terça-feira, 31 de dezembro de 2024

NAVEGAÇÃO À VISTA PARA 2025

 

                                                    In Adam Tooze, Chartbook

(Neste período em que praticamente toda a comunicação social nos metralha com sínteses do melhor e pior de 2024, a angústia criativa do blogger é manifesta, pois não tem registos e memória para análises retrospetivas tão profundas e exaustivas como as que o jornalismo profissional nos oferece, algumas de grande qualidade e até originalidade. O que está ao alcance deste modesto blogger é algo de menos ambicioso, são sínteses impressivas do modo como as suas próprias reflexões sobre o que o rodeia, nacional e internacionalmente. Nada mais do que isso. No plano político, 2024 foi um ano terrível de adensamento de preocupações quanto ao futuro da democracia, principalmente se a projetarmos no período longo da história da humanidade. Creio que o Daniel Oliveira é o comentador político que mais tem refletido sobre esta nuvem negra que paira sobre nós e que pode caracterizar-se pela conclusão de que a democracia corre o risco de se transformar num período de incidência minúscula, a exceção e não a regra da evolução do tempo longo político. 2024 viu acentuar-se a combinação estranha do autoritarismo político e da aposta libertária no mercado sem entraves ou regulações e a aliança Trump-Musk e seus múltiplos avatares representam simbolicamente essa estranha aliança. Trata-se de matéria abundantemente analisada neste blogue em 2024, pelo que escolherei outro ângulo de visão para fechar este ano. Analisando as visualizações que os nossos posts suscitam percebe-se que os temas da economia são os que menos atraem a família de leitores, o que não deixa de ser uma frustração, pois são os textos que exigem mais pesquisa e maior aprofundamento de análise. Por mais economistas heterodoxos e interdisciplinares que os autores deste blogue se considerem, a verdade é que não deixam de ser economistas por isso. Daí que vá fechar o ano com uma pequena reflexão sobre os rumos assumidos pela economia mundial em 2024, desculpando-me antecipadamente por não ser provavelmente um tema do agrado dominante dos mais resistentes leitores deste blogue.)

Nesta linha de raciocínio, é impensável dissociar os rumos sugeridos para a economia mundial em 2024, claramente ancorados em dinâmicas de anos anteriores e que só observadores muito distraídos ou limitados nas suas perspetivas puderam ignorar, do papel determinante da China na organização tendencial dos fatores dinâmicos da economia mundial em favor do continente asiático. A emergência do poder económico asiático não significa que mesmo dentro dessa área de influência não assistamos a decisivas reorientações do comércio internacional. O melhor exemplo desta evidência é a perda de posição japonesa na indústria automóvel e componentes associadas. É nesse contexto que devemos entender a criação da gigantesca parceria entre a Nissan e a Honda que tudo leva a crer integrará também a Mitsubishi Motors. Na verdade, a perda japonesa é dupla: o poderio automóvel japonês está a ser derrotado pela emergência generalizada da produção automóvel chinesa (devido ao surto do elétrico), mas a sua quota de mercado nos EUA está também a sofrer uma significativa diminuição.

Apesar dos principais conglomerados high-tech terem a origem do seu capital nos EUA, a generalidade dos observadores e analistas do mundo tecnológico reconhece, paradoxalmente, que a China é a potência mundial que melhor terá compreendido o “momento” da mutação tecnológica atual, garantindo-lhe essa perceção uma certa supremacia no que respeita às tecnologias elétricas. Citado por Noah Smith, a quem recorro regularmente para acompanhar estas matérias, Tanner Greer situa o impulse tecnológico chinês essencialmente em três ideias: (i) o poder tecnológico e científico constitui o principal elemento crítico da riqueza nacional e do crescimento económico; (ii) os avanços no poder tecnológico e científico não ocorrem uniformemente, antes acontecem com saltos e limites, gerando-se uma evolução desproporcionado da riqueza e do poder, favorecendo os que avançam primeiro; (iii) a terceira ideia e talvez a mais importante é que estamos no coração dos primeiros passos da nova onda de revolução tecnocientífica.

Este conjunto de tecnologias de que estamos a falar integram a modificação genética e a biologia sintética, a energia solar, as baterias, os motores elétricos e a inteligência artificial. O que a evidência disponível nos mostra é a superioridade evolutiva da China neste campo tecnológico das tecnologias elétricas, dominando inclusivamente a transformação produtiva destas tecnologias.

                                                        (in Noah Smith)

É este contexto que explica, apesar dos problemas internos que a transição económica chinesa apresenta, a aparente bonomia, não diria indiferença, mas quase, com que as autoridades chinesas têm reagido à guerra comercial que Trump tem anunciado para contrariar o poderio tecnológico chinês. Sabemos que a transição demográfica da sociedade chinesa e a crise generalizada do seu setor imobiliário vieram trazer ao modelo económico chinês constrangimentos não corretamente antecipados pelas autoridades chinesas. Sabemos também que o comportamento da produtividade do trabalho na economia chinesa está longe de proporcionar condições adequadas de dinamismo e libertação de recursos. Estima-se que a produtividade total dos fatores da economia chinesa, a que mede a eficiência global das economias, tem evoluído desde 2011 com valores nulos ou negativos de crescimento, sugerindo um problema efetivo de transição.

Mas apesar de tudo isto, a reação das autoridades chinesas às ameaças de guerra comercial, essencialmente conduzida com base no aumento de direitos aduaneiros à importação de produtos finais e intermédios chineses tem sido de grande prudência, avançando, sabiamente em meu entender, que uma guerra comercial dessa natureza não será benéfica para a economia mundial como um todo. A justificação para essa aparente bonomia e efetiva prudência de reação está a meu ver na perceção que os chineses têm de que estão no comando da revolução tecnológica elétrica.

Aliás, é isso que explica o gráfico que abre este post, o qual compara os ritmos de evolução das exportações e importações chinesas em termos reais. Como a China tem exportado a preços decrescentes (caso exemplar dos veículos elétricos), pelo que o valor das suas exportações em volume tem crescido bastante mais do que o seu valor em dólares. O que é surpreendente é a descida em volume das importações chinesas. Este comportamento pode ter várias interpretações possíveis, mas em meu entender é bem provável que funcione aqui a maior autonomia tecnológica chinesa. Exemplo: a China não domina apenas a questão da exportação de viaturas elétricas, domina também a das baterias. Ou seja, é mais autónoma na cadeia de valor e nos produtos intermédios necessários à produção de tecnologias elétricas.

Para a estabilidade da economia mundial, não é saudável quando uma economia de grande dimensão acumula excedentes comerciais permanentes. O mercantilismo aplicado à economia mundial é sempre fator de crispação política. Quando uma economia de grande dimensão gera excedentes, outras terão de incorrer em défices comerciais e, como sabemos, nem todas estarão em condições de sanar esses défices, como os EUA, com a atração de capital induzida pela reserva de valor da sua moeda.

Por isso, entendo que o mundo ocidental, Europa e EUA, deve pensar melhor a sua estratégia de abordagem à superioridade tecnológica chinesa. Andar longo tempo distraído com as evidências á frente do seu nariz já foi mau e imprevidente. Pensar mal a abordagem ao problema ainda será pior.

Nota final

Feliz e esperançoso ano para todos os leitores e Amigos deste blogue.

