(Os vaticínios protagonizados por inúmeros analistas de que a eleição de Trump iria trazer o caos à administração americana e a quem dela depende no plano interno e externo revelaram-se uma aposta certeira. Com poucas semanas de governação dá para perceber que Trump e os seus principais acólitos navegarão no caos provocado pelo cumprimento das suas promessas eleitorais e, face a esse padrão de cumprimento, é de antecipar que esse vai ser o tom do seu consulado, mais ou menos imperial. É já visível a purga persecutória de que o FBI está a ser alvo com foco nos agentes que lideraram a investigação ao assalto do Capitólio, foi também ensaiado e depois revertido o congelamento das ajudas e empréstimos federais, com a ajuda de Musk a agência da ajuda externa americana foi também congelada e a guerra comercial em diferentes direções foi aberta. Não será difícil imaginar que irão suceder-se raides sobre o sistema judicial, o sistema eleitoral, o Banco da Reserva Federal e nem provavelmente a estrutura militar ficará a salvo da sanha persecutória e de desmantelamento. Há ainda quem diga que a comunicação social, as agências estatísticas e as próprias Universidades, consideradas alfobre de perigosas elites, serão também atingidas pelas práticas vingativas de Trump e do MAGA em geral. Estou em crer que toda esta sanha persecutória e vingativa não será neutra do ponto de vista da geração de contradições internas entre os que apoiaram a eleição, embora a sua manifestação concreta exija algum tempo para que seja conhecida e sentida. Além do mais, a frente da guerra comercial está longe de ser neutra do ponto de vista dos seus efeitos (inflacionários e de escassez de produtos) sobre particularmente a classe média e desfavorecida americana. Embora, curiosamente Trump tenha sido mais brando nos direitos aduaneiros aplicados à China (o peso do mais forte) do que os aplicados ao México e Canadá (ambos entretanto suspensos com negociações específicas), veremos o que será lançado sobre a União Europeia, uma guerra comercial rapidamente entra numa zona de indeterminação, a propósito da qual uma narrativa de vitória, por mais martelada que seja, é praticamente impossível.)
Trump é aquele artista trapaceiro que está em palco, falha alguns números, mas rapidamente os substitui por outros, mantendo o público em suspenso quanto ao teor das suas habilidades, um artista trapaceiro é mesmo assim. Mas uma guerra comercial, por mais força de retaguarda com que possa ser aplicada, torna a atuação em palco tão caótica, que mais tarde ou mais cedo haverá gente a protestar e a concluir que a sobranceria se paga caro em contexto de mercado internacional.
Convém, entretanto, ter em conta que Trump instala o caos numa economia americana que mantém as suas contradições fundamentais e que, há que reconhecê-lo, não foram substancialmente alteradas pela governação de Biden e Harris. Essa contradição fundamental está espelhada sintética e brilhantemente por um historiador americano, Bradley Birzer, com a seguinte frase: “Somos tão ricos, mas tão infelizes”. A recente publicação do relatório State of the Nation 2025 que analisa a evolução do bem-estar material e imaterial americano vem confirmar que a contradição está cada vez mais funda e que tende a agravar-se.
Na verdade, a evolução da riqueza americana é inequívoca, mas vários indicadores que medem a felicidade dos americanos fornecem uma sociedade americana claramente em perda, com sinais preocupantes em matéria de desempenho em diferentes áreas imateriais.
Neste post são referidos oito indicadores marcantes como a esperança de vida à nascença, a prevalência da depressão na sociedade, a desigualdade, a satisfação com a vida, a taxa de mortalidade infantil, a taxa de suicídio, a taxa de assassínios e a taxa de mortalidade por adição de drogas.
Uma leitura controversa destes números poderia segundo alguns ajudar a compreender o entusiasmo pelo estilo e promessas de Trump, mas a conclusão mais sensata é que a sustentação no tempo de um gap tão saliente entre desempenho económico e condições de felicidade é tarefa que não se aguenta muito tempo. E, seguramente, não será num cenário de caos instalado que esse problema será mitigado.
Nota final:
A leitura do State of theNation 2025 e o artigo de David Leonhardt no New York Times inspiraram este post e são a fonte mais recente para os leitores o aprofundarem se nisso tiverem interesse.
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