terça-feira, 3 de dezembro de 2024

PRESIDENTE HENRIQUE?

 
(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Nunca pensei descer tão baixo no meu sentimento antimilitarista, mas confesso que a evolução do dossiê das eleições presidenciais (previstas para janeiro de 2026, i.e., dentro de pouco mais de um ano) me conduz a considerar que o almirante Henrique Gouveia e Melo poderá ser com algum merecimento o próximo Presidente da República Portuguesa. E se o considero num quadro de algum merecimento é porque, pela positiva, tudo tem feito competentemente (incluindo a gestão dos silêncios) para que a imagem que granjeou aquando do processo de vacinação da Covid-19 se mantenha viva junto da maioria dos portugueses, mas é também porque, e pela negativa, a classe política propriamente dita tudo tem feito incompetentemente para que as suas hipóteses de terem um seu representante bem posicionado (à esquerda ou à direita) vão sendo crescentemente reduzidas.

 

O exemplo mais manifesto é o de Luís Marques Mendes, um homem que há anos desperdiça as suas noites dominicais a tentar mostrar aos eleitores que ele é que deveria ser o sucessor de Marcelo. O estilo rococó (“é um gosto”) e de campeão das ideias feitas (a última que lhe surgiu foi a de sustentar que o próximo PR terá de ser, sobretudo, “um construtor de pontes”, leia-se ele próprio), adicionado à ridícula intenção de se mostrar o mais bem informado da sua rua sobre os temas governativos ou partidários e à vulgaridade quase parola das suas notas finais e propostas de livros, não ajudam a que o campo do PSD possa encontrar nele (como Montenegro desejaria) um candidato afirmativo e programático. Dir-me-ão que haveria Leonor Beleza (um bom nome mas que terminantemente se pôs de fora) e que há também Passos, mas este não parece para aí virado e, mesmo que o estivesse, poderia ser prejudicado por níveis de rejeição muito altos; sobre Durão e Santana, two of a kind, a muita vontade disfarçada do primeiro e a muita vontade proclamada do segundo chocam com o descrédito da “politiquice” de que são dignos arautos.

 

À esquerda, ou seja, na área socialista, a desgraça é ainda maior (até pelas ausências óbvias de Guterres e Costa) e as divisões imperam por razões que a razão desconhece. Centeno consta da lista sem que tenha para tal uma carreira política que o qualifique minimamente para tal, Seguro ressuscitou dez anos depois e lá vai seguindo na CNN as pisadas de Marques Mendes e Ana Gomes não teria grandes hipóteses mas já se excluiu, faltando ainda uma referência a dois outros possíveis candidatos a candidato da área (Augusto Santos Silva e António Vitorino) que não aparentam, todavia, ser objeto de mínimos de entusiasmo. Pedro Nuno Santos, que já se arrependeu de ter avançado com o nome de Seguro, estimulando naturalmente a sua decisão, vai agora penar para encontrar um presidenciável partidário: sugiro-lhe Carlos César (sempre é o presidente do partido e um seu apoiante da primeira hora, além de lhe garantir uma votação significativa nos Açores!), Francisco Assis (que já se prontificou a constar como primeiro apoiante de Seguro mas estará sempre pronto!), Alexandra Leitão (sempre seria uma mulher, e combativa!) ou um(a) outro(a) do(a)s seu(ua)s indefetíveis que seja possuidor de um cartão de cidadão indicando idade inferior a 50 anos.

 

Nesta infeliz conformidade – em que teremos ainda de contar com a inventividade destrutiva de André Ventura, com a nunca dispensável presença do PCP e com outros folclores (se o Bloco, o Livre e o PAN, por um lado, e a Iniciativa Liberal, por outro, insistirem em querer botar figura) –, e como bem evidencia o barómetro da Intercampus ontem publicado pelo “Correio da Manhã”, estamos mesmo à bica de assistir à chegada de um almirante a Belém, quarenta e oito anos depois de Pinheiro de Azevedo (“é só fumaça!”) não ter logrado tal desiderato, algo injustamente, contra Eanes, Otelo e Pato. Falando sério, o cenário é bastante confrangedor mas a culpa do mesmo não é realmente do almirante – que até já se vai esforçando por preencher algumas páginas dos jornais com indicações sobre o seu pensamento “centrista pragmático” e o seu posicionamento alheado do apoio dos partidos e que não tardará a ocupar as capas das revistas cor-de-rosa e as manchetes das tardes televisivas com detalhes da sua vida familiar, que até parece ter que se lhe diga numa curiosa partilha entre a mulher oficial Carol (mãe dos seus dois filhos, Ryan e Eduardo) e a nova companheira Cristina (uma diplomata com carreira feita num quadro largamente institucional e pleno de interessantes interseções pessoais).

