Pinto Luz. Fernando Alexandre é um caso curioso de alguém que foi atraiçoado pelos números do seu próprio Ministério, de bradar aos céus, e a partir daí optou pelas palavras duras da verdade – o Ministro admitiu nesta terça-feira com clareza que vão existir durante muito tempo, milhares de alunos sem aulas.)
É verdade que “Santa Claus is coming to town”, o que explicaria que nada disto é para levar a sério e que é tempo de nos deixarmos imbuir do espírito natalício e de dádiva que caracteriza as atmosferas deste tempo. O problema é que o ambiente do mundo está pouco propício para que nos desprendamos da realidade amarga que caracterizará o Natal de uma grande maioria de população no mundo. A sociedade global está aí, chega-nos permanentemente nas notificações do nosso telemóvel ou na leitura quase religiosa que faço da imprensa internacional mais conceituada e confesso que é cada vez mais difícil abstrair dessa dura realidade.
Entretanto, regressando ao plano interno, como previa, os desenvolvimentos da querela entre a ministra da Cultura Dalila Rodrigues e o ex-ministro Pedro Adão e Silva vão colocando o chamado universo da cultura numa posição cada vez mais confrangedora. Além do contraponto claro entre dois modelos de política cultural, que não é o meu ponto de hoje, as sucessivas revelações que têm vindo a público sobre a endogamia do universo cultural são preocupantes. Existirão por certo outros mundos similares para lá do CCB. Já há muito tempo que descria daqueles que associam ao universo cultural uma espécie de reserva ética e moral.
É tudo uma questão de escrutínio democrático e tenho de convir que o mundo da cultura tem sido pouco escrutinado.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
UMA BOTA PARA LUZ DESCALÇAR...
Ontem foi entregue pela ANA ao Governo um relatório inicial de encargos para a construção do Novo Aeroporto de Lisboa em Alcochete. Dele parece decorrer, a crer também nas declarações do ministro das Finanças, a previsibilidade de custos potencialmente avultados para os contribuintes que o ministro das Infraestruturas jurava, entre maio e julho passados, que não iriam ser tocados (“nem um euro”). Fica assim à prova a criatividade de um responsável político que, como quase sempre acontece, optou por ser popularucho desprezando a realidade que os factos lhe iriam impor. Veremos também, neste espaço de um mês que o Governo terá para responder e contrapor, a eficácia de lóbi e a capacidade negocial de um político próximo do atual poder e que se senta do outro lado da mesa (José Luís Arnaut). Um tema a merecer alguma atenção, portanto, sendo certo que julgo bastante baixas as expectativas de que da evolução do mesmo possam resultar surpresas positivas para os bolsos dos ditos contribuintes. Embora Luz e Arnaut, juntos e ao vivo, sejam sempre capazes de embrulhar o “presente” em papel celofane de atraentes cores...
terça-feira, 17 de dezembro de 2024
O OÁSIS VIRA FAROL!
O primeiro-ministro resolveu recuperar o discurso do “oásis”, tristemente inaugurado pelo ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo em 1992, apenas modificando marginalmente a designação do país para “farol” – “um farol de estabilidade política, social e financeira”, nada menos! A incursão de Montenegro teve por base motivacional um aproveitamento em benefício próprio de uma apresentação oficial de Mário Centeno, enquanto governador do Banco de Portugal (BdP), segundo a qual a trajetória orçamental portuguesa poderá distinguir-se daquela que é avançada pelo Governo e por algumas instituições internacionais (ver gráficos abaixo); tecnicamente, esta projeção do BdP tem o seu fundamento, sendo por demais conhecidas e inquestionáveis as várias decisões governativas tomadas este ano com impacto notório em termos de despesa duradoura (como, aliás, também o Conselho de Finanças Públicas já procurou sinalizar).