Alguém próximo me fez chegar a mensagem de que o ano de 45 ao quadrado = 2025 é considerado como o ano-quadrado perfeito. Ele é também igual ao quadrado da soma de todos os algarismos do sistema de numeração decimal de 0 a 9. É também igual ao somatório dos cubos de todos os algarismos do sistema de numeração decimal. Diz-me a mesma fonte que o último ano-quadrado perfeito aconteceu em 1936 e que o próximo só acontecerá em 2116.

Por isso, citando a minha fonte, Feliz e Esperançoso ano de 45 ao quadrado.

E esta?

 

2025 À PORTA

(Riki Blanco, https://elpais.com) 

O futuro é, por definição, marcado por uma incerteza radical, seja porque fundamentalmente marcado pela imprevisibilidade seja porque largamente portador de concatenações diferentes ou de novos fatores determinantes para o sentido de evolução das sociedades. Neste quadro, o período altamente complexo e conturbado que atravessamos apenas agrava tais perspetivas de essencial navegação no desconhecido. Ainda assim, e naturalmente impotente perante o exclusivo papel que terá de caber ao futuro de se ir desvendando a si próprio, julgo possível apontarmos hoje alguns sinais que são já bem detetáveis, e assim tidos por elementos de presença garantida, nesta passagem para 2025; tentarei, de seguida, enumerar alguns.

 

Abro as correspondentes imagens abaixo com aqueles que serão, ou continuarão a ser, os maiores agentes diretos do mal em 2025. Prossigo com uma referência à estranha forma como um deles, Donald Trump, passou por cima do seu urbano vice-presidente eleito (J. D. Vance) para empoderar o maior perigo à solta no mundo atual, o multimilionário e extremista descontrolado que é Elon Musk. Depois, a nossa triste Europa, cada vez mais incapaz de agir perante as ameaças que se lhe irão deparar, quer em termos de defesa comum quer no plano de uma estratégia competitiva consequente. Acrescem ainda as guerras que, diz quem sabe, não acabam mas somente se interrompem (como vimos e veremos na Ucrânia e no Médio Oriente, para só referenciar os casos bélicos mais badalados) e nunca prescindem da afirmação de novos protagonistas com ambições expansionistas (o sonho de um Império Turco permanece bem vivo!).

(Ulises Culebro, https://www.elmundo.es)

(Jeff Danziger, http://www.nytimes.com)

(Peter Schrank, https://www.economist.com)


(Nicolas Vadot, http://www.levif.be)

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

 

Termino este último post de 2024 com um voto de Saúde, Paz e Amor para uma Humanidade que tão carenciada está de encontrar razões de alento neste mundo que cada vez parece menos capaz de se endireitar – resistamos, todavia...


(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

ÚLTIMA LEITURA DO ANO, FICÇÃO À SOLTA

Luísa Costa Gomes (LCG) é uma das nossas grandes escritoras de ficção. Não foi, por isso, com grande surpresa que com ela deparei na escolha de “Os Melhores de 2024” na “Revista do Expresso”, embora não deixando de ser especialmente digno de registo o facto de este seu novo livro de contos (“Visitar Amigos e Outros Contos”) ocupar o lugar primeiro na componente “Livros”. Aquando das minhas compras natalícias, que sempre incluem várias e diferentes obras destinadas a ofertas desejavelmente dirigidas com sentido a pessoas de família ou chegadas, acreditei convictamente na excelente crítica de José Mário Silva e adquiri dois exemplares, um para mim próprio e outro para a minha filha mais nova e mais propensa a questões de escrita. No que me toca, e passado o Natal, devorei aquelas páginas de magnífica elaboração em torno de temas variados e termino assim 2024 com este assinalável marco de qualidade literária como fecho com chave-de-ouro de uns doze meses em que a ficção esteve menos presente do que habitualmente nos meus acessos de cabeceira. E quero sublinhar quanto esta obra de LCG me encheu as medidas, quer pela sua diversidade motivacional (do inferno das obras em casa às memórias de infância, das empregadas domésticas à ligação aos gatos), quer pelo seu fino trabalho retratista em torno dos personagens trazidos à cena (de uma árdua resistência ao envelhecimento ao medo dos reencontros), quer porque não faltam também reminiscências e toques múltiplos de algumas dinâmicas coletivas que nos têm marcado indelevelmente (do Portugal rural anterior ao 25 de abril à ditadura do proletariado), quer finalmente pela riqueza da abordagem de certas dimensões formais em moldes só ao alcance dos fora de série (da descrição dos trabalhos braçais das empregadas domésticas a toda a “luminosa maravilha” que provem da prosa de LCG). Simplesmente recomendável, ponto.

NÃO ESTAREMOS A PEDIR DE MAIS AO ENSINO PROFISSIONAL?

 


(A história completa da introdução do ensino profissional em Portugal como modalidade de qualificação inicial de jovens está por fazer, o que não espanta pois está em causa uma mudança tardia no Portugal democrático. Por razões profissionais, convivi durante anos e anos com o velho desabafo em entrevistas e sessões públicas de que Portugal deixara indevidamente cair o ensino técnico-profissional do antigo regime. Não foi fácil recriar o ensino profissional num quadro distinto de igualdade de oportunidades, abrindo na qualificação inicial de jovens uma nova via de acesso, que pudesse ser alternativa à via dos cursos científico-humanísticos, sem que essa possibilidade significasse estigmatização e quebra de oportunidades de construção de uma carreira profissional. A experiência começou curiosamente com a emergência de escolas profissionais provenientes da sociedade civil, com parcerias fortemente ligadas aos meios local e empresarial e, só mais tarde, a criação dos cursos profissionais nas escolas públicas veio, com ajuda do Fundo Social Europeus em sucessivos períodos de programação, dar um enorme impulso à oferta dessa modalidade de qualificação inicial. O modo como estas duas ofertas, escolas profissionais privadas e cursos profissionais nas escolas públicas, têm convivido não será tema deste post, embora o possa ser numa outra reflexão. O tema de hoje é uma reflexão sobre o alcance do ensino profissional como via de qualificação inicial de jovens, inspirada pela publicação de uma infografia da DGEEC, Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, que analisa a transição entre o ensino secundário e o ensino superior entre os anos letivos de 2022-23 e de 2023-24. A questão que orienta esta reflexão pode ser assim enunciada assim -estaremos a pedir ao ensino profissional o que realmente ele pode dar ou estaremos irrealisticamente a pedir coisas que ele não pode dar, pelo menos neste estádio do seu desenvolvimento?)

 A resposta a esta questão exige alguma contextualização.

A criação das primeiras escolas profissionais privadas e da sociedade civil assentava num racional muito claro. Pretendia-se desenvolver um ensino de qualidade de natureza mais prática e mais ligada à dinâmica concreta dos processos de trabalho e, com as parcerias de constituição das mesmas, visava-se criar melhores condições de empregabilidade, garantindo que as empresas acompanhavam de início o processo de qualificação desses jovens. De certo modo, o ensino dual do sistema de aprendizagem era a inspiração e pretendia-se agora fazer evoluir a formação de dupla certificação para níveis mais elevados de qualificação, designadamente o nível ISCED 4.

