sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

DESVIANDO A CONVERSA...

(excerto de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

Dois dias de Emmanuel Macron em Portugal, acompanhado pela sua amada Brigitte (já a caminho das 72 primaveras), numa incursão que cai em cima das suas esforçadas démarches de autoproclamado e assumido estadista europeu (há que ganhar tempo enquanto não há Merz!) e que só se compreende por imposições do vil metal, i.e., de atrasos ou hesitações no plano do business. O tempo chuvoso não ajudou e obrigou a protelamentos e mudanças no programa oficial, as imagens divulgadas mostraram o experimentado savoir-faire do presidente francês e o lado arrebatado (com alguns laivos de papalvo) dos responsáveis nacionais que o iam recebendo (sendo que Marcelo estava visivelmente nas suas sete quintas) e as conversas de bastidores ficaram naturalmente no segredo dos deuses, sendo que o seu conteúdo (múltiplo mas especialmente centrado em vendas na área da Defesa e das Infraestruturas) irá decerto ser genericamente desvendado à medida que os respetivos efeitos forem sendo negociados em concreto por quem de direito. No dia em que o “Expresso” veio entalar em definitivo o primeiro-ministro, a propósito do contrato de consultoria e proteção de dados que vigora desde 2021 entre a Solverde e a empresa que criou com a família e de que se desvinculou formalmente aquando do reinício da sua atividade política, a visita de Macron serve-me de pretexto para não abordar esse caso do dia e assim não ter de aqui comentar o que tudo indica provir de um inaceitável foro misto de soberba, deslumbramento e sobranceria.

AS I.I.M.

 


(IIM – Insustentáveis Inconsistências de Montenegro. Pois meus Amigos estou estupefacto e incomodado pelo presente que a levezinha cabeça de Luís Montenegro oferece ao Chega e também ao putativo candidato Gouveia e Melo, criando de livre vontade este imbróglio, que se arrisca a ser um verdadeiro escândalo nacional. Apesar de uma situação económica interna que continua a ser bastante favorável a quem governa e o anunciado investimento chinês nas baterias em Sines é disso um exemplo bem ilustrativo, o Governo debate-se com inconsistências sérias, que só as ministras da Justiça e do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade conseguem mitigar. Um governo a trabalhar neste contexto precisaria de um primeiro-Ministro à prova de bala. Ora é precisamente o contrário que temos em S. Bento. Nos últimos dias, Montenegro enterra-se no abismo de uma retórica de barata tonta, faltando a uma importante reunião em Kiev enredando-se no quadro de uma avença paga a uma empresa que é sua e de mais ninguém, anterior à sua liderança do PSD e passagem a primeiro-Ministro, mas que continuou a ser paga, ainda por cima com valores mais elevados quando passou a primeiro-Ministro. Repito, estou estupefacto. Por norma, dou sempre o benefício da dúvida a quem governa pela primeira vez. São conhecidos imensos casos de que é a função que faz a pessoa e que a aprendizagem no exercício da liderança política e da governação é crucial para avaliar o que valem as personalidades. Por isso, dou sempre uma moratória a quem governa e resisto a avaliar as pessoas pelo que elas eram antes do exercício das funções políticas, passando a avaliá-las apenas pelas suas decisões. O caso da empresa de Montenegro, com o desplante da sua venda nula à mulher, que mantém avenças enquanto já é primeiro-Ministro é suficientemente aterrador para ficar assustado com a capacidade de discernimento político de quem nos governa. O estilo de governação de Montenegro não me atrai, o seu perfil cultural causa-me alguns arrepios, mas isso não influencia a minha apreciação. O caso da sua empresa, sim, é suficientemente esclarecedor para lamentar que nestes tempos que correm tenhamos a liderar a governação alguém com esta baixa capacidade de discernimento político...)

A gravidade do caso é tal que não sinto qualquer curiosidade pelo que Montenegro terá a dizer ao povo português quando a ele se dirigir, creio que no próximo sábado.

Não faço a mínima ideia do que é que o Presidente da República tem engatilhado para dar uma saída à situação.

Em previsão rápida e expedita, direi que vamos ter com grande probabilidade um primeiro-Ministro a ser cozinhado em fogo lento.

Que mais nos poderá acontecer?

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O REGRESSO DOS PREDADORES

 


(Vivemos hoje um período de nacionalismo exacerbado, gerado após pelo menos duas décadas a chamada Guerra Fria ter terminado. Durante esse período, uma nova fase do globalismo deu origem à emergência de sistemas e redes complexos à escala mundial, com especial relevo para a imbricada relação entre o sistema financeiro e a inovação tecnológica. Sempre mantive uma distância crítica face aos que endeusaram esse período e nada melhor do que a gravidade da Grande Recessão de 2007-2008 para compreender essa minha distância crítica. É sempre mais difícil interpretar as razões da mudança de paradigmas do que identificar a realidade dessa mudança. Assim também no tempo atual o reconhecimento de que o nacionalismo está aí a comandar o mundo tem ofuscado a necessidade de compreender como é que o globalismo deu origem a um período tão conturbado e repleto de atores que julgávamos ter desaparecido para sempre da cena política mundial. No meu entendimento do que o globalismo representou no período atrás mencionado, a presença de predadores continuou a fazer-se sentir. Os mercados encarregaram-se de assumir esse papel e, se é verdade que esse globalismo foi acompanhado da redução da desigualdade à escala mundial, calculada como se todos os indivíduos fossem residentes num só país global, também a desigualdade no interior dos países se intensificou, evidenciando que o globalismo não beneficiou toda a gente. Mas com este regressado nacionalismo, ponderadas as diferenças com que ele se manifesta, regressaram também os predadores mais arcaicos, como o exemplo das terras raras na Ucrânia e a cedência de um acossado Zelensky nos mostram com toda a eloquência.)

Donald Trump, Vladimir Putin, Xi Jinping, Narendra Modi e Recep Erdogan emergiram como os mais recentes protagonistas da onda nacionalista, constituindo-se rapidamente em inspiradores de outros personagens, de menor escala, em proporção aos territórios que comandam. Putin foi o mais influente na renormalização da ideia da guerra em grande escala como instrumento de conquista territorial, ou o que é a mesma coisa de diplomacia pela força e é neste novo contexto que o desamparado Zelensky tem de equacionar a hipótese de paz para o seu país. Trump emerge neste contexto como um predador transacional, acionando diplomaticamente o desplante de justificar o acordo pretendido em torno das terras raras da Ucrânia como forma de pagamento pela ajuda americana até ao momento, como se os EUA não tivessem ganho rigorosamente nada até ao momento.