Dito isto, o problema tem outra dimensão e essa é política. Porque Centeno enfiou na cabeça a ideia de que poderá ser presidente da República e, para tal, entende que é conveniente aborrecer o Governo (que não o reconduzirá em meados de 2025) e agradar a Pedro Nuno. Daí que se tenha esmerado em prever que 2025 não prolongará os excedentes recentes mas que o que ocorrerá será um défice de 0,1% do PIB – ou seja, utilizar o palco da entidade reguladora para vir adiantar um número mais do que falível e apenas marcado pelo sinal negativo que ostenta constitui uma suprema provocação por parte de um Centeno que assim escolhe objetivamente fazer política a partir do lugar supostamente independente que ainda ocupa. Depois deste momento de alguma infelicidade, desenrolou-se o habitual folclore de ditos e contraditos, da primeira reação de Montenegro salientando que o governador está sozinho à de Pedro Nuno salientando que o alerta do governador é para levar a sério e à de um Marcelo inspiradíssimo a atirar também a um Centeno que caraterizou como um ministro das Finanças que era “muito agarrado”. E a culminar tudo isto, após as sempre objetivas pronúncias de Marques Mendes e Paulo Portas, eis o chefe de Governo a vir arrebatadamente, do alto do seu inebriamento com uma função que nunca pensou exercer, lançar o País na senda de uma luminosidade exemplar e orientadora que faz a inveja dos nossos parceiros europeus. Verdadeiramente incorrigível, e insuportável, a nossa cena política!
PARA MINIMIZAR OS RISCOS DA POLÍTICA INDUSTRIAL
(Uma das consequências mais visíveis da nova ordem económica internacional, é impressionante o número de vezes que ao longo da minha já longa vida de economista ouvi falar disto, é o regresso à reflexão dos economistas do tema da política industrial. Durante o apogeu do padrão neoliberal da globalização, o tema da política industrial era proscrito. O diretório europeu mais ortodoxo em matéria de política económica baniu o tema do ordenamento comunitário. Pela interposta figura da política de I&D, a política industrial aparecia timidamente, mas nesse tempo os diretórios europeus nem sequer ousavam pronunciar a palavra. Uns tempos depois, emergiu o tema da reindustrialização europeia, mais retórica do que substância, sobretudo porque continuava a impossibilidade. Falar de reindustrialização continuando envergonhadamente a ocultar a necessidade de regressar à política industrial era mais uma estranha invenção europeia. Entretanto, o tema da política industrial nunca desapareceu totalmente, sobretudo para quem sempre estudou os modelos de industrialização de países como a Coreia do Sul, Taiwan, a China e o mais recente “late comer” Vietname. Esses países praticaram políticas industriais pujantes, não estando aqui em discussão se os contextos em que o fizeram são ou não replicáveis. Obviamente que muitos desses contextos não o são e basta pensar na China para o compreendermos. Mas esse não é o ponto. O ponto relevante é a convicção de que a União Europeia concorria com países que não tinham colocado a política industrial debaixo do tapete e que não necessitavam de recorrer ao subterfúgio de a subsumir na política de I&D para a praticar abertamente e sem renegar a luta na divisão internacional do trabalho.)
Tudo isto haveria de mudar com a perceção da vulnerabilidade europeia face ao rumo que as cadeias de valor internacional estavam a tomar. Foi assim com a pandemia. Foi também assim quando Trump e depois a Administração Biden passaram a considerar a ameaça tecnológica chinesa como fator de grande vulnerabilidade para a economia americana. Foi finalmente assim quando a crise energética derivada da invasão russa da Ucrânia expôs a grande fragilidade da economia alemã face à sua dependência energética e à sua dupla dependência da economia chinesa, isto é, como fonte de destino de exportações alemãs e importação de produtos intermédios para a sua indústria.
Mas a grande machadada na desvalorização forçada da política industrial foi dada pela administração Biden quando pôs em marcha duas ações poderosas de política industrial – o Inflation Reduction Act orientado para a economia verde e o Chips Act destinado a revigorar o papel da produção de semicondutores americanos e assim reduzir a dependência americana de outros fornecedores de componentes eletrónicas e outras. Não existe ainda tempo suficiente para avaliar se a experiência americana fez ou não emergir a estranha presença de um “Entrepreneurial State” (na expressão feliz de Mariana Mazucatto) na economia americana, irredutivelmente ligada à dinâmica da iniciativa privada.