 

Seja como for, ainda muito poderá acontecer até que os jogos estejam fechados. E mesmo se não creio, pessoalmente, em golpes de asa extraordinários a emergirem, a verdade é que às vezes há milagres e tramas que a vida tece...

 

A EUROPA VISTA DA GEÓRGIA

 


 (Na obra «Les Aveuglés – Comment Berlin et Paris ont laissé la voie libre à la Russie» de Sylvie Kauffmann, pioneiramente referenciada e analisada neste blogue, existe uma ampla cobertura dos acontecimentos da chamada guerra de Agosto ou dos 5 dias que opôs a Rússia, que chegou a invadir o território, e o governo legítimo da Geórgia, tendo como pano de fundo a posição pró-russa dos rebeldes separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, que serviu de pretexto à invasão russa. A análise que Kauffmann dedica a estes acontecimentos é preciosa, pois além de mencionar com rigor o temerário aventureirismo do então primeiro-Ministro georgiano que decidiu precipitadamente intervir nos territórios rebeldes, explica as hesitações europeias, prenúncio do que mais tarde iria acontecer com a Ucrânia. Naquele caso, a invasão russa conseguiu ser revertida, mas a leitura atenta dos acontecimentos mostra que a reversão da invasão russa não foi de modo algum sinónimo do problema subjacente estar resolvido. Dezasseis anos depois, a Geórgia regressa a uma instabilidade estrutural que se manifesta numa sociedade e numa Presidente claramente favoráveis à aproximação europeia e num Governo pró-russo, que tem feito tudo para bloquear o processo de aproximação à União Europeia, produzindo mesmo legislação destinada a ratificar esse afastamento. A mera visualização das amplas manifestações de Tiblisi favoráveis à aproximação europeia mostra semelhanças notórias com as manifestações de 2014 em Kiev, que haveriam de precipitar a rotura com a Federação Russa. Mas o que é espantoso é que, estando os Europeus num claro clima de interrogação e dúvida sobre o alcance do seu próprio projeto, haja populações que estejam dispostas a lutar pela liberdade, pela rejeição do que o modelo pró-russo significa e pela valoração positiva do que significaria integrar a União Europeia. Não há melhor contradição que evidencie os riscos da perda da memória europeia do que esta singular onda de luta pela liberdade da Geórgia. Tanto mais que durante cinco dias, em 2008, os Georgianos puderam confirmar a brutalidade dos argumentos russos.)

 

A credibilidade das sondagens sobre o peso do sentimento de aproximação à União Europeia na sociedade da Geórgia pode ser questionável, mas as percentagens que têm sido conhecidas e publicadas por think-tanks internacionais são tão volumosas (em torno dos 80%) que aguentam todo o questionamento possível. Relendo a cobertura internacional dos acontecimentos não só em Tiblisi, mas progressivamente por todas as cidades georgianas, é possível confirmar que os fatores de dinamismo da sociedade georgiana estão com a aproximação europeia e contra a posição do Governo pró-russo que se escuda numa posição de não propriamente suspender as negociações, mas antes de reponderar as condições subjacentes. Com o fechamento pró-russo estão obviamente as zonas mais rurais e temerárias, em provavelmente a memória da União Soviética estará ainda viva. Não tenho informação recente sobre o posicionamento das regiões rebeldes e pró-russas da Ossétia do Sul e da Abecásia, mas extrapolando os acontecimentos de 2008 não será difícil imaginar que essas regiões poderão de novo assumir o papel que o Donbass ucruaniano de cultura russa desempenhou como pretexto para a invasão russa de fevereiro de 2022.