O que nos chega da imprensa internacional quanto ao acordo que, em princípio, Trump e Zelensky assinarão amanhã sexta-feira em Washington não é totalmente claro quanto aos termos do que irá ser assinado, sobretudo porque o acordo pressupõe fases distintas e futuras para pormenorização de aspetos mais operacionais. A fazer fé na informação que o Economist terá conseguido obter, a formulação final terá esbatido grande parte das imposições despudoradas que a nova administração americana impunha à acossada Ucrânia, evoluindo para uma forma aproximada de exploração dos recursos em modalidade de “joint venture”, deixando cair ao que parece em grande medida a hostilidade com as negociações terão sido conduzidas. A conclusão a que o Economist chega merece acompanhamento futuro: “O quadro do acordo que resultou deste processo é relativamente vago e em grande medida teórico. A efetiva magnitude da riqueza em recursos da Ucrânia é desconhecida. Não existiu qualquer avaliação rigorosa dos recursos minerais usando técnicas de exploração modernas. Muitos dos recursos existem a grande profundidade ou em concentrações demasiado baixas para uma extração lucrativa. Talvez cerca de 40% dos recursos metálicos estejam situados em territórios ocupados pela Rússia. O acordo não fornece igualmente nenhum pormenor sobre as condições de processamento e de refinação, nas quais o valor real tende a ser gerado. Existem muitas outras lacunas. De qualquer modo, acordando em alguma coisa, a Ucrânia forneceu a Trump um resultado, saiu do buraco e ganhou tempo. No contexto em que a Ucrânia inesperadamente se encontrou isso já é bastante importante.”

Como é óbvio, num acordo deste tipo, tudo dependerá da percentagem de recursos de investimento que as autoridades ucranianas poderão colocar no processo. O número estapafúrdio que Trump apresentou para o ressarcimento americano de quinhentos mil milhões de dólares parece ter sido abandonado. Predadores hostis ou predadores bem-comportados não deixam de ser predadores e ao que parece Zelensky tem agora duas questões centrais com que se preocupar, resistir na frente de batalha e controlar o negociador/predador.

 (The New Yorker)

Referi uns parágrafos atrás que a onda nacionalista assumia várias modalidades, com novidades analíticas relativamente ao que se passa nos EUA. O jornalista Kyle Chayka que escreve na New Yorker sobre temas ligados à civilização da Internet não poupa palavras duras para em título afirmar que o tecno-fascismo chegou à América. O tecno-fascismo não é mais do que um autoritarismo comandado por tecnocratas, apoiado sobretudo na força da tecnologia, que passa a impregnar todos os aspetos da governação e da sociedade. Não é ainda líquido que os mercados de títulos estejam a apreciar esta ofensiva da tecnocracia autoritária nos EUA e já há quem diga que Trump é particularmente sensível à reação do mercado bolsista. O que o jornalista da New Yorker defende é que a onda tecno-fascista não é mais apenas uma abstração filosófica vinda dos lados de Silicon Valley. Transformou-se num programa político, cujos limites constitucionais estão a ser permanentemente testados no dia a dia através das várias diatribes que o DOGE comandado por Musk está a operar. E, o que não é menos importante, não é líquido também que o tecno-fascismo de Silicon Valley seja compatível com o populismo anti-elites do MAGA.

Nota final

Como era esperado o Washington Post de Jeff Bezos acaba de mudar os seus princípios editoriais que passam a estar baseados na defesa das “liberdades pessoais e mercados livres”, não publicando perspetivas opostas e críticas destes pontos de vista. A revolução anti-democrática está em curso, clarinha como água da mais cristalina.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O QUE NÃO ME SAI DA CABEÇA...

(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt)

(Fiona Katauskas, https://www.theguardian.com)

Recordando o saudoso João Galamba, o que não me sai mesmo da cabeça é o facto de estarmos placidamente a testemunhar uma envolvente e inédita saga de destruição avulsa e caótica da ordem democrática internacional. De facto, já não há adjetivos que possam qualificar de forma minimamente adequada o que tem sido o exercício presidencial de Donald Trump em pouco mais de um mês.

 

As mais recentes malfeitorias do homem estão aí à vista: por um lado, o acordo que um acossado e impotente Zelensky se viu forçado a aceitar sobre uma indecorosa partilha dos recursos minerais do seu país – um verdadeiro ato neocolonial de que se julgava, erradamente ao que se constata, estar o mundo dos dias de hoje liberto; por outro lado, a apresentação despudorada de um vídeo procurando elucidar o seu projeto para Gaza, um obsceno exercício de ostentação de poder pessoal crivado de laivos infames de limpeza étnica.

 

Entretanto, e só para melhor explicitação do que, no quadro, constitui o exasperante impasse europeu – com óbvios impactos terríveis na credibilidade que a comunidade internacional pode conceder à União em geral e aos Estados membros em particular –, atente-se na vassalagem disfarçada que foi a visita de Macron a Washington e na acintosa desconsideração de que acaba de ser alvo Kaja Kallas quando, após deslocação para conferenciar com Marco Rubio, lhe comunicam problemas de agenda para concretização do referido encontro.

 

Torna-se assim premente, quase mesmo vital, que algum golpe de asa possa interromper todo o descontrolo que nos envolve. Do lado de Trump e do seu mandante Putin, estamos conversados, Zelensky fez louvavelmente a sua parte mas dá sinais de exaustão e crescente impotência, as chefias das instituições europeias (especialmente, Ursula, Costa, Metsola e Kallas) agem como “baratas tontas” numa continuada procura de fazerem prova de vida, os governantes nacionais europeus ou estão a braços com problemas muito próprios ou não indiciam qualquer capacidade de reação estratégica conforme e, assim sendo, resta uma lúgubre esperança de que possa ser a intervenção de um inesperado Friedrich Merz (quem sabe se ajudado pelo prestígio de que aufere Mario Draghi e pela efetividade da burocracia bruxelense) a produzir um primeiro abanão no degredo em presença que abra caminho a que ainda se vá a tempo de evitar danos maiores.