Reconhecer a importância da política industrial em todos os processos e estratégias de desenvolvimento não significa obviamente ignorar os riscos presentes numa tal opção. Nem todas as administrações públicas têm o mesmo poder de adaptação às exigências de um “entrepreneurial state”. É sempre arriscado termos burocratas a farejar as evoluções mais prováveis do mercado, substituindo-se ao sentimento e intuição empresariais. Mas existem diferentes formas de captar essa informação junto dos investidores empresariais. Independente de colocarmos os ovos certos em muitos ou poucos cestos, sabemos que a ideia da competitividade generalizada é uma completa ficção. Sabemos também das experiências asiáticas que as opções por novos setores dispõem de muito pouco tempo para sujeitar os resultados de tais opções aos ditames da divisão internacional do trabalho e do mercado global. Arrastar soluções sem as sujeitar esse confronto gera ineficiências, corrupção potencial e seguramente a negação do que é ser competitivo e inimitável. Sabemos também que é por vezes necessário trabalhar a importação de tecnologia para em torno dela construir uma especialização própria e de novo as experiências asiáticas demonstraram com clareza a força e razoabilidade dessa opção.
Pelos tempos mais próximos, assistiremos a um ressurgimento da investigação em torno das estratégias de política industrial. Os trabalhos de Dani Rodrik e de Stephanie Stancheva abriram caminho a uma vigorosa investigação sobre as condições de otimização da política industrial redescoberta (Réka Juhász, Nathan Lane, and Dani Rodrik, 2023). A projeção desses trabalhos na construção de uma política industrial europeia é particularmente desafiante. Em primeiro lugar, porque as exigências de coordenação de tal política são imensas. Veja-se, por exemplo, o artigo publicado no âmbito do FMI por três economistas (Alfred Kammer, Andrew Hodge e Roberto Piazza) que salienta com perspicácia tais exigências. Em segundo lugar, porque a União Europeia ainda é um universo de desenvolvimento desigual, sendo necessário acautelar nessa nova estratégia de política industrial as necessidades de ajustamento estrutural de economias como a portuguesa.
O que é relevante assinalar é que não há otimização possível da política industrial sem ter em conta os constrangimentos próprios de cada administração pública encarregada de coordenar o processo (Réka Juhász and Nathan J. Lane, 2024). Um exemplo extremo disso pode ser mencionado quando uma dada administração é consistentemente corrupta. Com toda a probabilidade, uma administração desse tipo a conduzir uma política industrial será um fracasso potencial.
Outras dimensões este ressurgimento da política industrial apresenta. Uma dessas dimensões é a existência de subsídios reembolsáveis para as apostas melhor-sucedidas, arcando o governo com os custos das apostas falhadas. Nesta aceção, a política industrial segue os rumos do capital de risco. Neste modelo, redobra a importância da capacidade das agências públicas se substituírem à iniciativa empresarial na descoberta das boas oportunidades.
Em suma, o ressurgimento está aí e, seguramente, a política industrial deixou de ser proscrita e de permanecer envergonhada. Para ser avaliada, obviamente.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
PÉ QUENTE?