Não pode dizer-se que este racional tenha sido substancialmente alterado com a criação da formação de dupla certificação nas escolas públicas, designadamente com a criação dos cursos profissionais. Mas é um facto que o ensino profissional haveria rapidamente de ser considerado um instrumento poderoso de combate ao insucesso e abandono escolar, já que Portugal partia de valores algo vergonhosos na comparação com a União Europeia. A espantosa evolução positiva que o país teve nessa matéria, a ponto de ultrapassar a meta europeia dos 10% de abandono escolar, atingindo o valor de 6% (valor que temos tido evidente dificuldade de tornar sustentado), não pode ser dissociada do incremento da oferta de cursos profissionais e do número de jovens participantes e diplomados com esses cursos. Claro que no início foram identificadas más práticas de encaminhamento demasiado precoce de alunos do secundário com más prestações e as próprias escolas públicas foram forçadas a realizar adaptações a um tipo de oferta para qual a maioria dos docentes não tinha especial competência.

 Em simultâneo com este decisivo impulso da oferta, a procura social dos jovens e das famílias pelo ensino profissional foi evoluindo de forma bastante mais lenta, já que a estigmatização face aos cursos científico-humanísticos era demasiado profunda para desaparecer como que por magia.

Mas o entusiasmo político foi tal que a meta de estabelecer a paridade de participantes entre os científico-humanísticos e os profissionais e as formações e de dupla certificação em geral foi assumida e sabemos como tem sido difícil concretizá-la. A procura do ensino profissional tudo indica que terá entrado num “plateau” de evolução, sugerindo a exigência de um novo impulso de melhoria da oferta e de convencimento da procura que está longe de estar consumado. Em meu entender, projetando a situação atual, o tal “plateau” de evolução tenderá a manter-se.

No ponto de vista da oferta, o PRR avançou com uma medida excecional que foi apoiar a instalação de Centros Tecnológicos Especializados de suporte às escolas com cursos profissionais. O relevo indiscutível que esta medida veio trazer em termos de adaptação tecnológica das escolas está a ser relativamente ensombrado por duas evidências: muitas escolas estão com sérias dificuldades de concretizar os investimentos aprovados (a taxa de execução da medida é muito baixa) e a sua aprovação foi realizada a nível municipal sem qualquer articulação evidente com o esforço de concertação e racionalização regional da oferta de cursos profissionais que algumas CIM estão a realizar nos territórios NUTS III.

Os números que a já mencionada infografia da DGEEC nos anuncia não podem deixar de ser compreendidos à luz destas considerações. Assim, para os alunos dos cursos científico-humanísticos, 73% dos alunos que concluíram o secundário em 2022-23 estavam no ano seguinte a frequentar uma unidade de ensino superior – 24% não as frequentava; quanto aos alunos dos cursos profissionais, 78% não estava a frequentar o ensino superior – 10% apenas estava a frequentar uma unidade de ensino superior e 12% estava a frequentar um curso CET ou CTeSP. A divergência é inequívoca e avassaladora.

Entretanto, a chamada formação pós-secundária, inicialmente os CET (Cursos de Especialização Tecnológica) e depois os CTeSP (Cursos Técnicos do Ensino Superior Profissional) tinha surgido no horizonte e, tendo os CTeSp aparecido entre outros motivos para dar uma linha de continuidade de estudos aos cursos profissionais, pode dizer-se que não conseguiram inverter decisivamente aquela tendência.

Claro que os leitores mais avisados dir-me-ão que essa não propensão dos diplomados com cursos profissionais para prosseguir estudos no ensino superior terá como outra face da medalha positiva a sua empregabilidade.

 O meu ponto de reflexão consiste em expressar que estes números do não prosseguimento de estudos não me impressionam e não são surpresa para mim. Em primeiro lugar, os motivos que determinam a formação da procura do ensino profissional são exatamente os mesmos que podem justificar o não prosseguimento de estudos superiores. O apelo a uma formação mais técnica e prática e a melhoria das condições de empregabilidade não serão propriamente os apelos ideais a um prosseguimento de estudos superiores. Em segundo lugar, as melhorias de retorno de remuneração conseguidas com esse prosseguimento podem não ser estimulantes. Em terceiro lugar, é discutível que as instituições de ensino superior estejam preparadas e capacitadas para abrir portas a essas trajetórias de formação, sobretudo na medida em que as suas exigências de formação teórica de base podem ser incomportáveis e excessivas para a formação de base dos cursos profissionais.

Por isso, em resumo, não me parece que o não prosseguimento dominante para estudos superiores constitua o problema central da sua transição atual. A questão fundamental estará na combinação da melhoria das suas condições pedagógicas e de aprendizagem e o concomitante reforço da procura social para esses cursos, de modo a ultrapassar o tal “plateau” ou mesmo retrocesso de frequência. Afinal, não é de um instante para o outro que se cria um sistema dual de ensino sem estigmatizações associadas. Aliás, seria interessante analisar que taxas de prosseguimento de estudos superiores têm os CET e os CTeSP, já que algumas destas ofertas acontecem em ambientes de instituições politécnicas (prometo que regressaria a este assunto com evidência, acaso ela exista).

Todas estas considerações estão em linha com a minha ideia, já por repetidas vezes apresentada em público, de que o sistema educativo está numa decisiva transição, a sua evolução para um sistema de educação e formação, que não dispõe ainda de uma governação consequente.
 

domingo, 29 de dezembro de 2024

JURADO Nº2

 


(Vá lá saber-se a razão pela qual um filme desta dimensão e qualidade aparece lançado apenas numa plataforma de streaming, a MAX ex HBO e é assim condenado a não passar por uma sala de cinema. Serão razões obviamente discutíveis, sobretudo porque a decisão é tomada essencialmente tendo em conta a sociedade americana e, por essa via, condena um filme desta qualidade a ser visto apenas em casa e apenas nas casas em que a MAX tem assinantes. De que filme estamos a falar? Falo do último filme do mestre Clint Eastwood, não sabemos se será ou não o seu último filme, até porque a longevidade criativa de Eastwood é notável, prosseguindo um caminho muito próprio, num registo que classificaria de Republicano à antiga, hoje que o partido de Eisenhower e outros Grandes está reduzido a farrapos pela ofensiva MAGA de Trump e seus afins. O Jurado nº 2 é uma história sobre a consciência de cada um e sobretudo uma parábola sobre a justiça e sobre o modo como nos posicionamos face à mesma.)

A história é contada magistralmente e com o rigor despido de formalismos próprio de Clint Eastwood, cada vez mais despojado de artifícios de imagem. Uma jovem aparece morta numa ravina de uma estrada caracterizada pela frequência com que acidentes com veados são aí registados. A reconstituição do período que antecede a morte mostra uma discussão violenta entre a jovem e o namorado, alguém com cadastro de violência e criminalidade, e a evidência de que o namorado terá seguido a jovem no seu carro quando esta decide numa noite de temporal desabrido regressar sozinha e a pé a casa. A acusação policial não consegue demonstrar que o namorado tenha seguido a jovem até ao local em que apareceu morta e uma acusação é construída em função da discussão anterior, do cadastro do namorado, da evidência de que a jovem terá sido seguida pelo namorado e pela indicação de uma testemunha que corrobora perante a política que o acusado foi visto no local do acidente.

A contradição dramática de toda a história resulta do facto de um dos jurados, Justin Kemp (notavelmente assumido por Nicholas Hoult) ter tido nessa mesma noite um embate com um vulto que tanto poderia ter sido um dos veados frequentes naquela estrada ou um corpo humano.

A partir dessa evidência, a luta incessante entre a consciência de culpa do jurado e a ideia de justiça domina todo o filme, luta essa que se transmite ao próprio corpo de jurados, no qual a aparente unanimidade de decisão de considerar culpado o namorado da jovem é lentamente desconstruída, com o jurado nº2 a exercer esse papel de colocação da dúvida na decisão. Em simultâneo, desenvolve-se uma outra dialética entre a advogada de acusação pública (que está em plena campanha para eleição para Procuradora), assumida também com um rigor notável por Toni Collette e o advogado de defesa.

