(O que nos vale é que, apesar do marasmo de ideias que nos rodeia, há gente que continua a pensar bem e isso é uma importante defesa para os tempos que nos esperam. O farol que tais ilhas de pensamento representam oferece-nos também um valioso capital de resistência contra todos os propósitos de normalização que a todo o momento nos são propostos. Os normalizadores de serviço estão cada vez mais ativos. Na verdade, nunca houve tanta coisa para normalizar e os abnegados normalizadores vão ter trabalho que baste e tantos candidatos existem para a tarefa. Quero hoje destacar dois artigos que o fim de semana nos trouxe: o do filósofo José Gil no Público e o de Daniel Oliveira no Expresso. Ambos se focam no que vai acontecendo por esse mundo fora, com a democracia sob fogo. Ambos fornecem elementos para compreender o que Trump, os MAGA e agora os MEGA, Make Europe Great Again, trazem ao mundo em matéria de degenerescência da democracia, mas também para compreender, mais o artigo de DO, a fase atual do capitalismo em que estamos mergulhados. Ambos são fundamentais para explicar algo mais do que o narcisismo doentio de Trump, que em vez de ser considerado como uma excrescência exótica é antes a manifestação consequência das mudanças, tenebrosas diga-se, em curso.)
O artigo de José Gil, com a profundidade que lhe é reconhecida, clarifica ao que vem em termos bastante claros, referindo-se à nova administração americana: “(…) é um discurso que anuncia o desejo de impor, aos americanos e ao mundo, uma nova sociedade e uma nova cultura. Para tanto, conjugam-se estreitamente o capitalismo, o poder político, a visão antiambientalista e a intenção de destruir o modo de vida democrático. Mas as promessas extremistas escondem o seu radicalismo sob a aparência da normalidade.” Remetendo para uma verdadeira revolução económica, política e cultural que aponta a uma domesticada sociedade do “senso comum” de que Trump tem amplamente falado, a novidade do artigo de Gil é a forma como a inteligência artificial desempenhará, segundo ele, um papel muito preciso no desenvolvimento de uma sociedade espontaneamente disciplinada, não exigindo como no nazismo o que Gil designa pela energização das massas. No caso atual, tratar-se-á apenas de moldar a subjetividade das massas e facilitar a sua adesão às novas políticas, enquanto a imigração e o wokismo, que não é uma forma elementar de reduzir a esquerda a algo fácil de identificar na sociedade americana.
O artigo de José Gil é sobretudo relevante quando ele se interroga sobre se a revolução neofascista em curso poderá algum dia prescindir de um líder carismático como Trump e similares obedecendo a um pragmatismo digital que a Inteligência artificial assumirá em pleno. Essa hipótese a ser válida transformaria Trump num líder de transição. Segundo Gil, “o líder carismático terá também a função de encarnar a vontade inflexível de controlar e mudar o curso da História. Aqui, o neofascismo segue a tradição do discurso totalitário de querer dirigir absolutamente o tempo histórico (o “triunfo da vontade” irrompia na “vontade do Führer” que era mais forte do que todas as leis)”.
Qualquer que seja a hipótese válida, o pensamento de José Gil é importante para nos alertar que o histrionismo de Trump e o seu hiperdesenvolvido narcisismo não são o que de mais essencial está a acontecer nos EUA e no mundo. Algo de mais sombrio e de estrutural está em curso, que encarnou nesse histrionismo como modelo de adaptação a uma transição que quer ir mais além e domesticar a democracia, domesticando as massas.
É neste ponto que o artigo de Gil se cruza com o de Daniel Oliveira. A tese deste é a de que “Trump não é uma excrescência do sistema, é o ponto a que o sistema chegou”. Para o desenvolvimento desta tese, DO apoia-se sobretudo na aliança entre Trump e a oligarquia tecnológica, sim os oligarcas não existem apenas na Rússia, estavam praticamente todos na tomada de posse de Trump e isso diz tudo da relevância da referida aliança. Rapidamente DO chega à sentença final: “O que está a acontecer desfaz, aliás, a ideia de que assistíamos a uma polarização entre extremos. É exatamente o oposto: faltou o outro polo. Assistimos, desde a queda do Muro de Berlim, a uma rampa deslizante que levou as forças progressistas a assumirem o essencial do neoliberalismo, seja na economia, seja na redução da política a direitos identitários, com a destruição de qualquer ideia coletivista e comunitária. Agora, talvez faça falta uma verdadeira polarização que ajude a puxar as coisas para o meio.”
No artigo de DO fica por discutir a questão-chave de saber o que é que a globalização representou nesta caminhada do high-tech que parece necessitar de atropelos e bloqueios a essa mesma globalização para se poder impor. A questão não tem discussão fácil pois as sucessivas entorses que o Trumpismo se propõe colocar à globalização aparentemente são contraditórias com a expansão do próprio sistema. Segundo DO, tudo se passaria como se a globalização tivesse sido um faz de conta, um intermezzo necessário, ocultando toda a série de manipulações administrativas do comércio internacional. Esta interpretação considero-a discutível e creio que neste momento não é ainda possível antecipar com clareza qual vai ser o rumo futuro da economia global.
Mas embora reconhecendo que o debate está longe de estar fechado, a verdade é que com os artigos de José Gil e Daniel Oliveira estamos mais apetrechados para o seguir com a atenção e poder de análise que ele merece.
O fim de semana jornalístico valeu por isso a pena.
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