(Rebecca Hendin, https://www.theguardian.com)

A POLÍTICA E OS JOVENS

 

 (Que raio de relação pode existir entre os resultados das eleições alemãs e a situação política em Portugal, a ponto de ter selecionado esse contraponto para falar da relação entre os jovens e a política? Tenho para mim que as gerações como a minha começam a sentir imensas dificuldades em compreender o comportamento do voto dos mais jovens. Se bem que para o limite inferior do escalão etário a decisão está facilitada pois é a lei que o apresenta, já para o limite superior a questão é mais complexa, onde é que paramos nos 34 anos ou nos 30 ou 25? Esta nossa incapacidade para compreender o comportamento eleitoral dos mais jovens, os que votam e não os que estão divorciados completamente da política, reflete-se na deficiente compreensão do ambiente político global. É verdade que temos sociedades envelhecidas, mas os jovens que votam podem fazer a diferença e, por vezes, sinto que não compreendemos os rumos possíveis dessa diferença. O contraponto luso-germânico para a minha reflexão é curioso, embora a sociologia eleitoral em Portugal não esteja lá muito avançada. As eleições de domingo passado na Alemanha determinaram que a esquerda comunista do Die Linke é a força política com peso mais elevado entre os jovens entre os 18 e os 24 anos – o Die Linke tem 25% de inserção nesse grupo etário, ao passo que a AfD se queda pelos 20%, mesmo assim um em cada cinco de jovens a votar na extrema-direita dá cá umas dores de cabeça e a CDU não vai além dos 13%. Por cá, uma notícia dos jornais de hoje alertou-me para o confronto – o Expresso on line anuncia-nos hoje que na iniciativa SEDES JOVEM o Almirante Gouveia e Melo esgotou a sala disponível, enquanto as sessões com Marques Mendes, António Vitorino e outros candidatos ficaram pela sala a meio gás. Ora aqui está uma boa reflexão para colocar à prova a minha capacidade de entender o comportamento eleitoral dos mais jovens.)

A recuperação de última hora do Die Linke na Alemanha que foi a votos dá que pensar, pois num ápice os comunistas conseguiram travar a irrelevância dos pouco mais do que 3% que os afastaria do Parlamento alemão (só com 5% dos votos é possível essa presença) para os colocar no nível dos quase 9% dos votos. Toda a informação disponível sobre esta recuperação junto do eleitorado alemão mostra que ela tem um rosto, Heidi Reichinnek (ver imagem a abrir este post), que alguns jornalistas designam de sucessora de Rosa Luxemburgo. Por mais exagerada que seja esta comparação histórica, a verdade é que com uma campanha de muita porta a porta em torno dos temas inflação e crise de habitação, o estilo combativo e de uma vibrante energia física de oratória e de velocidade de raciocínio, Reichinnek conquistou uma parcela de eleitorado jovem que aparentemente seria improvável alcançar dada a imagem de inércia que os comunistas alemães traziam consigo. Também é um facto que a AfD encontra o seu público mais expressivo nos territórios da ex-RDA, o que sugere que a herança histórica da reunificação é questão mal resolvida entre os alemães. No caso da recuperação do Die Linke, que anuncia no Bundestag debates intensos e calorosos, a razão parece estar na combinação entre os temas de campanha e o estilo inconfundível de Reichinnek, o que pelo menos atribui alguma racionalidade ao êxito do partido de tão má imagem junto do eleitorado jovem.

A notícia do Expresso é mais impressiva, mas poderia resumir-se assim – o candidato que se apresenta com um discurso mais anti partidos políticos terá atraído mais a atenção dos universitários jovens que aderiram à iniciativa da SEDES, esgotando o auditório da Faculdade de Direito de Lisboa, ao passo que os restantes protagonistas se terão quedado por auditório a meio gás. Esta informação vale o que vale e, obviamente, os universitários jovens atraídos pela iniciativa da SEDES estarão provavelmente longe de representar a diversidade do eleitorado jovem em Portugal.

Mas julgo haver alguma evidência de que esse eleitorado em Portugal esteja a afastar-se da onda partidária. Embora o ter deixado as aulas na FEP já há algum tempo me tenha afastado de uma maior proximidade de contacto com gente jovem, tenho procurado informalmente obter alguma evidência de contacto. Essa evidência mais impressiva mostra-me que existe hoje uma grande divisão entre os jovens que compreendem cedo que fazer vida partidária é um cartão de visita para a sua progressão e os que percebendo a perversidade dessas opções se afastam e descreem da base partidária da democracia. Alguma dessa gente dá de caras com essa perversidade na abordagem ao mercado de trabalho e ao mundo das oportunidades que aí se abrem. Esta divisão pode ter variantes de desmobilização cívica, constituindo a questão ambiental o único contraponto existente para que a participação cívica não desapareça por completo entre as gerações mais jovens.

Estamos ainda muito longe de saber se a mobilização juvenil que a candidatura de Gouveia e Melo pode vir a alcançar será ou não algo de real e de diferenciador nas contas das Presidenciais. Mas o problema existe e faz parte dos tiros nos pés que as forças políticas em Portugal têm vindo a alimentar. A candidatura do Almirante assenta em erros de interpretação perigosos, pois nos tempos que correm a desvalorização do papel das forças partidárias é algo de profundamente nefasto para a preservação e reabilitação da tão ameaçada democracia. Mas para o contrariar será também necessário que os partidos políticos compreendam o seu papel nessa preservação e a democracia começa nas suas próprias casas.

Resulta de todas estas reflexões a necessidade da sociologia eleitoral dedicar atenção mais aprofundada ao comportamento dos jovens nas mesas de voto e na participação cívica em geral. Falo obviamente em nome de uma geração que, devo confessar, muitas vezes já não compreende o que essas gerações têm para nos dizer.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

DOIS MELÕES, MERZ E WEIDEL, NUM EXPECTÁVEL CONFRONTO

(Thomas Plassmann, https://www.spiegel.de)

(Agustín Sciammarellahttp://elpais.com)
 