Há quem o designe por “pé quente”, talvez por boas razões ligadas a vários desfechos futebolísticos em que esteve ao comando e venceu com alguma espécie de ajuda providencial. Mas estaríamos certamente a ser injustos se disséssemos que Ruben Amorim não é bem mais do isso enquanto coach. E mais não seria preciso do que constatarmos a débacle do Sporting desde a sua saída – mesmo considerando a forma estúpida como Varandas passou o seu lugar a João Pereira... – ou assistirmos à exibição do seu Manchester United, ontem no Etihad do rival City (um jogo que foi um hino ao futebol!). Sendo que esta, especialmente no que toca a foco e vontade mas também já a alguma visível explanação tática diferenciada, só acabou por surtir em cima do final do jogo e graças ao talento do jovem Amad Diallo (que fez golo e meio) – mas não é verdade que os jogos duram até ao árbitro apitar e que Diallo penava no banco com Ten Hag? – e, ainda, que Amorim mostrou a sua autoridade e capacidade de assumir riscos ao afastar Rashford e Garnacho da convocatória para o dérbi. O seu a seu dono, portanto, ou seja, o mérito a quem lhe pertence e o essencial deste passa pela presença do treinador português ex-Sporting à frente da equipa técnica do Manchester United – e a verdade é que, assim continuando a acontecer, Amorim merece claramente que também a sorte lhe sorria!
domingo, 15 de dezembro de 2024
VAMOS DEIXAR DE PODER LER PAUL KRUGMAN NO NEW YORK TIMES
(Pela própria pena do autor, chegou-me a informação de que Paul Krugman vai deixar de assinar a sua crónica de opinião regular no New York Times, o que não significará obviamente que vá deixar de escrever e prosseguir a sua tarefa de divulgação da economia a públicos mais vastos do que os que giram em torno da academia. Não é possível ignorar o facto de Krugman escrever há cerca de 25 anos naquele representativo jornal americano, que já é o NYT de outros tempos, mas que continua a ser um refúgio de eleição para se ir além da espuma dos dias e reconhecer a riqueza do debate americano. O NYT não será o mesmo depois de Krugman deixar de assinar a sua crónica. Juntamente com o sempre persistente Bradford Delong responsável por um dos substacks pagos por assinatura mais representativos e pujantes e Mark Thoma, já retirado e que deixou por isso de pontuar no seu espantoso blogue The Economist’s View, Krugman elevou no NYT a difusão das ideias económicas a um nível de qualidade notável. Abandonando a postura de Nobel agraciado que deixa de comunicar com os seus leitores ao nível da publicação de ideias que não apenas ao nível de artigos científicos, Krugman sempre foi um polemista de grande profundidade, combatendo sobretudo a formação de ideias políticas com base em interpretações falseadas da economia. A ele se deve uma das mais contundentes e devastadoras críticas das teses da austeridade erradamente impostas às economias europeias do sul. É por tudo isto enorme a expectativa quanto a de conhecer os canais através dos quais continuará a disseminar as condições para um debate das ideias económicas mais amplo e democrático.)
Krugman tem sido objeto frequente de dois tipos de críticas, ambas em meu entender desajustadas. Por um lado, economistas mais ortodoxos e receosos de animar certos debates acusam-no de um mediatismo demasiado politizado, como se um Nobel de Economia e cronista tivesse necessariamente de abdicar de expressar as suas ideias, por receio de contaminação política nos seus argumentos. Por outro lado, economistas que rejeitam a excessiva matematização da ciência económica e fortemente críticos dos pressupostos da economia do equilíbrio geral, por exemplo Lars P. Syll, também autor de um dos blogues económicos mais lidos, acusam Krugman de não rejeitar suficientemente o formalismo económico.
Ignorar que a ciência económica é necessariamente plural e que os conflitos entre paradigmas fazem parte da evolução natural do pensamento económico não só é tonto, como equivale a projetar a economia num universo de sonho que não existe. Se a luta natural entre os paradigmas em conflito é por vezes falseada, pouco democrática e frequentemente minada por relações de poder para cuja reprodução o ambiente académico está predestinado, ignorar que a conflitualidade faz parte da própria evolução da ciência económica é o primeiro passo para não compreender a especificidade do pensamento económico.
