terça-feira, 2 de julho de 2024

DIOGO, O SALVADOR

 

Hoje só dá Diogo em tudo quanto é conversa ou escrita no Retângulo. Pudera, a façanha não foi para menos! Defender três penaltis seguidos no momento decisivo da partida dos Oitavos contra a Eslovénia, depois de ter corrigido brilhantemente uma fífia grave de Pepe evitando a derrota no prolongamento, Diogo salvou Portugal e mostrou que é um dos grandes guarda-redes do mundo. Pessoalmente, habituado a vê-lo exibir serenamente a sua classe no Dragão, não me senti surpreendido, pese embora nunca me tenha passado pela cabeça que a dose seria desta monta. Vou ter saudades imensas da confiança ímpar que ele me garantia como ninguém na baliza do meu Clube!


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

O resto é mais do mesmo, ou seja, um Martínez completamente desajustado em termos táticos e de presença no banco (ridículas muitas das substituições que faz ou não faz, com CR7 a ter um lugar cativo em campo que de todo já não justifica), vários dos nossos atletas mais categorizados em relativa má forma (talvez por razões físicas ligadas à exigência da época nos seus clubes, como acontece com Bruno Fernandes e Bernardo Silva) e a comprovação de que temos muitos bons jogadores mas que os mesmos não são os melhores do mundo nem conseguem jogar como equipa por força das hesitações e das mudanças táticas do selecionador. Presenças positivas foram as de Nuno Mendes e Rafael Leão na ala esquerda e as de João Palhinha e Vitinha no meio-campo, este último retirado pouco depois do intervalo provocando uma enorme quebra de fluidez na transposição de jogo; depois houve um Cancelo capaz do melhor (ótimo até!) e do estranhamente menos bom, uns centrais que se defenderam a si próprios (com Pepe a já dar sinais claros de estar no fim) e uns atacantes substitutos que pouco conseguiram fazer a diferença (exceto no lance do penalti sobre Diogo Jota).


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Venha agora a França, que não parece estar no seu pico de forma e que, sobretudo, talvez se apresente com vontade de tomar conta do jogo, caso em que os nossos poderão aproveitar para explorar a sua técnica de reação ao facto de não terem de ser eles a estarem obrigados a uma posse de bola que manifestamente os amarra e que não parecem em condições de gerir com a devida eficácia concretizadora.

MEIO PÃO E UM LIVRO

 


(Conta-se que Federico García Lorca, na inauguração da biblioteca de Fuente Vaqueros, em setembro de 1931, terá dito algo como isto: “Não só de pão vive o homem. Eu, se tivesse fome e estivesse abandonado na rua, não pediria um pão, pediria antes meio pão e um livro”. Aliás, recomendo vivamente a leitura desse texto de Lorca, que podemos encontrar nos arquivos da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, pois ele é um verdadeiro hino à cultura e à leitura que deveria ser de leitura obrigatória nas nossas escolas. Mas perguntam-me vocês como é que vim aqui parar? O mote para esta reflexão é a sugestiva entrevista ao El Español da escritora saragoçana Isabel Vallejo, autora do autêntico relâmpago editorial que foi praticamente em todo o mundo, incluindo Portugal, O INFINITO NUM JUNCO, ao qual dediquei um post em 6 de janeiro de 2021. Nesse post de 2021, escrevia: “O Infinito num Junco é também uma forma de conversar com os livros, neste caso, com o Livro na sua metamorfose até chegar à produção de hoje, onde temos o problema inverso do da Antiguidade, edita-se muito e em escala, mas é também em massa que se enchem depósitos de edições não totalmente vendidas”. Há milagres editoriais cuja complexidade de explicação transcende o meu modesto pensamento e bagagem de literato. Quem imaginaria, por exemplo, que o livro de Piketty O CAPITAL NO SÉCULO XXI constituísse o êxito editorial alcançado pelo economista e investigador francês, que deve ter ficado deliciado com tal repercussão? O livro de Isabel Vallejo que se lê de um fôlego trazendo para o leitor a importância do livro na antiguidade é surpreendente no seu propósito de reabilitar o livro e a leitura na sociedade digital. O êxito alcançado torna paradoxalmente muito difícil o futuro da escritora como profissional, pois deve ser praticamente impossível atingir o alcance do Infinito num Junco, arriscando a autora a limitar-se a viajar pelo mundo para animar sessões no vasto mercado de traduções que o livro suscitou. A entrevista de Vallejo é singelamente um testemunho pessoal de uma grande sinceridade e completa a meu ver muito bem a leitura do livro. Depois de ler a entrevista, fiquei com vontade de o reler e se algum dos nossos leitores ainda não o leu faça-o com esta entrevista ao lado que vale a pena.)