Com o desfecho aparente de uma acusação por unanimidade do corpo de jurados (com o jurado nº 2 a sucumbir ao argumento dominante), a história parece encaminhar-se para um fim possível, com Justin Kemp a protagonizar uma cena de aparente felicidade familiar com a mulher e o filho recém-nascido, pressupondo o espectador que a má consciência o possa atormentar para todo o sempre. Um bater seco na porta da casa introduz na cena um sobressalto evidente e quando a porta se abre, a agora Procuradora e ex-advogada de acusação troca com o jurado nº 2 um longo diálogo sem palavras, que sugere que a justiça terá vencido na própria luta de consciência da Procuradora entre um caso encerrado e a reconstituição da verdade.

É um filme em que durante cerca de 1 hora e 54 minutos não há um plano supérfluo ou uma imagem que esteja a mais. É um Clint Eastwood cada vez mais depurado, como se a passagem do tempo lhe tivesse assegurado essa capacidade de filmar apenas o essencial, que no caso vertente é o desenvolvimento da dúvida de consciência moral do jurado.

Não imagino qual o número de espectadores que poderia ver este filme se ele não tivesse sido condenado aos limites de uma plataforma de streaming. Talvez até estivesse condenado a integrar aquele grupo enorme de filmes notáveis que não resistiram a uma semana ou duas de permanência do cartaz. Mas o valor de Eastwood para a história do Cinema justificaria outra decisão. Assim sendo, só me resta recomendar a quem tenha a assinatura da MAX que veja este filme, que nos oferece um Clint Eastwood no expoente do seu despojamento formal.
 

COMO FOI 2024?

 
(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es) 

Transijo mais uma vez com essa rotineira mania generalizada de se escolherem os melhores do ano, que tantas vezes são sinónimo de qualidade ou revelação mas também podem ser aspetos salientes que foram destaque nos doze meses independentemente de juízos de valor. A escolha que aqui faço é claramente mais deste segundo tipo e decorre da perceção, que partilho com o meu colega de blogue, de presentes e larvares razões de pessimismo a grassarem à nossa roda e um pouco por todo o lado. E porque claramente prefiro os sinais de futuro (mesmo que péssimos ou até horripilantes) à “espuma dos dias” ou à valorização de non entities que estão de passagem e nada acrescentam, opto por ir ao (des)encontro da maioria das nomeações que encontrei por esses nossos jornais adiante (chega a haver que considere facto político nacional do ano a aprovação do Orçamento de Estado para 2025!). Vamos então ao assunto!

 

O caso mais benigno, sobretudo pela irrelevância nacional e porque os nossos problemas valem o que valem no contexto que nos carateriza, é o da personalidade nacional – maioritariamente, os nossos analistas apontaram Luís Montenegro (que teve o seu mérito na gestão tática que o conduziu ao poder, embora pouco mais se lhe possa apontar em termos de valores e ideias) mas eu tendo a preferir o original à cópia (citando João Miguel Tavares), ou seja, António Costa. E faço-o pelo que de revelador de “benefício do infrator” contem a sua presença na cena pública ao longo de 2024 – um homem que delapidou despudoradamente e sem arrependimento uma maioria absoluta, que esteve no governo durante sete anos e meio sem esboço de qualquer ímpeto reformista, que saiu empurrado por um processo escandaloso e no mínimo estranho quase prometendo que tão cedo não o apanhávamos por aí, acaba o ano como Presidente do Conselho Europeu numa evidente manifestação de quanto os compromissos e concessões sem princípios crescem, mas remuneram, na Europa e na política de hoje e, portanto, de um estado de depauperamento e falta de foco das lideranças europeias que faz temer pela sobrevivência do projeto comunitário.

 

Os restantes casos são algum do “eixo do mal” que enche os dias que correm e prenuncia um futuro imprevisível e pouco auspicioso. Por cá, a extrema-direita de Ventura a condicionar, com um certo brilhantismo que porém não atende à verdade e ao respeito das regras do jogo, o Parlamento e a atividade política. Lá por fora, as eleições americanas a estarem no centro dos interesses dos cidadãos do mundo e a vitória de Trump a acabar por ser um resultado que se foi tornando inevitável face à miséria tática de Biden e dos Democratas. Mas deste acontecimento o que parece tender a emergir como consequência mais preocupante é a ascensão de Elon Musk, um “presidente não eleito” que se vai afirmando pelo mundo (veja-se o seu apoio nada despiciendo à AfD alemã e a Farage no Reino Unido) como “um agente do caos” (cito o “El País”, mas também poderia ir atrás do “El Mundo” que o qualifica como “o Júlio César do Século XXI”). Acresce que a minha verdade vai também no sentido de não deixar que 2024 passe sem que se lhe atribua uma outra responsabilidade histórica, traduzida esta na forma selvagem e ilegal à luz do direito internacional como Israel se atirou ao Hamas em Gaza e ao Hezbollah no Líbano e prosseguiu pela Região uma estratégia expansionista (Cisjordânia e Síria, mas não só) que escapa a quaisquer mínimos de convivência global e coloca o seu primeiro-ministro Benjamin Netanyahu como um dos maiores exterminadores do século.



Penso que fica bem à prova a minha discordância em relação a quantos olham para a realidade que os cerca à luz de olhos míopes e lógicas de curto prazo. O que é especialmente complexo e gravoso num momento de mudança vertiginosa e em que já nem as bases da ação política ou da convivência entre povos escapam. Fica o alerta!

sábado, 28 de dezembro de 2024

NOTÍCIAS PROMISSORAS PARA A ATRAÇÃO DE TALENTO

 

 (Indicador global)

(Os índices e indicadores que dão origem à publicação de rankings internacionais valem o que valem, e pode ser pouco ou pelo menos sugerir a necessidade de aprofundamentos de análise. Mas todos reconhecemos o caráter sedutor desses rankings internacionais, sobretudo para uma imprensa ou redes sociais interessadas em informação de síntese e passível de tratamento gráfico do mais sofisticado ao mais vulgar. A revista The Economist é conhecida entre outras dimensões pela publicação regular de rankings em vários domínios e, além do tratamento gráfico muito profissional, os editores regra geral fazem acompanhar tais indicadores de textos curtos mas muito incisivos. No caso vertente, em simultâneo com a publicação dos três rankings de hierarquização mundial dos países, produto per capita a preços correntes, produto per capita à paridade de poder de compra e produto por pessoa/hora empregada, a revista publica um outro indicador em que, em termos promissores, Portugal aparece muito bem colocado, aliás em consonância com outros países da Europa do Sul. Dir-me-ão os leitores mais céticos, mas que raio de indicador é esse em que Portugal emerge bem posicionado? Não estamos de facto habituados a sentir conforto com esse tipo de rankings internacionais. O indicador de que estamos a falar é um índice sintético que mede a evolução dos países em termos de capacidade para a atração de talento. A informação vale o que vale, mas não deixa de representar um critério possível para medir a consistência do nosso posicionamento internacional.)