Nos últimos tempos, sempre com foco na economia americana, Krugman desenvolveu uma luta sem quartel aos apoiantes de Trump que construíram uma narrativa falsa do estado da economia americana e sobretudo da inflação gerada após a pandemia e guerra da Ucrânia. O trabalho de Krugman em torno de diversos índices de preços tem sido notável para mostrar quantas interpretações erradas da inflação pode a utilização de um índice de preços não pertinente gerar. Considero notável que um Nobel da Economia trabalhe coisas comezinhas e aparentemente fúteis como os índices de preços para demonstrar a força dos seus argumentos e críticas do pensamento dominante. É uma prova de humildade que todo o jovem economista deveria reconhecer e com ela aprender. Existe espaço para o formalismo matemático, obviamente. Mas perder de vista o valor e consistência das evidências equivale a dar o primeiro passo em direção da irrelevância.
Paul Krugman nunca será um economista irrelevante, escreva onde escrever. A assinatura digital do New York Times ficará mais pobre é certo, mas não acredito que a propensão para o debate abandone o economista americano. Estaremos atentos.
Para a história deste blogue, fica a última coluna publicada por Krugman no NYT.
UM TESTEMUNHO HISTÓRICO
Após a apresentação lisboeta, que contou com Jaime Gama, Ana Gomes e Bárbara Reis vieram ao Porto para divulgar o seu livro a duas mãos “Diplomacia Todo-o-Terreno – Jacarta 1999, o Processo de Timor-Leste”. Trata-se de um conjunto de conversas, ascendendo a um total de 34 horas e depois transcritas e editadas (com cortes de mais de dois terços), sobre a passagem de Ana Gomes pela Indonésia desde que lá chegou em 1999 e até ao final daquele ano – a diplomata ficaria por lá como embaixadora até 2003 –, focando-se num período que ficou marcado por um processo complexo de aproveitamento de uma oportunidade única para se alcançar a independência do país e de que existem pormenores historicamente determinantes e às vezes deliciosos que o livro aborda a partir do lugar de protagonista e observadora privilegiada que Ana Gomes ocupava. Falou-se da queda de Suharto em 1998, do papel do presidente indonésio que lhe sucedeu (Jusuf Habibie) e do grande diplomata Ali Alatas (cujo papel, assaz mal entendido, ficou bem mais esclarecido ao ouvirmos Ana Gomes), como também do papel de Xanana Gusmão, à época preso, e da resistência na montanha e das conivências que grassavam no seio das forças locais indonésias, dos relacionamentos cruzados facilitadores do avanço dos acontecimentos (como, por exemplo, entre Eurico Guterres e Xanana) ou dos seus primeiros encontros com Ramos Horta e Mário Alkatiri; sem esquecer o lado de Lisboa, com Sampaio, Guterres, Gama e a invulgar mobilização do povo português a merecerem especial destaque. Um livro importante, que acabou reduzido ao ano-chave de 1999 e de que devemos naturalmente esperar complementos significativos provenientes dos anos subsequentes. E talvez mesmo algumas reflexões abertas sobre o que têm sido, para o melhor e para o pior, estes anos de independência efetiva de Timor-Leste.
sábado, 14 de dezembro de 2024
AINDA A METÁFORA DOS FLUXOS E DOS STOCKS
(Numa das semanas passadas, tive de realizar no EuroParque em Santa Maria da Feira uma intervenção centrada nos resultados da avaliação de um dos programas mais importantes do PT 2020, o então designado Programa Operacional do Capital Humano, que centralizava naquele período de programação praticamente todo o apoio do Fundo Social Europeu +, FSE +, às políticas públicas de educação, formação e aprendizagem ao longo da vida. Essa sessão representava a edição anual do evento promovido pelo agora designado Programa Pessoas do atual período de programação PT 2030. Na sessão inaugural desse evento, antes do painel em que se concretizou a minha intervenção, tive a oportunidade de ouvir o Secretário de Estado atual da pasta da Educação, Alexandre Homem Cristo, personalidade bastante conhecida pelos seus inúmeros trabalhos sobre educação, regra geral publicitados pelo jornal Observador. Das palavras do Secretário de Estado retive sobretudo o seu alerta para a necessidade da qualificação dos adultos em Portugal não ser desvalorizada. Essas palavras são relevantes e oportunas e correspondem aliás a uma das grandes conclusões da nossa avaliação do referido Programa. Tais palavras têm um significado ainda mais importante quando a opção do então governo de Passos Coelho foi o de iniciar o período de programação do PT2020 com uma aposta clara na qualificação inicial de jovens e na sua empregabilidade, desvalorizando claramente a formação qualificante de adultos. Aliás, essa desvalorização estava em linha com o desmantelamento de algumas das instituições relacionadas com a formação de adultos e com as hesitações em retomar o domínio das Novas Oportunidades, agora centradas na intervenção dos Centros Qualifica. De facto, a inércia das baixas qualificações atingiu várias gerações e constitui por isso um fardo pesado na população ativa empregada e desempregada, reclamando a procura de um equilíbrio quase permanente com a qualificação inicial de jovens, essa claramente em andamento de qualificação crescente.)