Um milhão e meio de exemplares vendidos em várias configurações materiais possíveis, incluindo os áudio livros, e tradução em 43 idiomas é obra e explica em parte as mudanças de vida em alguém que duvidava se algum dia seria escritora a tempo inteiro.

O que espanta no Infinito num Junco é a sua capacidade para nos devolver o interesse pelas humanidades, num mundo que parecia tê-las enclausurado num universo limitado de especialistas. Gostei bastante que Isabel Vallejo faça eco na sua entrevista do pensamento de uma filósofa que me é bastante cara, Martha Nussbaum, à qual se deve o pensamento superior de que a arte faz de nós pessoas melhores porque nos ajuda a compreender quem pensa diferente e como é importante compreender quem pensa diferente de nós. Está em causa a cidadania democrática.

Se o mercado reagiu espantosamente a um livro como este isso talvez possa significar que a comunidade de interesses em torno das origens mais profundas do livro e das humanidades em geral é mais vasta do que pensávamos e que pode ser despertada a qualquer momento. Vallejo cita na entrevista um tweet de uma leitora que descreve bem a importância da literatura: “Para mim as Humanidades não me dão de comer, mas dão-me a vida”.

Nesta entrevista que revisita o êxito do livro encontramos ideias seguras para uma educação e formação mais ampla da pessoa humana, garantindo que a composição dos curricula permita sempre alguma flexibilidade para que uma pequena dimensão de humanidades e de educação artística seja garantida.

Irrecusável. Vou reler o INFINITO NUM JUNCO.

 

NA PRESSÃO É QUE SE VÊ SE HÁ ORGANIZAÇÃO

 


(Não quero ser desagradável, mas apetece-me pensar que o jogo de ontem da seleção mostrou sobretudo a coisa rara de um povo de pouco mais de dois milhões de pessoas, a Eslovénia, conseguir gerar uma equipa tão organizada, não querendo ser mais do que consegue ser. E temos de convir que se não fosse a inspiração e trabalho do que provavelmente irá ser um dos melhores guarda-redes de todos os tempos, Diogo Costa, a Eslovénia estaria hoje a comemorar um feito sem precedentes. Eu sei que o conjunto de atletas de renome mundial, em várias modalidades, com origem na Eslovénia é notável para um país tão pequeno e por isso existirá algo de genético naquele povo, talvez sejam as abelhas e o mel, que o colocam naquele pedestal. Em contraponto, do nosso lado, começa-se a perceber duas coisas que talvez estejam relacionadas: por um lado, sob a pressão deste tipo de competição começa a ser visível que a capacidade de orientação e liderança de Roberto Martinez é mais débil do que parecia à primeira vista, pensando sobretudo no que uma Federação endinheirada lhe paga; por outro lado, começa a ser patológica a dependência que a seleção apresenta do ego de Cristiano, fazendo-me lembrar aqueles putos do meu saudoso tempo que pegavam na bola, ela é minha, e se substituíam aos colegas para fazer tudo e mais alguma coisa. Tenho de confessar que nestas coisas tenho pouco de português, tendo a ser frio como uma rocha e por isso fiquei incomodado com aquele afã de Cristiano em querer marcar tudo, incluindo aquele livre na lateral esquerda que recomendaria outra opção que não a tentativa desesperada de marcar um golo, por mais improvável que ele fosse. Se é verdade que se celebra a coragem do dito em querer marcar a primeira das três penalidades depois de falhar a do jogo, e se tivesse falhado a sua carreira teria ali sofrido um rombo irreparável, corremos demasiados riscos, desnecessariamente. E, em matéria de liderança organizativa, Martinez continua a não impressionar, senão vejamos.)

Martinez regressou e acertadamente ao modelo de equipa que se tinha dado bem com uma Turquia pouco cínica, como bem o sublinhou o selecionador turco Montella, e a interrogação estava como é que a equipa se iria comportar contra uma equipa bem menos ingénua do que a Turquia, mas menos fechada do que a Chéquia. O desenvolvimento do jogo permitiu concluir que a nossa circulação de bola continua muito lenta e bastante previsível, largamente dependente da espantosa intuição de Vitinha e da segurança atrás de Palhinha. A articulação Rafael Leão – Nuno Mendes revelava-se bastante mais frutífera do que a observada à direita entre Bernardo Silva e João Cancelo. Ainda que muitas vezes inconsequente, a verdade é que o nosso único fator de criação de desequilíbrios era Rafael Leão, o que era bastante pouco para contrariar uma organização tão afinada como a eslovena. A dependência do ego goleador de Ronaldo começou a notar-se e uma série de maus cálculos de salto e remate começaram a perturbar a nossa estrela, perturbação que haveria de culminar na grande penalidade falhada, embora não deva esquecer-se que Oblak também é de outro mundo.