                                            (Indicador per capita)

O índice calculado pelo Economist mede o potencial de atração de países interessados na captação de migrantes mais qualificados, fazendo-o segundo a perspetiva dos que poderão responder, positiva ou negativamente, a esse apelo de deslocamento. O cálculo abrange 74 países e, na prática, calcula a variação potencial da população com formação superior se os licenciados migrantes responderem positivamente e com satisfação ao apelo da atração. Essa resposta é obtida através de uma sondagem mundial Gallup, que incorpora respostas de ce cerca de 150.000 pessoas em mais de 150 países. Para ajustar o indicador à ideia de atração de talento, são apenas consideradas as respostas de gente com formação superior. O indicador é calculado em duas versões, uma em termos totais e outra em termos per capita por indivíduo com formação superior.

O cálculo é realizado no período compreendido entre 2010-2012 e 2021-2023, concluindo a revista, e os gráficos selecionados atestam-no com pertinência, que no período em causa a capacidade de atração de talento triplicou, o que não é nada despiciendo.

Podemos questionar o que é que poderá estar subjacente a esta notícia promissora?

Não existindo propriamente uma política coerente de atração de talento (a política dos nómadas digitais foi relativamente fugaz), tendo a interpretar os dados do Economist como o resultado de efeitos indiretos de variáveis que terão contribuído para a avaliação positiva dos que admitem a possibilidade de mudar de país.

O primeiro elemento a considerar é a influência exercida pelo próprio turismo. A atratividade das atmosferas urbanas das principais cidades portuguesas projeta-se em grupos de população que podem ser sensíveis ao tema da mudança de país e de residência, podendo uma experiência turística que seja ser fator de geração de opinião no campo da sondagem da Gallup, seja por experiência direta, seja por comunicação entre amigos e conhecidos.

Devemos ter em conta que o indicador mede um potencial e não uma efetiva atração de talento, mas se esse potencial se alguma vez se concretizar em atração efetiva teríamos aqui uma externalidade positiva evidente do turismo, que seguramente agradaria bastante às gentes do turismo.

O segundo elemento potencialmente explicativo situa-se em meu entender na evolução combinada das empresas high-tech em Portugal e da formação avançada e evolução da investigação e desenvolvimento, designadamente da realizada em ambiente empresarial (a chamada I&D in-house). Existe uma procura efetiva de talento nesta área, aliás com efeitos na média de remunerações salariais e, por vezes, efeitos de rapina no emprego nacional já instalado. Não existe informação consistente que possa mostrar que a experiência de alunos Erasmus em Portugal possa ter alguma influência nesta avaliação que o indicador do Economist nos apresenta.

E, como terceiro fator, não desdenharia invocar o ambiente e imagem global do país que tem melhorado nas duas últimas décadas, sobretudo depois que a crise das dívidas soberanas foi debelada e que os níveis de endividamento começaram a baixar em termos de peso no PIB.

O que desperta curiosidade e atenção nestes resultados é o facto deles acontecerem na presença de fatores adversos a essa atração de talento, como o são a crise habitacional para os casais jovens menos adinheirados e a própria estrutura salarial do país, embora neste caso o segmento em causa pode antecipar melhores salários do que essa média mais baixa.

Mesmo insistindo de novo na ideia de que se trata de um indicador de atração potencial e não de atração efetiva, não posso deixar de registar que acabo o ano com pelo menos um indicador positivo e promissor, embora tal como o meu último post o evidencia, no quadro de um pessimismo estrutural quanto à situação internacional.

Mas a verdade é que podemos ter aqui um efeito de nicho positivo no quadro de um ambiente globalmente desfavorável.

A monitorizar no futuro que se abre diante de nós.
 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

A ÚLTIMA LEITURA DE 2024

 

(2024, para além de ter sido um ano incómodo pleno de tempestades perfeitas que anunciam o pior para 2025, não foi para mim um ano particularmente rico em novas leituras, tamanhas foram as exigências das tarefas profissionais, cada vez mais consumidoras do tempo disponível após as horas de sono, hoje claramente mais necessárias do que no passado de todas as energias. O tema da compreensão do populismo e da degenerescência democrática na Europa e no mundo dominou esse panorama de novas leituras e cada vez mais também a história económica é convocada para compreender melhor o presente. A última leitura de 2024 vai neste último sentido. Está focada no período entre as duas guerras mundiais, 1919-1939, e é assinada pelo historiador E.H. Carr e tem por título “The Twenty Years’s Crisis, 1919-1939. A obra teve a sua primeira edição publicada em 1939 e a edição que li é uma reedição desta obra datada de 2016, enriquecida com um longo prefácio e uma excelente introdução à obra de E.H. Carr de autoria de Michael Cox, professor emérito de Relações Internacionais na London School of Economics. O período estudado por Carr sempre me fascinou, sobretudo pelo potencial enorme de aprendizagem que o seu estudo proporciona, não numa perspetiva de procura preguiçosa pela analogia histórica fácil, mas pela relevância do contexto em causa. Aliás, a obra de Carr constitui, do ponto de vista das relações internacionais e da ciência política internacional, o complemento justo de uma outra obra, já abundantemente referida neste blogue, porque a considero fazer parte do conjunto mínimo obrigatório de leituras exigidas a um qualquer economista que preze a dimensão histórica da teoria económica. Refiro-me obviamente à obra de John Maynard Keynes, The Economic Consequences of the Peace, originalmente publicada em 1919.)

O meu interesse pelos escritos de E.H. Carr vem de há muito, mas nunca tinha lido sistematicamente e devidamente contextualizada a sua obra sobre este período. Quando numa leitura rápida de The Road to Serfdom de Hayek, publicado em 1944 anotei que Carr era considerado por Hayek um dos mais perigosos adversários da liberdade política e do liberalismo económico no Reino Unido, sobretudo devido ao seu apreço pelo planeamento económico e pelo estudo aprofundado da União Soviética no plano económico dos primeiros planos quinquenais, o meu interesse pela obra de E.H. Carr aumentou em rigorosa e inversa correspondência com as acusações de Hayek.

Mas o interesse da presente obra de Carr não está nessa abertura ao planeamento económico e à sua capacidade de então de compreensão do modelo económico soviético. O interesse está no estudo aprofundado desse período entre as duas guerras e no esforço interpretativo desesperado do autor de pensar as relações internacionais num modo tal que contribuísse para a não reedição da guerra, como afinal veio a acontecer com o início da Segunda Guerra Mundial.

Tem aqui interesse recordar os três fatores críticos que poderiam segundo ele transformar uma crise potencial numa crise perigosa e ameaçadora: (i) a existência de estados poderosos e ressentidos situados fora da ordem internacional; (ii) uma disrupção profunda e sustentada do funcionamento da economia global; (iii) e finalmente a não vontade ou incapacidade de qualquer potência singular ou hegemónica para organizar a ordem internacional. O que temos neste tríptico de fatores é uma espécie de teoria geral sobre a estabilidade e a instabilidade globais e na prática sobre as razões pelas quais os sistemas internacionais podem colapsar.

Confesso que não sou um adepto fervoroso sobre as analogias históricas de tempos distintos, mas é de facto impressionante a atualidade deste tríptico de fatores adaptados à ordem internacional de hoje, a saber: estados poderosos e ressentidos fora da ordem internacional ou em risco de serem a isso conduzidos; disrupção evidente da economia global; e indeterminação sobre a hegemonia americana, com gente interessada (Musk e seus muchachos e comparsas) em substituir essa hegemonia pelo poder dos negócios e da tecno-economia. Considero arrepiante esta similaridade.