Quando um governante tem um discurso tão claro como este, sobretudo quando ele corrige posições passadas das formações políticas que apoiam o atual governo em funções, é saudável e promissor, exigindo monitorização futura de saber se as palavras se repercutem em atos e decisões de política pública consequentes e em linha com esse princípio da não desvalorização da formação de adultos. O peso da inércia é tal que considero que a sua superação não é obrigação apenas dos poderes públicos. Entendo que as empresas e os empresários portugueses têm de fazer mais em matéria de criação de condições para que os seus trabalhadores adultos empregados possam frequentar com maior agilidade as ações de formação e sobretudo criando estímulos remuneratórios para a formação seja entendida como uma opção recomendável.
Não quero especular, mas é bem provável que o Secretário de Estado tenha tido conhecimento antecipado de um importante relatório recentemente publicado pela OCDE, designado de “Do Adults Have the¬Skills They Need to-Thrive in¬a¬Changing World?” (Terão os adultos as competências necessárias para serem bem-sucedidos num mundo em mudança?). O Relatório corresponde ao survey das qualificações (competências) dos adultos reportado a 2023 e constitui a evidência mais recente do peso da inércia das baixas qualificações dos adultos em Portugal, tudo isto apesar dos avanços conseguidos em matéria de formação de adultos, sobretudo quando se procurou corrigir o desvio do início da programação do PT 2020 favorável à qualificação inicial de jovens.
Os níveis de competências são classificados em seis escalões (do nível 1 ao nível 5 e considerando ainda um nível abaixo de 1. Para compreenderem a gravidade da inércia das baixas qualificações de adultos em Portugal, reproduzo aqui o que devemos entender por estar abaixo do nível 1 e nos níveis 1 e 2. Como é óbvio, a leitura do relatório é recomendável para compreender o que devemos entender pelos níveis mais elevados 3, 4 e 5.
Assim, citando no que diz respeito às competências de literacia:
• Abaixo do nível 1 – “Estes adultos são capazes de processar o significado ao nível da frase ou juízo. Considerando uma série de juízos que aumentam a sua complexidade, sabem dizer se um dado juízo faz ou não sentido seja em termos de plausibilidade no mundo real (exemplo de frases que descrevem acontecimentos que podem ou não acontecer) ou em termos da lógica interna da frase (frases com ou sem significado). Muitos dos adultos a este nível são também capazes de ler parágrafos curtos e simples e, em certos pontos do texto, especificar que palavra entre duas tem sentido e é consistente com o resto da frase. Finalmente, podem ter acesso a palavras ou números isolados em textos muito curtos de maneira a responder a responder a questões simples e explícitas.
