quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

O REGRESSO DOS PREDADORES

 


(Vivemos hoje um período de nacionalismo exacerbado, gerado após pelo menos duas décadas a chamada Guerra Fria ter terminado. Durante esse período, uma nova fase do globalismo deu origem à emergência de sistemas e redes complexos à escala mundial, com especial relevo para a imbricada relação entre o sistema financeiro e a inovação tecnológica. Sempre mantive uma distância crítica face aos que endeusaram esse período e nada melhor do que a gravidade da Grande Recessão de 2007-2008 para compreender essa minha distância crítica. É sempre mais difícil interpretar as razões da mudança de paradigmas do que identificar a realidade dessa mudança. Assim também no tempo atual o reconhecimento de que o nacionalismo está aí a comandar o mundo tem ofuscado a necessidade de compreender como é que o globalismo deu origem a um período tão conturbado e repleto de atores que julgávamos ter desaparecido para sempre da cena política mundial. No meu entendimento do que o globalismo representou no período atrás mencionado, a presença de predadores continuou a fazer-se sentir. Os mercados encarregaram-se de assumir esse papel e, se é verdade que esse globalismo foi acompanhado da redução da desigualdade à escala mundial, calculada como se todos os indivíduos fossem residentes num só país global, também a desigualdade no interior dos países se intensificou, evidenciando que o globalismo não beneficiou toda a gente. Mas com este regressado nacionalismo, ponderadas as diferenças com que ele se manifesta, regressaram também os predadores mais arcaicos, como o exemplo das terras raras na Ucrânia e a cedência de um acossado Zelensky nos mostram com toda a eloquência.)

Donald Trump, Vladimir Putin, Xi Jinping, Narendra Modi e Recep Erdogan emergiram como os mais recentes protagonistas da onda nacionalista, constituindo-se rapidamente em inspiradores de outros personagens, de menor escala, em proporção aos territórios que comandam. Putin foi o mais influente na renormalização da ideia da guerra em grande escala como instrumento de conquista territorial, ou o que é a mesma coisa de diplomacia pela força e é neste novo contexto que o desamparado Zelensky tem de equacionar a hipótese de paz para o seu país. Trump emerge neste contexto como um predador transacional, acionando diplomaticamente o desplante de justificar o acordo pretendido em torno das terras raras da Ucrânia como forma de pagamento pela ajuda americana até ao momento, como se os EUA não tivessem ganho rigorosamente nada até ao momento.

O que nos chega da imprensa internacional quanto ao acordo que, em princípio, Trump e Zelensky assinarão amanhã sexta-feira em Washington não é totalmente claro quanto aos termos do que irá ser assinado, sobretudo porque o acordo pressupõe fases distintas e futuras para pormenorização de aspetos mais operacionais. A fazer fé na informação que o Economist terá conseguido obter, a formulação final terá esbatido grande parte das imposições despudoradas que a nova administração americana impunha à acossada Ucrânia, evoluindo para uma forma aproximada de exploração dos recursos em modalidade de “joint venture”, deixando cair ao que parece em grande medida a hostilidade com as negociações terão sido conduzidas. A conclusão a que o Economist chega merece acompanhamento futuro: “O quadro do acordo que resultou deste processo é relativamente vago e em grande medida teórico. A efetiva magnitude da riqueza em recursos da Ucrânia é desconhecida. Não existiu qualquer avaliação rigorosa dos recursos minerais usando técnicas de exploração modernas. Muitos dos recursos existem a grande profundidade ou em concentrações demasiado baixas para uma extração lucrativa. Talvez cerca de 40% dos recursos metálicos estejam situados em territórios ocupados pela Rússia. O acordo não fornece igualmente nenhum pormenor sobre as condições de processamento e de refinação, nas quais o valor real tende a ser gerado. Existem muitas outras lacunas. De qualquer modo, acordando em alguma coisa, a Ucrânia forneceu a Trump um resultado, saiu do buraco e ganhou tempo. No contexto em que a Ucrânia inesperadamente se encontrou isso já é bastante importante.”

Como é óbvio, num acordo deste tipo, tudo dependerá da percentagem de recursos de investimento que as autoridades ucranianas poderão colocar no processo. O número estapafúrdio que Trump apresentou para o ressarcimento americano de quinhentos mil milhões de dólares parece ter sido abandonado. Predadores hostis ou predadores bem-comportados não deixam de ser predadores e ao que parece Zelensky tem agora duas questões centrais com que se preocupar, resistir na frente de batalha e controlar o negociador/predador.

 (The New Yorker)

Referi uns parágrafos atrás que a onda nacionalista assumia várias modalidades, com novidades analíticas relativamente ao que se passa nos EUA. O jornalista Kyle Chayka que escreve na New Yorker sobre temas ligados à civilização da Internet não poupa palavras duras para em título afirmar que o tecno-fascismo chegou à América. O tecno-fascismo não é mais do que um autoritarismo comandado por tecnocratas, apoiado sobretudo na força da tecnologia, que passa a impregnar todos os aspetos da governação e da sociedade. Não é ainda líquido que os mercados de títulos estejam a apreciar esta ofensiva da tecnocracia autoritária nos EUA e já há quem diga que Trump é particularmente sensível à reação do mercado bolsista. O que o jornalista da New Yorker defende é que a onda tecno-fascista não é mais apenas uma abstração filosófica vinda dos lados de Silicon Valley. Transformou-se num programa político, cujos limites constitucionais estão a ser permanentemente testados no dia a dia através das várias diatribes que o DOGE comandado por Musk está a operar. E, o que não é menos importante, não é líquido também que o tecno-fascismo de Silicon Valley seja compatível com o populismo anti-elites do MAGA.

Nota final

Como era esperado o Washington Post de Jeff Bezos acaba de mudar os seus princípios editoriais que passam a estar baseados na defesa das “liberdades pessoais e mercados livres”, não publicando perspetivas opostas e críticas destes pontos de vista. A revolução anti-democrática está em curso, clarinha como água da mais cristalina.

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