Na segunda parte, os problemas agravaram-se, com a exceção de um João Cancelo apostado em regressar aos bons velhos tempos. As opções de Martinez continuam discutíveis: a substituição de Vitinha é dificilmente compreensível, ainda que se compreenda a entrada de Diogo Jota para fazer algum estardalhaço na defesa eslovena; tirar Rafael Leão em vez de Bernardo Silva (com Martinez a pensar provavelmente em manter Bernardo para assegurar uma nova função de coordenação a meio-campo) tem que se lhe diga e ainda mais problemático é fazer entrar Francisco Conceição para a esquerda, com emenda uns minutos mais à frente.

A tragicomédia da grande penalidade falhada de Ronaldo poderia ter dominado a cena se, após o deslize de Pepe, Diogo Costa não tivesse feito uma defesa do outro mundo com o pé esquerdo, tal qual guarda-redes de andebol do mais ágil que se conheça, e garantindo a ida para as penalidades. E aí depois da primeira defesa de Diogo Costa a penalidade marcada por Ronaldo deu o mote, esconjurando a tragédia. Depois, o peso da figura imponente de Diogo Costa na baliza impôs-se, perante uns eslovenos atordoados com aquela sombra que parecia ocupar a baliza inteira.

Dará este elã para vencer uma França mascarada de uma grande equipa que já não o é? Ou ficaremos dependentes de um Éder qualquer? Não há nada como testar.

 

segunda-feira, 1 de julho de 2024

TUDO É CADA VEZ MENOS CLARO!

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com) 

Com o abismo a dar todos os sinais de se aproximar, a frase que a vinheta sustenta faz sentido e é de justiça. Não fora o facto de o satânico também incorporar causalidades históricas, dimensões religiosas, responsabilidades morais e lógicas absurdas de toda a ordem que não podem ser escamoteadas e frequentemente apelam a recursos gradativos, tornando tudo indecifrável e virtualmente irresolúvel e deixando o simples ao cuidado de quem se entende senhor de uma superioridade que dispensa qualquer justificação das suas opções e dos seus atos. 

(Bernardo Erlich, https://bernardoerlich.com)

A FRANÇA À DERIVA

 



(Tal como o assinalei no meu último post, esta primeira semana de julho, com uma luz magnífica que me é oferecida a partir da minha varanda de Seixas, vai ser marcada pela azáfama eleitoral da segunda volta em França e por tentar perceber qual vai ser a reação do Partido Democrata, diria melhor do próprio Biden e mulher, ao fracasso e fragilidade da sua presença no debate de há dias com o narcisista inveterado Trump. É natural que assistamos a um verdadeiro turbilhão de ideias geradas por esta aceleração do tempo político. Ambos os acontecimentos significam riscos que convergem num só resultado visível – a fragilidade da Europa e da União Europeia em particular está hoje mais visível do que nunca e, como o referia sabiamente José Pacheco Pereira no Princípio da Incerteza de ontem à noite, tudo isto implica a aceleração da resposta da Europa a essa fragilidade, incluindo uma mais intensa articulação política com o Reino Unido que surgirá também renovado esta semana, malgré le BREXIT. Estou obviamente atento ao pensamento dos mais consistentes. Queria hoje destacar o sociólogo Pierre Rosanvallon, que continua lúcido e a relembrar que os Rocardianos foram o que de melhor a esquerda francesa produziu nos tempos da sua dissolução progressiva, uma influência que o nosso saudoso Presidente Jorge Sampaio nunca rejeitou, e o diretor da New Yorker, o jornalista David Remnick. A eles dedico o post de hoje. O primeiro através de uma entrevista ao Libération e o segundo por via de um artigo publicado na sua revista de sempre a New Yorker.)