Carr, tal como Keynes (embora com credos ideológicos e económicos opostos), era particularmente crítico do modo como as negociações das reparações da Primeira Guerra Mundial colocaram a Alemanha numa situação crítica de solvência impossível, cujos problemas haveriam no quadro de uma trajetória tipo tempestade perfeita de conduzir à ascensão do nazismo. Mas o que é notável no tríptico de Carr é a sua consistência interna e a sua profunda atenção ao tema do presente entendido como uma combinação de história e poder.

Um outro tema amplamente desenvolvido no livro é o tratamento aprofundado do eterno conflito entre utopismo e realismo na política das relações internacionais. O capítulo segundo da obra é dedicado ao tema Utopia e Realidade e constitui um verdadeiro tratado de sabedoria aplicada às relações internacionais. Nas palavras do próprio Carr: “A antítese entre utopia e realidade – um balanceamento entre evoluir e afastar-se do equilíbrio e nunca verdadeiramente atingi-lo – é uma antítese fundamental que se revela em muitas formas de pensamento. Os dois métodos de abordagem – a propensão para ignorar o que existiu e o que existe em favor do que deveria ser e a propensão para deduzir o que deve ser a partir do que existiu e do que existe – determina atitudes opostas relativamente a qualquer problema político”. A luta de sempre entre imaginar o mundo desejável para desenhar uma dada política e conceber uma política para se ajustar às realidades do mundo está aqui representada nestas palavras de Carr. 

O historiador esforça-se ao longo de toda a obra por demonstrar que a solução não está em responder a um qualquer dos extremos em confronto, mas está antes em conseguir uma combinação se possível equilibrada entre os mesmos.

Só este tema do utopismo e do realismo em política internacional, mas não só nessa, também na política interna, conduzir-nos-ia a uma imensa variedade de posts. A refundação da esquerda democrática anda por este tema e a procura de uma nova ordem internacional que responda positivamente ao tríptico de Carr são exemplos dessa aplicação possível.

Mas não pude deixar de pensar no que pensaria o historiador e o também diplomata e especialista de relações internacionais numa paz possível para a Ucrânia, afastando a hipótese de uma Terceira Guerra Mundial. Talvez um diplomata qualquer tenha lido a obra de que vos falo hoje e procure dar sentido às negociações possíveis. Mas, rapidamente e em jeito de autocrítica sou levado a pensar que não estou a encontrar o ponto certo de equilíbrio entre utopismo e realismo.

O que é preocupante é que o Tratado de Versalhes que definiu as reparações e indemnizações da Primeira Guerra Mundial e as condições de fim da Guerra Fria e ameaças atuais à paz internacional são contextos que podem conter a sua própria destruição. Versalhes culminou na Segunda Guerra Mundial e na ascensão do nazismo. O que nos espera na disrupção atual?

Por aqui se pressente o pessimismo das minhas previsões para 2025.
 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

HARARI E AS REDES DE INFORMAÇÃO

O israelita Yuval Noah Harari é um dos grandes intelectuais e pensadores do tempo presente. Acabei por estes dias a leitura da sua mais recente obra, “Nexus – uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, e voltei a nela confirmar a espessura de que é feito e o seu grau de conhecimento e erudição. O livro em causa é importante e vale bem a pena, isso é matéria inquestionável; não obstante, o tratamento do tema talvez fique um tanto aquém das expectativas criadas, designadamente porque a obra-prima de Harari – “Sapiens – Breve História da Humanidade” – as colocara a um nível praticamente inigualável, por um lado, e porque a matéria nuclear é aqui mais difusa, hermética e toldada pela incerteza. Importará sobretudo relevar como contributo determinante de Harari a sua lúcida e pertinente chamada de atenção para os riscos associados à Inteligência Artificial, “a primeira tecnologia na história que pode tomar decisões e criar novas ideias por si” – para uma perceção algo vulgarizada da tese do autor, e que não dispensa uma leitura mais cuidada da integralidade dos argumentos, vejam-se a recente publicação de uma entrevista sua na “Visão” ou uma outra concedida à revista do FMI e comentada no respetivo blogue (“Café Economics”). Em suma: os contributos de Harari são centrais para nos ajudarem a enquadrar a atual mudança em movimento acelerado e a dar algum esboço de sentido à nossa profunda incapacidade para compreender os seus potenciais desenlaces.

BOXING DAY

 


(Não sou particularmente especializado nas singularidades britânicas, que são muitas e variadas. Mas não deixo de reconhecer que a resiliência britânica ao passar dos tempos é deveras impressionante, adulterada aqui, comprometida acolá, mas recordando-nos sempre que são uma ilha, ainda que profundamente internacionalizada, não toda, mas especialmente a aglomeração londrina que continua a sua sanha de concentração. O Boxing Day é uma dessas singularidades, talvez em Portugal mais conhecida pelo apelo do futebol, em que a liga inglesa nos contempla normalmente neste dia com jogos de arrasar que fazem a delícia dos adeptos. Mas retirando o futebol, este ano com atrativos suplementares, quatro treinadores portugueses captam as atenções, Marco Silva, Nuno Espírito Santo, Ruben Amorim e Vítor Pereira, a queda vertiginosa do City de Guardiola, as agruras de Amorim para estabilizar um United minimamente decente, o Boxing Day é uma espécie de feriado público, sem o ser com a exceção de calhar ao sábado e terá que ver com práticas comerciais e empresariais de outros tempos. O Guardian estima hoje que as compras no Boxing day deste ano possam ascender a 3,7 milhões de milhões de libras, o que diz bem da relevância do fenómeno comercial neste dia. Mais práticos e menos propensos a tradições, para os portugueses o dia 26 de dezembro é um dia de trocas de prendas e para muita gente o início frenético dos saldos, embora as estratégias comerciais sobretudo das grandes marcas e com comércio online pujante tenham determinado que a ideia de saldo já se tenha evaporado, tantas e tão variadas são as campanhas de descontos com que o online enche as nossas caixas de correio eletrónico.)

Neste 26 de dezembro em que os papéis coloridos dos presentes ainda estão por todas as casas, nem toda a gente é suficientemente disciplinada para organizar sustentavelmente a abertura dos presentes, lembrei-me do Boxing Day como alegoria do relacionamento dos europeus com o Reino Unido. Estimo que sem pretensões algumas de reversão do BREXIT, o relacionamento da União Europeia com o Reino Unido vai ser fundamental para enfrentar as novas vicissitudes do contexto internacional, sobretudo com um Trump profundamente errático e refém dos seus capangas mais próximos, mais interessados no desenvolvimento ilimitado dos seus negócios do que propriamente em trazer algo de positivo ao mundo.

A cena política britânica está cada vez mais intrigante. Os Trabalhistas arrasaram nas últimas eleições, devido sobretudo à trágico-cómica queda dos conservadores com manifestações de incompetência para todos os gostos, e tudo parecia que Keir Starmer tinha condições para um relançamento dos equilíbrios internos, económicos e sociais, colocando a economia e a sociedade britânicas numa rota menos vulnerável aos devaneios puramente ideológicos dos conservadores. Mas não é isso que tem acontecido. Vários motivos têm contribuído para este arranque mortiço do governo do Labour.

 A saúde sexual dos deputados parece andar pelas ruas da amargura tantos e tão variados têm sido os casos de assédio e outras ofensivas do género. Sabemos como este tipo de casos impacta tradicionalmente a política britânica e o Labour parece não ter escapado à tendência.