Os resultados das eleições alemãs corresponderam quase integralmente às previsões, confirmando três dados essenciais e três outros de menor impacto: (i) a vitória da CDU e de Friedrich Merz, um homem tido por muito pragmático mas ainda insuficientemente conhecido para sabermos até onde fará perdurar o “cordão sanitário” em relação à extrema-direita (a AfD da estranha Alice Weidel) e até quando resistirá à ofensiva americana sobre a Europa; (ii) a derrota histórica do SPD (traduzida no valor eleitoral mais baixo da sua história), que vem ao encontro da crise anunciada para as social-democracias europeias (já analisada neste espaço como um misto de sinal dos tempos e calinadas próprias) e não deixa de também decorrer da pouco convincente liderança de um nada empático Olaf Scholz; (iii) a chegada da extrema-direita ao lugar de segunda força política do país, uma preocupante resultante da generalizada afirmação dos populismos na Europa (aí volta a constatar-se o peso eleitoral dos left behind) e uma igualmente visível manifestação das deficientes políticas que acompanharam o processo de reunificação (a subida e a predominância da AfD em toda a ex-RDA são disso uma ilustração, que o aterrador mapa abaixo elucida cabalmente) e que, mais recentemente, acompanharam desviantemente a evolução da situação económica e social da Alemanha; (iv) o merecido castigo sofrido pelo inconcebível titular das Finanças do anterior governo (Christian Lindner) na sua qualidade de líder dos Liberais, doravante afastados do Parlamento; (v) o igualmente merecido castigo da ambiciosa e oportunista Sahra Wagenknecht que, apesar da ginástica ideológica que montou, ficou a escassas décimas de uma representação parlamentar; (vi) a entrada do “Die Linke” no Bundestag, fruto mais provável de uma alternativa por eliminação de partes para as franjas populacionais ainda não significativamente tomadas pelo discurso radical da AfD (mais as mulheres do que os homens, mais os jovens do que as restantes pessoas em idade ativa) e, assim sendo, um sinal positivo da capacidade de resposta ainda presente na sociedade. Começaremos em breve a ver o que o novo primeiro-ministro e o seu governo de “grande coligação” com o SPD nos trarão, quer no tocante a uma almejada recuperação económica (a despeito das fragilidades estruturais que têm vindo ao de cima) quer no tocante a um desempenho cabal das suas responsabilidades europeias.


COMO A DEMOGRAFIA ABRAÇA A POLÍTICA RADICAL

 


 (A interpretação dos resultados das eleições alemãs já tem algum capital de conhecimento, pois o crescimento da AfD não é recente e perfilava-se no horizonte já há algum tempo. As primeiras notas interpretativas incidiram nas origens do fenómeno e, como seria previsível, o facto da extrema-direita alemã ter crescido inicialmente na ex-RDA, com vitórias relevantes pelo menos em três Estados, seduziu os analistas e investigadores. A hipótese dos extremos se tocarem sempre atraiu diferentes análises – a AfD prosperou em territórios ainda com resquícios profundos da presença soviética e do seu modelo. Outras leituras apontam o foco ao que terá sido uma falhada unificação alemã, pois os níveis de desenvolvimento socioeconómico dos territórios do Leste alemão nunca se aproximaram dos observados a oeste, apesar da vasta massa de recursos comunitários e nacionais aí investida. E a chamada geografia do ressentimento teria também uma versão alemã e daria à AfD uma base de apoio em crescendo. Entre as interpretações mais recentes, há uma que despertou a minha atenção, pois mete ao barulho a questão demográfica. Em meu entender, as consequências do “inverno demográfico” europeu estão muito longe de estar compreendidas e sobretudo politicamente assumidas. Até agora têm predominado duas áreas de interesse para analistas e investigadores: as consequências do declínio demográfico no plano socioeconómico, alicerçadas sobretudo nos reflexos na força de trabalho e nos efeitos negativos sobre o crescimento económico que o declínio provoca; os efeitos sobre os sistemas nacionais de saúde, pois o envelhecimento vem acompanhado de uma enorme pressão sobre tais sistemas. Mas a demografia traz consigo também uma carga política e essa é a leitura mais recente sobre o crescimento eleitoral da AfD. Vejamos se nos traz uma leitura consistente.)

A investigação de suporte a esta nova leitura do crescimento da extrema-direita foi publicada por cinco investigadores americanos e europeus (Rafaela Dancygier, Sirus H. Dehdari, David D. Laitin, Moritz Marbach e Kåre Vernby) no American Journal of Political Science no início de 2025, num artigo já de outubro de 2023 que só agora foi publicado e que não escapou à curiosidade da jornalista e ensaísta Amanda Taub no New York Times. O artigo científico designa-se de “Emigration and Radical Right Populism” com a visão alternativa de que não apenas as questões da imigração devem ser revisitadas para compreender o advento de forças como a AfD, mas também as da emigração a terem de ser convocadas para o efeito. Os dados respeitam a 2021, mas estão na linha dos resultados observados este passado domingo.

O gráfico que abre este post analisa a correlação entre a intensidade dos saldos migratórios de saída nas regiões do Leste alemão (ex-RDA) e o crescimento eleitoral da extrema-direita. A relação que surge implícita nos números é a de que o peso do voto na AfD é claramente mais elevado nas regiões em que o saldo migratório é mais negativo (mais saídas do que chegadas). Leipzig aparece como o exemplo mais acabado de região em que o peso da AfD a leste é menor, sendo também um dos raros territórios com crescimento populacional positivo.

Subjacente a este resultado está a ideia de quem sai tende a ser mais jovem e qualificado, o que para estes territórios tende a amplificar o efeito do ressentimento: o abandono económico gera os desníveis de desenvolvimento conhecidos e por essa o ressentimento político é alimentado, mas o efeito da saída demográfica dos mais jovens e qualificados perpetua agravando esse problema.

A comparação com o comportamento demográfico das regiões ocidentais da Alemanha é claramente ilustrativa deste efeito (ver gráfico acima).

É interessante suscitar a questão de saber porque é que Leipzig escapa a leste a esta tendência e isso terá que ver com o maior desempenho económico dessa Cidade-região. Provavelmente, isso estará relacionado com a maior valia dos ativos industriais anteriores à reunificação e à sua maior capacidade de atração de investimento. O que significa que a variável demografia terá sempre de ser integrada em leituras mais amplas.

Mas há um ponto que me intriga e suscita algumas reservas analíticas. Em algumas análises políticas, apresenta-se frequentemente o argumento de que o advento da AfD se concretiza num contexto em que existe muita população jovem que já não tem memória da opressão vivida na ex-RDA, facilitando a sua adesão ao autoritarismo da AfD. Ora, essa perspetiva parece-me claramente contraditória com a tese de que é a saída dos mais jovens e qualificados que explica o peso mais elevado da extrema-direita no eleitorado. Com essa saída os territórios do Leste alemão terão um predomínio de eleitores cuja memória do autoritarismo da ex-RDA e da presença física do Muro de Berlim ainda estará viva e, apesar disso, votam AfD. Em que ficamos? Será que o ressentimento de quem fica quanto à ausência de oportunidades alimenta a perceção de que a vida na ex-RDA era afinal comparativamente melhor-sucedida do que a existente? Ou serão as perspetivas securitárias mais comuns na população envelhecida quanto à imigração as principais responsáveis pela filiação na AfD?