As palavras de Rosanvallon na sua entrevista ao Libération são pausadas e refletidas e incidem sobretudo em três aspetos relacionados, mas cuja complexidade de relacionamento justifica frequentemente que tais argumentos e reflexões sejam esquecidos. Os três aspetos invocados na entrevista são: a progressiva caminhada de Macron para uma espécie de “ou eu ou o dilúvio”, claramente suicidário (o Libé chama-lhe dissolução-precipitação) e que tem vindo rapidamente a destruir todo o elã da sua vitória de 2017; as causas da ascensão da frente radical de direita de Le Pen, na sua transição da Frente Nacional para o de Rassemblement National (também nós tivemos uma União Nacional de má memória) e a perda pela esquerda do comboio da proximidade em política.

A sensibilidade analítica de Rosanvallon vem ao de cima para explicar a ascensão Lepeniana: “Em 40 anos, o eleitorado do RN evoluiu consideravelmente desde os seus primeiros bastiões no sudeste da França. Pouco a pouco, o suporte sociológico alargou-se mecanicamente, enquanto os meios populares se transformaram. Na segunda metade do século XX, havia uma realidade social de classe, o indivíduo definia-se em relação ao grupo ao qual pertencia. A classe operária reduziu-se progressivamente em termos quantitativos e transformou-se qualitativamente. O que são os operários para o INSEE (Instituto Nacional de Estatística)? Os motoristas-estafetas, os trabalhadores dos centros de logística, os empregados na manutenção. Todo este mundo do trabalho não se revê no conceito de classe e não faz sociedade solidária. O movimento dos «coletes amarelos» revelou estas formas de deafiliação. A visão da sociedade de classes foi substituída por outras formas estruturantes como as dos coletivos que formam comunidades de experimentação e que exprimem um mesmo sentimento de posição: o campo daqueles que se sentem ignorados, desprezados e não representados. Ser representado querendo desde logo dizer que o que se vive hoje está presente na cena pública e que isso importa”. O partido de Le pen surfou esta onda, fazendo o papel de representante destes homens e destas mulheres sem nome, roubando assim à esquerda o capital da proximidade. Mas como sabemos essa representação é de fachada, como a sua empatia de proximidade é também falsa. Mas a perceção do voto eleitoral é muito influenciada por esta construção de empatia. Em matéria de programa ele é vago, pour cause, e não é substancialmente diferente do que se conhece que está a ser praticado em Itália e na Hungria e já o foi na Polónia

Quanto à esquerda socialista, as palavras de Rosanvallon são duras: “Antigamente, uma secção socialista era um lugar de vida e de formação. Hoje, são antigos colaboradores parlamentares, aspirantes a um posto eleitoral, quadros de partidos. Já não se trata de um partido-sociedade».

Os dados estão pois lançados: “rien ne vas plus”. Espera-se que os afiliados de Macron e da Nova Frente Popular possam escolher com sabedoria quem estará em melhor posição para barrar o caminho aos representantes do RN. Evitar uma maioria na Assembleia será o fundamental, esperando que Macron tenha aprendido a lição. Da Nova Frente Popular espera-se sobretudo sensatez não só na decisão de desistir ou não em favor de alguém melhor posicionado, mas também na escolha da personalidade que possa assumir uma governação se os votos assim o recomendarem-

A crónica de Remnick é uma oportuna reflexão sobre a inevitabilidade da biologia e dos males da trajetória de envelhecimento. A trágica ilusão de que é possível retardar essa inexorável evolução é sabiamente caracterizada pelo Diretor da New Yorker: “De algum modo, os apoiantes de Biden tinham a esperança de que ele desafiaria as realidades do tempo, o melhor possível para contrariar as vaidades e a maledicência do seu criminoso oponente. E por isso se desenvolveu uma tamanha crueldade, o espetáculo de ver um homem de 81 anos, lutando terrivelmente com a memória, com a sintaxe os nervos e a fragilidade, com o seu fácies revelando a sensação emergente de que a sua mente estava a atraiçoá-lo e que como resultado disso ele estava a desiludir o país”. Cruel, sem dúvida, numa situação queestá muito além de que naquela idade há melhores e piores dias. E tanto mais que podemos pensar que a insanidade retórica e narcísica de Trump é bem pior, para já não falar das inúmeras acusações que pendem sobre a sua cabeça, o conjunto de políticas perigosas que pode protagonizar e a sua personalidade inequivocamente autoritária e ameaçadora pode ser bem pior.

Ninguém imaginaria que as eleições americanas se transformassem numa luta contra a ilusão de que a biologia pode ser contrariada. Mas estamos de facto dependentes se vamos cair todos com essa ilusão de que a biologia pode ser contrariada. E espanta como tendo havido tanto tempo para refletir sobre isso, os Democratas sejam apanhados de calças na mão, esperando por um milagre ou elixir da vida longa.

Estranhos tempos estes.