• Nível 1 – Os adultos deste nível são capazes de localizar uma informação numa página de texto, identificar um link de uma página de internet e identificar um texto relevante entre múltiplas opções quando a informação relevante é explicitamente sugerida. Sabem interpretar o significado de textos curtos, assim como também entender a organização de listas ou múltiplas secções numa única página. Os textos deste nível podem ser contínuos, descontínuos ou mistos e estarem localizados em ambientes impressos ou digitais. Tipicamente, abrangem uma única página até 100 palavras e com reduzida ou nula informação de distração. Os textos não contínuos têm regra geral uma estrutura de lista (tal como o resultado de um motor de busca) ou incluir um número pequeno de secções independentes, possivelmente com ilustrações gráficas ou diagramas simples. As tarefas a este nível envolvem questões simples com alguma orientação acerca do que tem de ser feito e um processamento único. Existe uma relação direta e óbvia entre a questão e a informação a procurar no texto, embora algumas tarefas exigem a análise de mais do que informação.
• Nível 2 – Neste nível, os adultos são capazes de identificar e compreender informação em textos mais longos com alguma informação de distração. Sabem navegar em textos digitais simples com múltiplas páginas para aceder e encontrar a informação solicitada a partir de várias partes do texto. Podem compreender parafraseando ou fazendo inferências, baseados numa única ou em fontes adjacentes de informação. Estes adultos podem considerar mais do que um critério ou restrição na seleção ou gestação de uma resposta. Os textos podem incluir vários parágrafos distribuídos ao longo de uma página mais longa ou poucas páginas, incluindo sítios web simples. Os textos não contínuos podem involver uma tabela a duas dimensões ou um simples diagrama d efluxos. Aceder à informação pretendida pode exigir a utilização de dispositivos de sinalização ou de navegação característicos de textos mais longos ou digitais. As tarefas e os textos podem lidar com situações específicas e não familiares. As tarefas exigem que quem responde tenha de realizar equivalências entre o texto e o conteúdo de informação, algumas vezes baseadas em instruções longas”.
Vão-me desculpar esta longa maçada, mas ela é necessária para compreender os resultados um pouco arrasadores que decorrem dos resultados encontrados para aos adultos portugueses.
Para uma taxa de respondentes que é das mais baixas do survey (39%), Portugal aparece no grupo de países com uma posição consistentemente abaixo da média da OCDE para todos os tipos de competências (literacia, numéricas e adaptativas em termos de resolução de problemas). A relação entre as competências numéricas e de literacia é muito forte (ver gráfico acima).
No que respeita às competências adaptativas, para um score médio na OCDE de 250,6, Portugal fica-se pelos 233,4, agravado quando nenhum dos pais do adulto tem informação secundária (225,1) e francamente melhor quando um dos pais tem educação superior (270,3).
O post já vai longo e não há condições para explorar em maior profundidade o relatório OCDE. Mas há um padrão consistente nos três tipos de competências trabalhadas pelo relatório. O país está sistematicamente abaixo da média da OCDE. O que significa, no fundo, o peso da inércia das baixas qualificações. Este não é um problema que se resolva passando-o para debaixo do tapete. Desistir da qualificação deste universo é fortemente penalizador da qualificação necessária da sociedade portuguesa. E, repito, não é um problema apenas a cargo das políticas públicas. As empresas portuguesas têm um papel a desempenhar na criação de estímulos para que estes adultos procurem a via da qualificação pela formação, seja contribuindo para a cobertura dos custos de oportunidade que todo o adulto enfrenta, seja abrindo caminho a que haja retorno dessa formação. Mas esse é tema para outras conversas.
Nota final: O Jornal Público dedicou a este relatório um excelente artigo de divulgação, datado de 10.12.2024.
ASSIM VAI-LHE CORRER MAL, CARO ALMIRANTE!