De qualquer modo, os cinco investigadores atrás mencionados têm razão quando percebem que o esvaziamento demográfico em busca de melhores oportunidades agrava seriamente os fatores potenciadores da entrega ao canto autoritário da sereia.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

AS LINHAS CRUZADAS DO BURACO ALEMÃO

 

(À medida que os resultados das eleições alemãs de domingo passado vão passando das sondagens à boca das urnas às contagens reais algo de paradoxal se vai instalando. Observa-se algum alívio com o facto de não ter existido uma surpresa desagradável com a ascensão da AfD, que se registaria caso a proporção de um em cada cinco eleitores a votar na extrema-direita tivesse sido largamente ultrapassada. Mas, paradoxalmente, só praticamente essa mesma AfD pode ser encarada como vencedora, embora possamos pensar no contraponto dos apoios de Musk e Vance não terem impressionado por ai além o eleitorado alemão. Mas as restantes forças políticas não saem com felicidade redobrada desta contenda eleitoral. Ainda que vencedora e resistente, a CDU tem um dos seus piores resultados históricos. O SPD de Scholz desce de 26 para 16%, sendo ultrapassado pela temível AfD e se entrar numa coligação governamental entrará de mãos atadas. Os Verdes não caem tanto, mas reduzem o seu poder eleitoral, o que face à conjuntura energético-ambiental alemã não abona em seu favor. E os Liberais não têm queda menor, passando de 11% para 4,4%. Os populistas de esquerda (BSW) de Sahra Wagenknecht, não ultrapassando os 5%, parecem não ter beneficiado do seu impulso anti-imigração e pró Putin. A esquerda do Die Linke, nostálgica da RDA, pode ter respirado um pouco, mas a única razão de festejo é a sua recuperação em cima da linha de chegada.)

O novo Chanceler e conservador Friedrich Merz parte para as negociações de constituição de um novo Governo com a segurança de que só a sua resistência, mesmo que historicamente em perda comparativa com o passado, tornou possível a barragem da governação da AfD, embora com o seu peso eleitoral o ruído no Parlamento alemão da extrema-direita será bem mais incómodo do que no período anterior. Imagino que a coligação CDU-SPD-Verdes possa ser acionada ou talvez ela se estruture em torno da aliança CDU-SPD, com este último a ter de ceder bastante coisa.

Suspeito que, face aos resultados observados e ao momento de perturbação de uma nova ordem internacional instalada, a negociação vá ser bastante mais rápida do que o registado em similares operações no passado. A experiência alemã concreta deste pós-eleições será uma prefiguração do novo normal de Parlamentos com votações de extrema-direita à perna que teremos nos próximos anos.

Quanto à cura de termas políticas para o SPD talvez não seja fácil concretizá-la com êxito em contexto de governação, mas como se costuma dizer em tempos de guerra não se limpam armas e o SPD não pode deixar de sacrificar-se para ajudar a Europa nesta fase de antecipação de todos os abismos possíveis. Será fundamental conter as tentações miméticas das exigências da AfD que a CDU tenderá a enfrentar no seu interior, embora a vontade de resistência do conservador Merz me pareça sincera.

A França seguirá dentro de momentos. Até lá, Macron ensaiará a recuperação de algum protagonismo europeu, mas sempre com a situação política interna à perna, a morder com vontade os resultados das suas jogadas anteriormente falhadas.

E é neste contexto que terá de ser construída a nova Europa depois do “aliado” americano ter evoluído para cavalgadas do apocalipse.
 

TRÊS ANOS DEPOIS...

 

 

Completam-se hoje três anos sobre o início da “operação militar especial” de Putin na Ucrânia. Aos brutais sacrifícios e ao sofrimento infligido aos invadidos (e aos milhões que foram forçados a deslocarem-se), já sem falar na “carne para canhão” de russos, bielorussos e até norte-coreanos, juntou-se recentemente o “pacifismo” interesseiro de Trump. Com Zelensky a dar mostras de estar a atingir os seus limites, após um inexcedível exercício de coragem e patriotismo, e com a União Europeia a prosseguir igual a si própria em termos de conversa sem substrato palpável e de inação fundamental, o horizonte previsível parece largamente cinzento ou mesmo a tender para o negro carregado. Tempos inquietantes como as presentes gerações nunca experimentaram...

domingo, 23 de fevereiro de 2025

BERNIE VAI À LUTA

 

(Ainda há dias comentava o estranho silêncio das hostes democratas em Washington quanto aos desmandos que a administração Trump está a provocar nas instituições democratas americanas. O partido vive um momento de perturbação, pois não atina com o modo de fazer política depois da derrota de Kamala Harris. O que me espantava não era o silêncio do aparelho, mas antes o facto de vozes como Bernie Sanders e Elizabeth Warren não se pronunciarem e não darem mostras de continuar a sua batalha por um movimento popular que derrote Trump e os seus apaniguados na próxima eleição. Se relativamente a Elizabeth Warren não consegui encontrar prova de vida e de combate recente, já no que toca a Bernie Sanders uma entrevista no New York Times e um documento publicado por jornais europeus como o Guardian e o El País dão conta que está em curso trabalho de base e de terreno para recriar as condições para um ressurgimento da oposição democrata, até porque à medida que as purgas e outras maldades perpetradas pelo administração Trump se multiplicarem, irão obviamente aumentar os descontentes com tais medidas.)

Fiel aos seus princípios, Sanders mostra-se pessimista quanto à possibilidade do establishment democrata em Washington ser capaz de dinamizar uma onda de repúdio e de combate às tropelias da administração Trump. O que está em curso segundo o político progressista e democrata americano é um vasto conjunto de iniciativas de base, costa a costa, destinadas a fazer reviver um clima de oposição real aos desmandos praticados.

O movimento mostra claramente ao que vem e o que pretende: “O Trumpismo não será derrotado por políticos inseridos no círculo DC. Só será derrotado por milhões de americanos, em todos os estados deste país, juntando-se para um movimento forte e de base que diga não à oligarquia, não ao autoritarismo, não à cleptocracia, não aos cortes massivos em programas de que as pessoas trabalhadoras precisam desesperadamente, não aos amplos cortes de impostos para as pessoas mais ricas deste nosso país. É sobre isto que estas iniciativas trabalham.”

A este clarificador pronunciamento inicial segue-se um longo e crítico retrato do que a administração Trump está a impor ao país e uma proposta alternativa de princípios a garantir e que irão ser segundo o senador do Vermont o cimento de todo este movimento.

Como é óbvio, ainda que bem-sucedido, e espero fortemente que o seja, o movimento terá de travar uma outra batalha, impor com esse apoio popular um candidato presidencial ao Partido Democrata capaz de responder a essa força mobilizadora. E essa batalha não será provavelmente menos exigente do que a de derrotar os Republicanos.