Em termos económicos, não é agradável para o governo trabalhista que o crescimento económico esteja a ser revisto para níveis de crescimento zero, a inflação persista resistente e as perspetivas de criação de emprego não sejam propriamente entusiasmantes. Seis meses apenas de governação e o peso de fatores internacionais atenuam a responsabilidade trabalhista na desaceleração do crescimento económico. E sobretudo a recuperação da situação difícil deixada pelos conservadores não pode ser ignorada. A ampla e generalizada descida de impostos decretada pelos conservadores nos últimos meses da sua governação aconteceu num período de insuficiências graves da generalidade dos serviços públicos britânicos, colocando a grande plataforma de proximidade e de interação com os cidadãos britânicos num estado particularmente insustentável. A recuperação desses serviços implicará obviamente um esforço orçamental considerável, o qual não poderá ser sustentado com o alívio fiscal prometido pelos conservadores.

A situação política britânica mostra que não basta uma maioria arrasadora para iniciar uma contraofensiva económica e social sustentada.

E as especificidades britânicas continuam a surpreender-nos. Há dias, li num jornal britânico que Niles Farage era a personalidade política melhor cotada nas sondagens. Sabemos que Farage integra a grande internacional dos populistas xenófobos e trogloditas e, como não podia deixar de ser, Elon Musk já se apresentou como um dos financiadores naturais do partido de Farage.

Por isso, admitir a hipótese de reversão do BREXIT é música celestial e inconsequente.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

OS BRINQUEDOS DOS MENINOS

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com) 

O Pai Natal passou por cá esta noite e as nossas crianças abriram ou estão para abrir os seus presentes. Sempre mordaz, o nosso membro honorário El Roto vem hoje recordar aos mais desatentos que os meninos pobres se terão de ter contentado com a contemplação de brinquedos expostos em catálogos de marcas reconhecidas. Fazendo-me lembrar aquela história verídica do filho de uma mulher a dias que passava diariamente no “Bazar dos Três Vinténs” da Rua de Cedofeita, parava a observar atento a montra cheia de magníficos brinquedos e tentava convencer a mãe, sem posses para qualquer extravagância, a comprar-lhe um; a resposta era invariavelmente a de um adiamento para “outro dia” que agora não havia tempo nem dinheiro para isso, até que à enésima vez o rapazito aponta para o seu preferido daquele dia e de imediato diz à progenitora: “hoje não, não, só logo...”. Memórias de tempos idos que tanta atualidade ainda sabemos terem neste Portugal de meados da terceira década do século XXI.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

LOGÍSTICAS NATALÍCIAS VARIÁVEIS

 

(Um bicho do buraco tendencial como eu não aprecia lá muito que o aconchego do Natal tenha de ser gozado fora do ninho, principal ou secundário lá para as bandas de Seixas. Mas as famílias alargam-se, os ramos diferentes dispersam-se pelo país e, no nosso caso, calha que só nos anos ímpares a família mais próxima possa reunir-se. Nos anos pares, como este, a opção é simples, ou um Natal reduzido aos dois companheiros ou realizado fora do ninho, para poder gozar pelo menos a companhia de um dos filhos e netos associados. Entretanto, também é verdade que a idade vai avançando e que a organização dos grandes encontros familiares é cada vez mais custosa em termos de esforço humano, porque nem todos têm o dom da ajuda especializada. As Mães e as Avós continuam a sustentar predominantemente todo este processo e é importante que se recorde este facto. A igualdade plena de género ainda é uma utopia, mesmo nas famílias que se reclamam de pensamento mais moderno e avançado. Pois assim é e lá terá de ser fora do ninho que este Natal se cumpre. E não se trata de um Natal qualquer. 2024 foi de facto um ano atroz para o sofrimento humano. Os Ucranianos continuam a resistir à brutalidade de uma invasão. O genocídio da população palestina atingiu níveis impensáveis de horror e barbárie às mãos de uma liderança israelita implacável que persiste nos seus propósitos expansionistas, procurado oficialmente pelo Tribunal Penal Internacional. Os europeus desavindos confrontam-se contraditoriamente com gente a leste que arrisca diariamente a vida e serem alvos de repressão para não deixar esmorecer a sua vontade de se juntarem ao projeto Europeu e, nem assim, conseguem compreender o alcance do que já obtiveram e a natureza das ameaças que pairam sobre o mesmo. O negacionismo climático reafirma-se apesar das evidências diárias da severidade do novo normal que nos aguarda serem cada vez mais insistentes e devastadoras.)

Embora há longo tempo me tenha afastado da prática e da fé religiosas, compreendo que o Natal desligado da mensagem de Belém “Glória a Deus no céu e paz na terra aos homens de boa vontade” perde muito do seu alcance e valor. A religiosidade pelas bandas do Ocidente vive dias difíceis e ainda há dias quando a Notre Dame de Pais foi aberta ao público, num prodígio colaborativo disciplinar e de diferentes profissões ou “métiers”, como dizem os franceses, todos compreendemos que aquela luz restituída a um símbolo da religiosidade ocidental era incapaz, apesar do prodígio da reabilitação, de recuperar o símbolo de religiosidade que irradiava no passado daquela Igreja antes de ser um equipamento. António Guerreiro escrevia há dias que a reconstrução da aura de sacralidade que associávamos à Notre Dame é de todo impossível nos tempos de hoje: “Da sua tripla dimensão – religiosa, política e patrimonial – só a segunda e a terceira permanecem”. Por estes tempos, a civilização ocidental incapaz de competir em sentimento de religiosidade com, por exemplo, a civilização islâmica, poderia pelo menos na perspetiva e em torno da dignidade e da decência humanas construir a sua própria resiliência à quebra dos valores e da cultura simbólica. É esse desrespeito pela decência e dignidade da pessoa humana que mais me perturba, sobretudo naqueles que estão sempre prontos a bater com a mão no peito em sinal de contrição, que vão regularmente à igreja e até frequentam a confissão e comungam regularmente. O sistemático desrespeito pela dignidade e decência humanas coexiste com essas práticas religiosas, erguendo uma contradição insanável.

Para lá das conflitualidades ideológicas, o menor denominador comum do respeito e defesa da decência e dignidade humanas aplica-se como uma luva aos desafios do mundo de hoje e é na perceção insanável de que comemoramos o Natal em coexistência com as mais atrozes negações da decência e dignidade humanas a muita gente que me perturba e incomoda.
Em confronto com esta evidência, todas as restantes querelas em torno de saber se o Natal poderia ser menos ou mais consumista ou mais ou menos sustentável são questões de menor importância.

Feliz Natal para todos os resistentes leitores deste blogue, seja ele comemorado no aconchego dos ninhos, ou obedecendo a logísticas variáveis para integrar a diversidade territorial da implantação familiar.

Quanto a 2025 ainda haverá oportunidade para nos próximos dias o desejar ou antecipadamente criticar. E tanta matéria haverá para celebrar esta última dimensão.

HOJE VAMOS TER POR AÍ O PAI NATAL...

(Flavia Álvarez Pedrosa, “Flavita Banana”, https://elpais.com

Consta que hoje vem por aí o Pai Natal, uma figura cuja existência já foi encarada de modo mais mítico, e especialmente mais fonte de crença, pelas crianças de todo o mundo. A verdade estará, pelo menos parcialmente, do lado das mudanças que vem sofrendo o estatuto das ditas crianças, por um lado porque a dinâmica comunicacional e tecnológicas das sociedades modernas lhes permite um crescente e gigantesco acesso a conhecimentos e revelações antes absolutamente inacessíveis a idades não adultas, por outro lado porque a inocência dessas mesmas crianças se confronta cada vez mais com factos e fenómenos de tal forma grotescos e terríveis que desafiam e abalam a sua candura em termos imparáveis e irremediáveis.

