(As eleições alemãs deste domingo têm tudo para confirmar o que regra geral designamos de crónica anunciada. A extrema-direita da AfD acima dos 20%, a CDU a representar a resistência democrática, o SPD a cavar a sua irrelevância, os Verdes sempre aquém do que lhe era potencialmente concedido e à esquerda, de origem comunista, a confusão do costume com o Die Link a esbracejar resistindo em campanha porta a porta e o populismo de esquerda de Sahra Wagenknecht do BSW aquém do que prometera apesar da sua política anti-imigração. Salvo cataclismo de última hora, a interrogação parece ser a de saber com quem a CDU governará, pressupondo que resistirá à chantagem de Vance e Musk. Num gesto nostálgico, dei comigo por força de estímulos cruzados de leituras diversas a ler a célebre declaração de Helmut Kohl realizada em 23 de agosto de 1990 relativa à reunificação alemã e ao seu roteiro, incluindo a explicitação da ajuda à antiga RDA. Comparando o sentido de futuro que aquela galvanizante declaração veiculava com as interrogações que as eleições de hoje trazem ao povo alemão, a nostalgia passa rapidamente à perceção de que a Alemanha está metida num valente sarilho. Sabemos hoje que a AfD domina alguns Lander situados na ex-RDA, o que por si só suscita todas as interrogações sobre o que correu mal, mas que o seu peso eleitoral se estende a outros Estados alemães, numa real multiplicação de Cavalos de Troia, contribuindo para a formação da tal nova Internacional de direita libertária e autoritária que Musk, Vance, Bannon despudoradamente defendem.)
Se olharmos para a Alemanha dos últimos vinte anos, é fácil compreender como a ortodoxia dos limites ao endividamento induzidos pelo trauma inflacionário de que padecem as forças do establishment germânico, imposta descaradamente aos países da economia do sul, pelo menos enquanto os capitais alemães não zarparam e se puseram a salvo, coexistiu com o progressivo agravamento das condições de solidez da economia alemã. Não demorou tempo a perceber que a economia alemã tinha pés de barro, não só pela dependência energética em que voluntariamente se colocou, mas também porque a sua força industrial não avaliou convenientemente a sua posição nas cadeias de valor globais.
A ortodoxia monetária alemã não infligiu apenas danos aos países que experimentaram a crise das dívidas soberanas. Essa ortodoxia conduziu o próprio país a um défice de investimento em infraestruturas, com particular realce para os caminhos de ferro e as infraestruturas educativas, o mesmo acontecendo em relação aos avanços considerados necessários em matéria de digitalização. Esses défices de investimento em infraestruturas talvez tenham passado despercebidos em comparação com os alertas sentidos na indústria automóvel e tendo em conta que a evolução do emprego nos serviços tem vindo a compensar a perda de emprego na indústria transformadora.
A revelação da dependência energética após a saída de cena de Merkel não veio senão agravar essa evidência, juntando ao défice de infraestruturas atrás assinalado as necessidades de mais investimento para compensar a crise energética.
Mas a crise do setor automóvel e da indústria transformadora em geral veio colocar a economia alemã perante a necessidade de uma mudança no paradigma da sua afetação de recursos, já que a ideia de motor industrial está, senão anulada, pelo menos perante a necessidade de novas condições de arranque.
Esta insuficiência é deveras relevante para a coligação contra a AfD poder acenar com alguma coisa que se veja à população seduzida pelo canto da sereia e sobretudo pela tentativa de tudo explicar através da massa de imigração de que a sociedade alemã foi destino. Esse cerrar de fileiras precisaria de um contexto económico mais favorável. Os problemas com o motor do crescimento económico industrial e alguns incidentes com população islamizada residente em território alemão, designadamente os ataques com veículos descontrolados às tão populares feiras locais, produzem um campo fértil ao nacionalismo xenófobo da AfD.
Nos últimos dias da contenda eleitoral, o número de indecisos era ainda bastante elevado, um em cada cinco eleitores não tinha ainda decidido em quem votar ou, pelo menos, assim declarou quando foi inquirido. Todos os receios do mundo podem ser associados a esta indecisão, sobretudo no contexto do apoio despudorado de Vance e Musk à extrema-direita alemã, invocando para isso um rocambolesco argumento de defesa da liberdade de informação (olha quem!). Será que grande parte desses indecisos assumirá que a CDU é a força que oferece melhores condições para segurar o barco e liderar uma coligação governamental? Ou será que não vão resistir ao canto da sereia autoritária?
Por isso, a Alemanha, qualquer que seja o resultado de logo à noite, prefigura o que podemos esperar no futuro próximo para a Europa. Uma evolução em fio de navalha permanente com a toda a instabilidade normalmente associada a esta metáfora.
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