A ALEMANHA COMO PREFIGURAÇÃO DA EUROPA QUE NOS ESPERA

 


(As eleições alemãs deste domingo têm tudo para confirmar o que regra geral designamos de crónica anunciada. A extrema-direita da AfD acima dos 20%, a CDU a representar a resistência democrática, o SPD a cavar a sua irrelevância, os Verdes sempre aquém do que lhe era potencialmente concedido e à esquerda, de origem comunista, a confusão do costume com o Die Link a esbracejar resistindo em campanha porta a porta e o populismo de esquerda de Sahra Wagenknecht do BSW aquém do que prometera apesar da sua política anti-imigração. Salvo cataclismo de última hora, a interrogação parece ser a de saber com quem a CDU governará, pressupondo que resistirá à chantagem de Vance e Musk. Num gesto nostálgico, dei comigo por força de estímulos cruzados de leituras diversas a ler a célebre declaração de Helmut Kohl realizada em 23 de agosto de 1990 relativa à reunificação alemã e ao seu roteiro, incluindo a explicitação da ajuda à antiga RDA. Comparando o sentido de futuro que aquela galvanizante declaração veiculava com as interrogações que as eleições de hoje trazem ao povo alemão, a nostalgia passa rapidamente à perceção de que a Alemanha está metida num valente sarilho. Sabemos hoje que a AfD domina alguns Lander situados na ex-RDA, o que por si só suscita todas as interrogações sobre o que correu mal, mas que o seu peso eleitoral se estende a outros Estados alemães, numa real multiplicação de Cavalos de Troia, contribuindo para a formação da tal nova Internacional de direita libertária e autoritária que Musk, Vance, Bannon despudoradamente defendem.)

Se olharmos para a Alemanha dos últimos vinte anos, é fácil compreender como a ortodoxia dos limites ao endividamento induzidos pelo trauma inflacionário de que padecem as forças do establishment germânico, imposta descaradamente aos países da economia do sul, pelo menos enquanto os capitais alemães não zarparam e se puseram a salvo, coexistiu com o progressivo agravamento das condições de solidez da economia alemã. Não demorou tempo a perceber que a economia alemã tinha pés de barro, não só pela dependência energética em que voluntariamente se colocou, mas também porque a sua força industrial não avaliou convenientemente a sua posição nas cadeias de valor globais.

A ortodoxia monetária alemã não infligiu apenas danos aos países que experimentaram a crise das dívidas soberanas. Essa ortodoxia conduziu o próprio país a um défice de investimento em infraestruturas, com particular realce para os caminhos de ferro e as infraestruturas educativas, o mesmo acontecendo em relação aos avanços considerados necessários em matéria de digitalização. Esses défices de investimento em infraestruturas talvez tenham passado despercebidos em comparação com os alertas sentidos na indústria automóvel e tendo em conta que a evolução do emprego nos serviços tem vindo a compensar a perda de emprego na indústria transformadora.

A revelação da dependência energética após a saída de cena de Merkel não veio senão agravar essa evidência, juntando ao défice de infraestruturas atrás assinalado as necessidades de mais investimento para compensar a crise energética.

Mas a crise do setor automóvel e da indústria transformadora em geral veio colocar a economia alemã perante a necessidade de uma mudança no paradigma da sua afetação de recursos, já que a ideia de motor industrial está, senão anulada, pelo menos perante a necessidade de novas condições de arranque.

Esta insuficiência é deveras relevante para a coligação contra a AfD poder acenar com alguma coisa que se veja à população seduzida pelo canto da sereia e sobretudo pela tentativa de tudo explicar através da massa de imigração de que a sociedade alemã foi destino. Esse cerrar de fileiras precisaria de um contexto económico mais favorável. Os problemas com o motor do crescimento económico industrial e alguns incidentes com população islamizada residente em território alemão, designadamente os ataques com veículos descontrolados às tão populares feiras locais, produzem um campo fértil ao nacionalismo xenófobo da AfD.

Nos últimos dias da contenda eleitoral, o número de indecisos era ainda bastante elevado, um em cada cinco eleitores não tinha ainda decidido em quem votar ou, pelo menos, assim declarou quando foi inquirido. Todos os receios do mundo podem ser associados a esta indecisão, sobretudo no contexto do apoio despudorado de Vance e Musk à extrema-direita alemã, invocando para isso um rocambolesco argumento de defesa da liberdade de informação (olha quem!). Será que grande parte desses indecisos assumirá que a CDU é a força que oferece melhores condições para segurar o barco e liderar uma coligação governamental? Ou será que não vão resistir ao canto da sereia autoritária?

Por isso, a Alemanha, qualquer que seja o resultado de logo à noite, prefigura o que podemos esperar no futuro próximo para a Europa. Uma evolução em fio de navalha permanente com a toda a instabilidade normalmente associada a esta metáfora.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

CALENDÁRIO DO ADVENTO AGORA E IALTA NO HORIZONTE

(Fiona Katauskas, https://www.theguardian.com) 

Qual calendário do advento, que em dezembro faz uma contagem regressiva até à noite de Natal, a nova presidência de Donald Trump tem-se caraterizado por uma má surpresa diária (pelo menos) – como com propriedade questiona a cartunista, “você acorda a pensar no que Trump irá fazer a seguir?”.

 

A verdade é que a “revolução do MAGA” a que vamos assistindo quase em direto constitui a mudança geopolítica e antidemocrática que nos foi dado experimentar em cerca de um século, apesar de estarmos ainda longe de conhecer todos os contornos com que a mesma nos surpreenderá; não obstante, e preparada meticulosamente como o foi por forças que se agregaram e organizaram em torno do ex-presidente entretanto reeleito, tal “revolução” não esconde o essencial dos seus desígnios e métodos e o papel de Trump nesse contexto não passará significativamente do de um “narcísico idiota útil”.

 

Ainda hoje, na sua coluna do “Público” (“Brenda tem de morrer?”), Francisco Teixeira da Mota escreve sem deixar lugar a quaisquer dúvidas: “Os casos judiciais de Trump vão-se aproximando do Supremo Tribunal dos EUA: a ordem executiva que acaba com a aquisição da nacionalidade pelo nascimento nos EUA e o despedimento de Hampton Dellinger, o chefe do gabinete do conselheiro especial – a mais importante agência federal independente de investigação e ação penal do país –, são dois casos que poderão permitir-nos perceber o papel do Supremo na revolução do MAGA”. Se a isto acrescentarmos a hoje divulgada purga no Pentágono, a conspiração parece já ter atingido todos os supostos checks and balances...



