(Se é um facto que a erosão das condições de acesso ao SNS ocupa um lugar central nas preocupações dos portugueses, é difícil avaliar se essas preocupações estão ou não ao nível da crise de acesso a habitação compatível com o nível minguado de rendimento de grande parte da população. Poderá talvez dizer-se que essas preocupações assentam num desencontro de grupos etários. A erosão do SNS penaliza mais a população envelhecida, embora os problemas enfrentados pelas grávidas contrariem em parte essa avaliação, ao passo que as questões de habitação afetam mais a população mais jovem, com sérios custos para a consolidação de trajetórias de vida. Penso que o debate instalado na sociedade portuguesa e entre as forças políticas com assento parlamentar tem ficado aquém do nível esperado de profundidade para a gravidade do tema e uma das razões para essa minha avaliação é o facto de não ter sido concedida a devida atenção à dimensão internacional do problema para aí situar algumas das particularidades que a crise habitacional apresenta no país. É pena que assim aconteça, até porque tem sido recentemente publicada investigação que tem essa preocupação de analisar globalmente o problema e, o que não é nada comum, trata-se de investigação em que a realidade portuguesa é integrada nesse panorama global.)
O conceito mais utilizado nessa investigação disponível mais recente é o de “affordability”, que mede as condições de acessibilidade da população a habitação em condições compatíveis de rendimento disponível. Numa linguagem que me é cara, o conceito permite considerar que, em dado momento, a procura de habitação se divide em procura solvente e em procura insolvente. Por exemplo, em Portugal o acesso a habitação de topo, ajustada aos escalões superiores de rendimento, tem uma procura claramente solvente e a oferta de mercado ajusta-se perfeitamente a essa solvência, que não é apenas protagonizada por população estrangeira. Uma parte significativa dessa procura solvente é alimentada por população nacional abastada. Pelo contrário, a percentagem de procura insolvente que se manifesta no mercado é cada vez mais acentuada e nisso consiste em grande medida a crise habitacional atual.
A popular revista Finances &Development do Fundo Monetário Internacional no seu número de dezembro de 2024 faz eco de uma investigação de Nina Biljanovska, Chensu Fu e Deniz Igan, publicada pelo Bank of International Settlements (BIS), designada de “Housing Affordability – A New Dataset”, que faz jus â importância do conceito de acessibilidade económica a habitação e, melhor do que isso, apura a medida com novos indicadores e melhoria de informação mobilizada. Conhecida que é a enorme diversidade de tipologias de mercados de habitação e modelos de financiamento, o conceito de acessibilidade económica é essencial para operacionalizar a perspetiva comparativa a nível internacional.
A investigação agora publicada procura ir além da medida que trabalhava essencialmente o custo relativo da habitação, com atenção à fração de rendimento familiar despendida em habitação. Sem querer entrar em pormenores de medida que transcendem o alcance deste post, os investigadores trabalham sobretudo a medida do rácio entre o rendimento atual de uma dada família e o rendimento que é necessário para responder a um crédito hipotecário sem prejudicar a satisfação de outras necessidades básicas, o que significa que trabalham essencialmente elementos de comparação a partir dos mercados de crédito hipotecário.
Graças à nova base de dados, os investigadores concluem que a acessibilidade económica a habitação desceu em países como os EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá, Alemanha, Portugal e Suiça na sequência da trágica combinação entre efeitos da pandemia e regresso da inflação. Mas o que é surpreendente é que em termos médios a acessibilidade é hoje mais baixa do que era em plena crise imobiliária que precedeu a Grande Recessão de 2007-2008. O gráfico acima ilustra bem a descida dos níveis de acessibilidade.
Isto significa que existe uma dimensão global da crise habitacional induzida pelo momento particular em que a evolução do capitalismo se encontra e à qual Portugal não escapa, de certo modo agravada pelas tendências especulativas que o mercado habitacional tem apresentado ao longo do tempo.
Uma boa evidência das particularidades do caso português é fornecida pelo principal argumento que orientou a proposta governamental de alterar a Lei de Solos na componente de transformação em certas condições da propriedade rústica em solo urbanizável. O argumento sucessivamente martelado foi o de que a medida iria combater a escassez de solo, isto quando os especialistas clamavam que o custo do solo não era a principal fonte da escassez de oferta habitacional em Portugal. De facto, entre os principais operadores do setor existe a convicção, largamente ignorada pelos governos que lançam novos pacotes de política de habitação, de que a fiscalidade representa a maior componente do custo da habitação em Portugal, chegando rapidamente a 40% do custo total. Nesta fiscalidade, podemos também inserir imposições regulamentares, designadamente energéticas, que completam o referido agravamento fiscal.
Ora se juntarmos a este panorama, que aponta para a necessidade de um choque fiscal nesta matéria, a incapacidade dos salários acompanharem a evolução do preço da habitação, nova e reabilitada, e a insuficiência de oferta pública de habitação para responder à mencionada insolvência de procura temos uma cobertura bastante alargada da especificidade do problema habitacional em Portugal.
Ora, se consultarmos em pormenor os pacotes de habitação lançados pelos governos de António Costa e do atual governo da AD, não é difícil perceber que os três fatores considerados no parágrafo anterior estão longe de ter uma resposta consistente de política pública. Obviamente que a questão dos salários transcende o alcance da política pública. Mas a falta de objetividade em contrariar o custo fiscal elevado da habitação e a ausência de um programa consistente de oferta pública de habitação, no qual os programas municipais fossem uma componente e não o centro da questão transformam o debate atual num faz de conta.
O segundo governo de António Costa lançou cá para fora um programa que nem sequer integrou devidamente a estratégia que o seu primeiro governo concebeu, que tinha pelo menos alguma coerência. Quanto ao pacote do governo AD ele é um mar de coisa nenhuma, em grande medida influenciado pela ideia de que o mercado de habitação é soberano. Erro crasso porque os problemas de acessibilidade económica à habitação mostram precisamente o contrário, que o mercado não está a funcionar e que não resolve o problema da procura existente, mas não solvente.
Como é óbvio, os problemas de escassez de mão de obra e de organização da indústria da construção civil com produção ainda pouco padronizada e uma forte dispersão de pequenas empresas ajustadas a meros mercados locais e sem dimensão para uma resposta mais alargada à procura existente a nível nacional agravam a incidência dos três fatores determinantes atrás mencionados.
Com tudo isto presente, parece evidente que se está a pedir de mais aos municípios para resolver a crise habitacional.
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