 

Todavia, hoje não é um dia propício a filosofias baratas, antes sim um dia para fruirmos da proximidade dos que nos são mais queridos, entre crianças propriamente ditas e crianças que já apenas o são por constituírem uma descendência direta que nos dificulta qualquer objetividade. Aqui deixo ainda votos de Bom Natal a todos quantos nos fazem a distinção de ler os nossos modestos escritos.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

UMA LIGA FRAQUINHA MAS ANIMADA

 
(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt

É aflitivo o estado de depauperamento exibicional  a que chegou o futebol dos chamados “três grandes”! Mas é sobretudo impressionante a enorme rampa descendente que passou a afetar o jogo de um Sporting imperial desde que passou a ser comandado por João Pereira – mesmo sabendo que a dimensão psicológica e motivacional é cada vez mais importante em grupos de trabalho jovens e muito dependentes, confesso que tenho dificuldade em compreender a diferença tão abissal que faz uma exclusiva mudança de equipa técnica!


É manifestamente irrelevante, mas a principal questão que se coloca aos nossos “inteligentes” na matéria é a de saber quem vai passar o ano ao comando do campeonato, sendo que elegerão logo de seguida, em janeiro, como campeão de Inverno o vencedor da Taça da Liga – eu, pela parte que me toca, preferiria guardar-me para maio, embora com a consciência de que os tempos de uma necessária reabilitação do clube tornam prioritário que a opção desportiva seja conduzida com cautela e caldos de galinha; mas se houver santos que nos ajudem, designadamente em sede de consolidação de uma estabilidade emocional que começa a emergir e de não nos termos de defrontar com muitos Luís Godinhos e Fábios Veríssimos, não deixaremos de nos afirmar presentes.

domingo, 22 de dezembro de 2024

A INTERPOSTA GOVERNAÇÃO DO CHEGA

 


Existe por aí disseminada a ideia de que Portugal é um monumento à especificidade. Existe ao nível de como nos projetamos como país, nunca tendo desaparecido a ideia de que somos um país único e singular, argumento ao qual se junta a verdade histórica de um país com existência longa e fronteiras bem definidas. Esta história foi perturbada pela perda do poder colonial, mas a propensão para especificidade é tão forte que se projeta no plano das organizações e dos setores, onde tudo parece ser específico e reclamar soluções próprias. Claro que muitas vezes a invocação da especificidade é um bom pretexto para manter a inércia da não mudança. Todo este introito se justifica porque até há bem pouco tempo predominou a ideia de que em matéria de extrema-direita até nisso haveria razões para acreditar na tese da singularidade específica. Existe aqui uma confusão lógica nefasta que consiste em confundir o período longo de diferimento com que as coisas chegam cá ao burgo, fruto da perifericidade e do atraso estrutural do país, com a ideia de especificidade. A dinâmica mais recente dos acontecimentos políticos mostra que, pese embora as diferenças observáveis entre o Chega e os partidos similares disseminados por essa Europa e mundo fora, o fenómeno da extrema-direita populista que baste, xenófoba, que transforma perceções falsas em realidade pretensamente objetiva, securitária para lá dos limites da razão está aí para português ver e seduzir os mais incautos e ressentidos com qualquer coisa que aflija as suas pobres e desinteressantes vidas.)

Para acentuar a inexorável similaridade, a propensão para que a influência política da extrema-direita transcenda em muito o seu peso eleitoral, maior ou menor, tem-se revelado em todo o seu esplendor. O governo AD tem-se esforçado e muito para se sobrepor aos impulsos do eleitorado que elegeu 50 deputados para o Chega no nosso Parlamento, adotando umas vezes mais disfarçadamente, outras vezes de modo mais descarado, as agendas do Chega. Mas essa fissura da tentação da cópia não incide apenas nas hostes das forças políticas que apoiam o governo da AD. Ela tem aparecido também entre alguns ilustres autarcas do PS, acagaçados pelo crescimento do Chega e receosos de que tais agendas lhes valham a perda do poder. Creio que os infelizes casos de Loures e de Alpiarça tenderão a repetir-se à medida que as lutas eleitorais mais acesas das próximas autárquicas comecem a desenhar-se no horizonte. Bastará estarmos atentos e essas manifestações emergirão para demonstrar que a extrema-direita não precisa de governar, basta-lhe inspirar as agendas dos outros.

A operação policial no Martim Moniz em Lisboa, a sua mediatização (a tal visibilidade invocada por Montenegro) e sobretudo o modo como ela foi justificada por diferentes membros do Governo e do grupo parlamentar do PSD é uma evidência solene de que o Chega não precisa de ter o ónus da governação. Basta-lhe inspirar os atos securitários do Governo em funções e, indiretamente, marcar a agenda para as próprias forças de segurança.

Na Alemanha, mais propriamente em Magdeburgo, um médico saudita, islamofóbico declarado e seduzido pelo programa de extrema-direita da AfD e tudo indica referenciado pelas forças de segurança sauditas que o terão transmitido às alemãs, resolve irromper a toda a velocidade por um dos mercadinhos alemães tão tradicionais na Alemanha, fazendo lembrar outros atos tresloucados de terrorismo urbano. Claro que para a dinâmica securitária em curso pouco importará que o saudita fosse islamofóbico e será entendido como carne no assador para extremar a sanha securitária e anti-imigração.

E estamos metidos neste cu de boi. A extrema-direita utiliza a democracia para se afirmar eleitoralmente, influencia as agendas da governação e nem sequer tem de decidir em matérias específicas de governação.

Os que pensavam que a pretensa especificidade de Portugal o defenderia dos malefícios da extrema-direita podem colocar as suas barbas de molho. E, neste caso, nem sequer com um significativo atraso de manifestação.

(Pequenas alterações introduzidas em 23.12.2024)

sábado, 21 de dezembro de 2024

RUA DO BENFORMOSO

 

Há situações que elucidam claramente a proveniência dos seus autores e, sobretudo, os seus pergaminhos educacionais, cívicos e democráticos. Foi o caso na incompreensível e intolerável operação policial levada a cabo pela PSP no Martim Moniz, com destaque para a sinceridade intrínseca das reações de alguns dos nossos principais responsáveis: a inconsistência democrática do primeiro-ministro ficou por demais patente, ele que assim mostrou privilegiar a defesa da sua imagem à luz de uma disputa de popularidade com o “Chega” em relação à defesa da liberdade e da salvaguarda de direitos humanos básicos; as posições que se ouviram do lado do PS foram justas em defesa de valores democráticos adquiridos no seio de uma sociedade que há cinquenta anos se preza por respeitar tais valores e princípios mínimos de um Estado de direito; o Presidente da República começou por se escudar covardemente na sua visita a Cabo Verde para depois vir quase nesciamente falar na necessidade de “recato” nas ações policiais. Tudo visto e ponderado, assistiu-se por estes dias a mais uma manifestação do Portugal à deriva que aqui temos vindo a denunciar, sendo todavia marcadamente grave que essa deriva já resvale declaradamente, e com uma inadmissível cumplicidade governamental, para as instituições primordialmente encarregadas da segurança e ordem públicas.



(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)