E também já todos adivinhamos os termos centrais da nova Conferência de Ialta que se desenha no horizonte, abaixo inapelavelmente evidenciados de modo caricatural mas sugestivo...


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

ALGUMAS CONTAS PARA UMA DEFESA EUROPEIA

Uma discussão que circula abundantemente no espaço público nacional e europeu centra-se na necessidade recém-descoberta de a Europa consagrar mais dinheiro à sua defesa e segurança, designadamente depois da assustadora chegada do Trump 2.0 que estamos a conhecer ao dia ou mesmo à hora desde 20 de janeiro. Está realmente em vias de extinção a relação transatlântica que imperou nas décadas subsequentes à Segunda Guerra Mundial – largamente assente num peso determinante dos EUA na NATO e na sua presença efetiva num continente europeu ferido pelas agressões hitlerianas e pelas imposições da Guerra Fria que prevaleceu até à queda do Muro de Berlim – e com essa extinção em marcha adquire finalmente a Europa, sob o peso do facto consumado e “com as calças na mão”, uma consciência e um sentimento de urgência que recusou durante décadas (veja-se, no mapa acima, que apenas quatro membros europeus da NATO – Polónia, Estónia, Letónia e Grécia – ultrapassaram em 2024 os 3% do PIB em despesas de defesa sucessivamente prometidos e comprometidos pelos respetivos governos).

 

Estamos assim perante um quadro dramático que tem tudo para correr mal para o lado europeu, seja por via de um brutal rompimento americano das responsabilidades que tem vindo a partilhar no domínio em causa seja por via de uma menos radical mas necessariamente intransigente exigência dos EUA quanto aos termos da partilha financeira daquelas responsabilidades. Atente-se nas estimativas feitas por várias entidades a tal propósito: ilustro com a estimativa da revista “Le Grand Continent”, que adianta um total adicional de 196,5 mil milhões de euros e de 567,3 mil milhões de euros por parte dos membros europeus da NATO para atingirem, respetivamente, os 3% do PIB em Defesa ou os 5% que começam a estar na boca de Trump e de alguns dos seus acólitos (com a devida e interessada ajuda de Mark Rutte) – montantes por demais significativos, apesar de conservadores em relação a outros cálculos (o “Deutsche Bank”, por exemplo, estimou em 800 mil milhões o incremento de dispêndio conducente ao cumprimento da meta de 3%) e que já se exprimem claramente nos primeiros borrões preparatórios do próximo Quadro Financeiro Plurianual e fazem com que se tenha de temer pela sustentabilidade de uma União solidária e dos próprios modelo social e modo de vida europeu. No tocante ao caso português, a incerteza em torno das nossas contas públicas volta a vir à tona – porque, definitivamente, “a manta é curta”... – e os números não são suscetíveis de engano (os 4,64 mil milhões de euros para atingirmos os ditos 3% correspondem a algo como 70% ou mais de 80% das despesas da nossa Administração Central com pessoal da área da Saúde ou da Educação). Autenticamente, um susto de arrepiar! 



(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

JÁ CHEGA DE TANTA INDIFERENÇA!

 


(Posso admitir que a minha perceção de que os Democratas americanos estão paralisados e sem a mínima capacidade de resposta ao assalto à democracia americana que Trump e os seus apaniguados da alta finança e do high-tech estão a consumar é fruto da distância e da consequente incapacidade de perceber o momento. Admito, mas tenho dúvidas, porque o silêncio é demasiado ensurdecedor. Mas já não tenho qualquer dúvida que, com a exceção do momento de lucidez de Marcelo Rebelo de Sousa, a classe política portuguesa está profundamente ao lado de ter uma compreensão correta da mudança de paradigma em que o enquadramento estratégico da Europa, incluindo a sua participação na NATO, está hoje mergulhado. A classe política portuguesa está hoje manietada e absorvida pelas guerras de alecrim e manjerona em torno da empresa imobiliária, ou o lá que seja, de Luís Montenegro e cedeu como patinho ingénuo à manobra de diversão do Chega. Nada mais preocupa a classe política portuguesa, incluindo os membros mais destacados do governo, incapaz de entender que tudo mudou e que na conjuntura dos quatro anos de governação Trump, e sabe-se lá, o que lhe sucederá, a Europa deixou de ter como aliado os EUA, a partir do momento em que se concretiza o seu alinhamento com Putin na marginalização da Europa. A diplomacia de papel é hoje grotesca, assistindo impávidos e serenos à partilha descarada da Ucrânia. Tenho-me recordado de um célebre slogan do PREC – “ as p**** ao poder porque os filhos já lá estão”.)

Creio que na semana passada, assistimos incrédulos a um daqueles momentos que ficarão na história. O Vice-Presidente americano J.D. Vance veio em Munique afirmar com desplante que a Europa tem internamente um grave problema de liberdade de informação e de expressão, desafiando-a a desmontar qualquer bloqueio informativo à extrema-direita europeia, afirmando-se sem qualquer prurido como o grande defensor dessa liberdade para os que querem precisamente destruir essa liberdade em nome de um conjunto de interesses dos mais poderosos. A Europa seria livre quando abrisse caminho a todos os Cavalos de Troia já nela instalados, colocando uma passadeira vermelha e apelativa aos que a querem destruir por dentro.

Como é óbvio e compreensível, isto significa que, sem sabermos por quanto tempo, os EUA deixam de ser um aliado da Europa. A própria NATO está condenada às ruas da mais cruel amargura, como é possível concebê-la como uma entidade largamente dependente de um país como os EUA que se alia deliberadamente a Putin e à Federação Russa para comemorar o festim da partilha da Ucrânia. Num ápice tudo se desmorona, sendo a Europa obrigada a fazer em pouco tempo aquilo que a sua lassidão foi sistematicamente adiando.
Gostaria de ser mosca para assistir aos debates políticos em algumas forças como por exemplo o PCP. Sempre compreensivos para as narrativas fantasiosas de Putin sobre a Ucrânia e ferozes adversários do imperialismo americano, gostaria hoje muito de saber o que é que pensa a ortodoxia do PCP quanto a esta aproximação tática e estratégica entre os EUA de Trump e Putin.

A partir de Pequim e da sua mais consistente sabedoria do tempo longo, a China deve estar a esfregar as mãos com a oportunidade de ouro criada pelo desmantelamento da política industrial americana que a equipa de Trump está a colocar em prática, abrindo inexoravelmente caminho à superioridade tecnológica chinesa em vários domínios em que os EUA ensaiavam alguma recuperação a partir da alteração das cadeias de valor globais.