Quer isto significar que o desmantelamento da ex-União Soviética está longe de ter terminado os seus efeitos de instabilização do território.

A história parece repetir-se e, se os acontecimentos de 2008 podem ser explicados pelo aventureirismo de um líder georgiano que não soube medir as consequências dos seus atos, a questão central está na incapacidade europeia de dar respostas convincentes aos fatores de dinamismo e de liberdade que grassam por estas paragens. O que temos nós para oferecer a esta gente que preza a liberdade porque já experimentou a sua supressão? Dúvidas, interrogações, nacionalismos serôdios e bacocos e culto extremo pela autoridade.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

A FRANÇA QUE JÁ FOI E QUE PROVAVELMENTE NÃO SERÁ MAIS

 

(Uma grande parte da intelectualidade nacional que começou mais tarde a interessar-se pela cultura anglo-saxónica, sobretudo nos domínios da economia e da ciência política, teve no berço da cultura francesa a sua grande fonte de inspiração para consolidar um pensamento coerente sobre a Europa e sobre a sociedade portuguesa. Basta estar atento ao que foi o exílio político no antigo regime para compreender essa influência decisiva. Mário Soares talvez tenha protagonizado a experiência de maior proximidade à cultura francesa, mas talvez tenha sido o intelectual Eduardo Lourenço o exemplo mais sólido dessa proximidade, leitor de Portuguesa numa deliciosa pequena cidade do sul de França, Vence. Não por acaso, é nos escritos de Eduardo Lourenço que podemos encontrar os mais lúcidos avisos e demonstrações do declínio francês no mundo, não do ponto de vista apenas dos territórios sobre os quais exerce a sua influência, mas sobretudo do ponto de vista do poder das ideias civilizacionais que brota do pensamento francês. Com a saída do Reino Unido da União Europeia, as encruzilhadas em que a Alemanha está mergulhada desde a saída de cena de Angela Merkel, e não será por acaso que ela publica agora as suas volumosas memórias, uma boa prenda de Natal, mas também um presente envenenado a quem a oferecermos dada a sua dimensão, restaria a França para imprimir alguma marca de articulação entre o passado e o futuro. Porém, pouco ou nada de inspirador poderemos esperar da França política e cultural, até porque o ambicioso Macron tem conduzido politicamente a França a um beco sem saída, despois de prometer muito e concretizado pouco. Seria pouco rigoroso da minha parte não considerar que as derivas de Macron estão no reverso da tragédia da esquerda. O Partido Socialista continua a agonizar e a França Insubmissa não tem conseguido transpor o seu radicalismo para uma ação política consequente, capaz de transformar o exercício do poder pela sua parte em algo de credível e viável. Neste caldo turbulento, chegamos ao paradoxo da Frente Nacional de Le Pen poder transformar-se no fiel da balança da viabilidade política em França. E estamos feitos e aviados. E a Europa que se cuide.)

Ora, apesar do descalabro político de Macron e suas alianças que, a par das encruzilhadas alemãs, corre o risco de transformar o chamado eixo Paris-Berlim numa figura abstrata de geopolítica europeia, espanta e até doi como uma civilização que nos trouxe pensamentos como o de Montaigne, Alexis de Tocqueville, Voltaire, Rousseau, Lévy Strauss (fundamental nas suas descobertas anti-etnocêntricas), Morin e muitos mais está reduzida a uma irrelevância de inspiração no mínimo chocante.

Com o descalabro e fraco poder de impulso de eixos motores da União, somos devolvidos à irredutibilidade da diversidade cultural. Nas palavras de Eduardo Lourenço, refletindo sobre o declínio da própria língua francesa: “(…)no que diz respeito à língua, a França conhece uma espécie de obscuridade, que para a minha geração parece um verdadeiro mistério, por um lado, e de, que é hoje  algum modo um desastre: que o francês seja hoje uma língua subalterna e em última análise menos importante que a língua do nosso pequeno Portugal, que é hoje uma língua que tem uma radiação universal superior à famosa , maravilhosa língua de Voltaire e de Montaigne. Na verdade, a Europa é difícil de fazer sobretudo por uma razão simples: é que a Europa não precisa de ser feita. No fundo há Europa a mais. Cada país europeu, cada nação europeia é uma maneira de ser Europa”(1).