O almirante Henrique Gouveia e Melo está a dar as últimas como Chefe do Estado-Maior da Armada e não cessa de dar sinais de uma vontade férrea de se tornar presidenciável. Mas a exibição de vontade, em política, tem de ter recato e um mínimo de inteligência prática, coisa que o almirante vai contrariando em promessas, palavras e obras. A mais recente manifestação de falta de jeito proveio da publicação da imagem acima na revista oficial da Marinha, que ainda comanda; ali se pretende insinuar comparável a D. João II, um dos nossos reis mais notáveis e reputados pela ação estratégica que o fez alcançar o cognome de “Príncipe Perfeito”, num chamamento que tem tudo de descabido, exorbitante e até impertinente. Por este andar, e caso não arrepie caminho rapidamente, o favorito das sondagens corre mesmo o risco de acabar por morrer na praia.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
ADÃO E DALILA
(A cena cultural nacional, corrijo, a cena cultural da corte da capital, está em polvorosa com as declarações viperinas e desbragadas da Ministra da Cultura Dalila Rodrigues sobre o Centro Cultural de Belém, CCB, e não apenas a instituição, mas fundamentalmente atingindo com estrondo o seu antecessor na pasta, Pedro Adão e Silva. Não sei exatamente explicar o aparente ataque de fúria e de libertação de fel que a ministra da Cultura deixou transparecer. Mas quero deixar aqui a contextualização de que não conheço pessoalmente nenhum dos personagens e que tenho a convicção de que o legado de Pedro Adão e Silva foi profundamente centralista e centralizador e por isso é que eu acho que a polvorosa de que falo atrás não é bem nacional, mas claramente um assunto da Corte. As acusações de Dalila Rodrigues são gravíssimas, elas envolvem questões como compadrios, tomada de poder numa instituição, aglomerações de interesses organizados numa espécie de takeover sobre uma instituição que tudo indicava estar em franca recuperação e retoma da importância que já teve. Quero dizer também que não sou ingénuo ao ponto de pensar que a cultura é um mundo imaculado de ausência de grupos e grupinhos que se auto-protegem com energia. É verdade que a reação à decisão da Ministra de afastar a Presidente Executiva do CCB Francisca Carneiro Fernandes por parte dos trabalhadores do CCB e do meio cultural, inclusivamente europeu, foi intensa e vibrante, o que sugere em si a estranheza da decisão. Mas o ponto em que gostaria de insistir é que as declarações viperinas da Ministra não podem ficar pelos títulos dos jornais. A gravidade do que foi dito é tal que ou uma rigorosa e ampla investigação é realizada, com escrutínio o mais possível público, ou então a cultura estará entregue à bicharada e ao simples arbítrio. O ex-ministro já veio a terreiro defender-se e tem todo o direito de o fazer, porque também pode estar aqui a acontecer uma mal-sucedida tentativa de iniciar um novo ciclo cultural, em linha com a posição política do novo governo, e o lançamento de fogo de artifício para encobrir a pobreza da mudança. Não nos esqueçamos que estamos perante um governo minoritário, pelo que a arrogância de tudo mudar parece-me deslocada.)
Existem dois planos para avaliar se as declarações da ministra Dalila Rodrigues são ou não fundamentadas: uma auditoria jurídica é necessária para verificar se a gestão de Francisca Carneiro Fernandes correspondeu aos ditames orientadores da política pública; mas isso não será suficiente. Será necessário realizar uma avaliação independente para verificar se, habilmente ou não e protegido pelo respeito pela lei, o CCB foi alvo do tal takeover de que fala a Ministra (por exemplo, o confronto necessário entre concursos e nomeações). O que impressiona negativamente nas desbragadas declarações da Ministra é não haver nenhuma alusão ou comentário ao tipo de política praticada pela anterior Comissão Executiva. Essa ausência de valoração faz antever o pior. Sugere que qualquer que tenha sido a qualidade da remontada cultural do CCB, a Ministra tinha a decisão fisgada, ou seja aquele grupo de pessoas não lhe agradava, sendo a ideia da mudança de ciclo o cenário escolhido para viabilizar a troca dos “indesejáveis”.
Repito, não ponho as minhas mãos no fogo pela pureza da gestão do CCB e continuo a achar que a cultura está polvilhada de grupos de interesses não escrutinados publicamente. Mas para um governo minoritário, embora deslumbrado pelo poder, cheira-me a arrogância excessiva.
Se esta controvérsia vier a perder-se e não gerar consequências de escrutínio público, então a cultura pertencerá também ao mundo de um faroeste acantonada na manta protetora da capital.