Os tempos estão favoráveis a que o totalitarismo de informação e tecnológico sufragado em eleições se imponha como alternativa às democracias liberais. E o que é verdadeiramente impressionante é que tudo isto acontece com os EUA a conservarem o seu papel de destino principal do investimento direto estrangeiro como o gráfico acima o evidencia com toda a clareza.

A cada dia tudo nos surpreende e creio que não ficaremos por aqui.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

UMA NOTÍCIA REVELADORA

 

(Trabalho e mais trabalho, relatórios para acabar, viagens pelo meio a Lisboa, o futebol da Champions a monopolizar minutos de repouso, tudo se vem conjugando para a menor assiduidade à escrita do blogue e de vez em quando, confesso, sabe bem resistir ao desafio do ecrã em branco a reclamar preenchimento. Por isso, aproveitando o embalo do Alfa, aqui estou de regresso para refletir sobre o título e notícia do Público de hoje. O que é uma excelente oportunidade para refletir sobre a efetividade das políticas de reequilíbrio ou, se o quiserem, de coesão territorial. Fico frequentemente espantado com alguns pronunciamentos sobre o necessário e imperioso reequilíbrio territorial do país, com várias evidências para o reclamar, a começar pela mais do que evidente avaliação de que a concentração de atividades e pessoas na aglomeração metropolitana de Lisboa está a exceder a capacidade de gestão existente para a gerir em moldes minimamente aceitáveis para a qualidade de vida das pessoas e para assegurar a capacidade de resposta dos serviços públicos. Anda por aí no ar a ideia de que a qualidade da gestão está a norte e que os inúmeros problemas observados a sul são o resultado de incompetências na gestão. Não rejeito que possa haver casos pontuais em que a incompetência de alguns protegidos pelas teias de interesses agrava a complexidade do que já é bastante complexo. Mas recomendaria que fôssemos parcos em alimentar esse peditório. O que me parece existir é a realidade de que não há conhecimento, engenharia e capacidade de gestão para responder a tanta concentração e isso, em meu entender, seria suficiente para arrepiar caminho e mitigar os custos do não reequilíbrio territorial.)

Mas o que me espanta mais não acontece entre os que continuam a teimar em adiar o reequilíbrio territorial. Espanto-me mais com a bondade ingénua de algumas propostas de intervenção para concretizar esse reequilíbrio. Muitas dessas propostas pressupõem uma mobilidade de recursos (de pessoas, de capitais e capacidade de empreendimento) agilizada como se de um passe de mágica se tratasse e, principalmente, com uma sobreavaliação clara do potencial de concretização e acerto das políticas públicas. O “wishful thinking” de muitos transforma-os em “ditadores” iluminados, como se tudo fosse reduzido a um problema de vontade política e de imaginação criativa na definição dos instrumentos de política, como se a existência de tais instrumentos se bastasse a si própria, gerando automaticamente resultados.

Pensar nas políticas de reequilíbrio territorial desse modo, devo alertar que conduz à frustração e à deceção em política e no planeamento. A deceção coletiva é uma categoria de psicologia social bastante esquecida (Hirschman, o patrono que me inspirou a escrever neste blogue, estudou-a profundamente). 

O que me diz já tão longa experiência é que pessoas, investidores e empreendedores respondem a incentivos porque os seus interesses não podem ser subestimados ou marginalizados. Os comuns dos mortais não se deslocam no território apenas por razões afetivas de retorno às raízes identitárias, respondem a incentivos e isso não representa menoridade alguma. A procura de melhor qualidade de vida pode esbater obviamente questões de remuneração, mas o usufruir dessa maior qualidade de vida pressupõe sempre um limiar de rendimento. Os investidores respondem a oportunidades lucrativas de investimento, independente da diferença importante a estabelecer entre os mais “curto prazistas” e os que estão preparados para ajuizar dessa lucratividade. Quando investidores que consideramos consistentes rejeitam o que a política de reequilíbrio territorial considera ser uma oportunidade, talvez devêssemos compreender melhor as razões dessa rejeição e trabalhar com esses investidores no sentido de compreender as alterações suscetíveis de justificar a mudança de decisão. Finalmente, os empreendedores avaliam oportunidades concretas de investimento. Admitir que planeadores ou amadores da política de reequilíbrio territorial podem sobrepor-se ou substituir-se à intuição dos empreendedores é um erro grave e conduz também a resultados desastrosos.

A notícia do Público é importante porque vem corroborar a minha ideia de que os agentes do reequilíbrio territorial, neste caso os médicos, também eles se deslocam no território respondendo a incentivos, sendo por isso fundamental trabalhar esse universo e compreender bem os fatores que podem influenciar esse “should I stay ou should I go?” de gente tão especializada. Julgo que estamos todos de acordo concluindo que a existência de um SNS ou de medicina convencionada de qualidade nos territórios é uma condição necessária para qualquer política consequente de reequilíbrio territorial. Nesse sentido, compreender a natureza e intensidade dos incentivos mais pertinentes parece ser algo de fundamental na concretização dessa política.

Poderemos atender ao que boa gente refere que a classe médica é por razões a montante da sua entrada na profissão gente acomodada e pouco propensa a mudanças de vida que impliquem deslocamento no território. Os tempos do regime de médicos na periferia como fase da tramitação para o exercício pleno da profissão já vão longe, embora muita gente ainda fale dessa experiência como algo de essencial nas suas próprias vidas. Assim, nunca compreendi integralmente as razões dos concursos públicos para a colocação de médicos no Algarve ficarem frequentemente muito aquém do preenchimento pleno. Tenho vindo, por mera curiosidade profissional, a aprofundar conhecimento sobre essa matéria, falando e interrogando membros da classe médica. Já compreendi que a remuneração pode não ser a variável independente que pesa mais na decisão e que as condições de organização e trabalho nas instituições de acolhimento (hospitais) podem ser mais determinantes da decisão do que a resposta a um sobre-salário. 

O exemplo hoje convocado para esta reflexão mostra que os tempos do “wishful thinking” nas políticas de reequilíbrio territorial devem ser rapidamente abandonados e criticados com veemência, sob pena de estarmos a transmitir aos autarcas das regiões menos desenvolvidas expectativas erradas e principalmente dissuasoras do que deveria constituir o cerne da sua intervenção – intervir nas condições ao seu alcance e suscetível de impactar as decisões de quem se desloca, de quem investe e de quem olha para esses territórios com uma oportunidade e espaço de empreendimento. E, com isso, estaremos também a dar consistência às próprias políticas públicas, contribuindo para um vez por todas desconstruir a ideia do seu poder ilimitado.