Por isso, estamos reconduzidos à inevitabilidade da diversidade cultural como fator agregador e identitário, por mais paradoxal e estranho isso nos possa parecer.


(1)    Eduardo Lourenço, Pequena Meditação Europeia – a propósito de Guimarães, Verbo, 2011

 

O OLIVENTINO MELO

(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt) 

Andam por aí uns maduros inofensivamente entretidos a defender a causa de a cidade de Olivença ser terra portuguesa. E até parece existir algum fundamento histórico na luta assim abraçada, já que Olivença foi efetivamente ocupada pela Espanha no início do século XIX e não foi depois devolvida conforme acordado entre os dois países na Convenção de Viena de 1815. O problema é que já lá vão mais de dois séculos e variados regimes e governos portugueses a não terem reclamado esse direito, o que quase tornou o assunto uma espécie de “conversa acabada” só retomável à luz de perspetivas ultrapassadas e de prioridades destituídas de sentido prático e até patriótico (duvido, nomeadamente, que os habitantes de Olivença tenham maioritário desejo de integrarem a nacionalidade portuguesa, tendo até o seu alcalde colocado adequadamente os pontos nos ii nessa matéria). Porque o pior de tudo é a miséria que grassa na Defesa Nacional, com o ministro responsável a validar a chamada de Olivença ao centro das atenções e ontem a fugir como um rato dos manifestantes pela causa – um governante capaz teria certamente tratado a questão com a inteligência e elegância bastantes para se lhe referir em moldes integradores, especialmente linguísticos, e fazer dele um aproveitamento político em nome de uma dinâmica de modernidade ajustada ao século XXI...

domingo, 1 de dezembro de 2024

NESTA LETÁRGICA BALBÚRDIA

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com) 

O ano chega ao fim, com dezembro a começar estranhamente temperado do ponto de vista climático. Uma calma insolente face ao entorno que marca a nossa comunidade – uma comunidade que, tudo descontado, talvez merecesse melhor do que o que se lhe oferece –, com cada um dos nossos responsáveis a parecerem querer esforçar-se por se apresentarem mais desajustados do que os seus próximos. É assim que a falta de mínimos de normalidade e/ou decência não deixa verdadeiramente de fora ninguém com desempenho de funções políticas relevantes (ilustrações recentes na infografia abaixo): ele é o Presidente da República e a sua permanente e narcísica necessidade de se mostrar e dizer presente em relação a tudo quanto mexa e tenha luzes ligadas, ele é o primeiro-ministro pacoviamente agarrado ao brinquedo governativo a que inesperadamente o deixaram aceder, ele é o líder do principal partido da oposição a malhar indiscriminadamente na Direita e nos próprios camaradas em sucessivas e incompreensíveis gafes, ele é o “pantomineiro” Ventura a exibir a sua gigantesca e distinta lata alegadamente validada pelos 1,2 milhões de portugueses que votaram Chega, ele é o PCP a culpar o grande capital e os grandes monopólios de todos e quaisquer males do mundo e arredores, ele é o Bloco a evidenciar uma visível desorientação perante o afastamento a que está votado, ele é Rui Rocha a tudo querer liberalizar sem deixar de pretender transformar-se numa espécie de anjo da guarda de Montenegro, ele é a “espécie de Democracia” que Albuquerque dirige na Região Autónoma da Madeira, ele é a excecionalidade governativa que a tolerância para com a extrema-direita vai alimentando na Região Autónoma dos Açores, ele é o jogo parlamentar a alcançar o grau zero da sua expressão histórica, ele é a dimensão autárquica a fazer de conta que conta... Mas pior do que tudo é a evidência de que os outros responsáveis em presença na comunidade – a sociedade civil e as suas “elites” – nada fazem por se apresentarem melhor, mais focados e contributivos para o interesse geral, antes preferindo ostentar um aflitivo desinteresse pelo devir da comunidade a que pertencem e exibir, com manifestos laivos de novo-riquismo, sinais confrangedores de ignorância, egoísmo e jactância.