quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

UMA NOTÍCIA REVELADORA

 

(Trabalho e mais trabalho, relatórios para acabar, viagens pelo meio a Lisboa, o futebol da Champions a monopolizar minutos de repouso, tudo se vem conjugando para a menor assiduidade à escrita do blogue e de vez em quando, confesso, sabe bem resistir ao desafio do ecrã em branco a reclamar preenchimento. Por isso, aproveitando o embalo do Alfa, aqui estou de regresso para refletir sobre o título e notícia do Público de hoje. O que é uma excelente oportunidade para refletir sobre a efetividade das políticas de reequilíbrio ou, se o quiserem, de coesão territorial. Fico frequentemente espantado com alguns pronunciamentos sobre o necessário e imperioso reequilíbrio territorial do país, com várias evidências para o reclamar, a começar pela mais do que evidente avaliação de que a concentração de atividades e pessoas na aglomeração metropolitana de Lisboa está a exceder a capacidade de gestão existente para a gerir em moldes minimamente aceitáveis para a qualidade de vida das pessoas e para assegurar a capacidade de resposta dos serviços públicos. Anda por aí no ar a ideia de que a qualidade da gestão está a norte e que os inúmeros problemas observados a sul são o resultado de incompetências na gestão. Não rejeito que possa haver casos pontuais em que a incompetência de alguns protegidos pelas teias de interesses agrava a complexidade do que já é bastante complexo. Mas recomendaria que fôssemos parcos em alimentar esse peditório. O que me parece existir é a realidade de que não há conhecimento, engenharia e capacidade de gestão para responder a tanta concentração e isso, em meu entender, seria suficiente para arrepiar caminho e mitigar os custos do não reequilíbrio territorial.)

Mas o que me espanta mais não acontece entre os que continuam a teimar em adiar o reequilíbrio territorial. Espanto-me mais com a bondade ingénua de algumas propostas de intervenção para concretizar esse reequilíbrio. Muitas dessas propostas pressupõem uma mobilidade de recursos (de pessoas, de capitais e capacidade de empreendimento) agilizada como se de um passe de mágica se tratasse e, principalmente, com uma sobreavaliação clara do potencial de concretização e acerto das políticas públicas. O “wishful thinking” de muitos transforma-os em “ditadores” iluminados, como se tudo fosse reduzido a um problema de vontade política e de imaginação criativa na definição dos instrumentos de política, como se a existência de tais instrumentos se bastasse a si própria, gerando automaticamente resultados.

Pensar nas políticas de reequilíbrio territorial desse modo, devo alertar que conduz à frustração e à deceção em política e no planeamento. A deceção coletiva é uma categoria de psicologia social bastante esquecida (Hirschman, o patrono que me inspirou a escrever neste blogue, estudou-a profundamente). 

O que me diz já tão longa experiência é que pessoas, investidores e empreendedores respondem a incentivos porque os seus interesses não podem ser subestimados ou marginalizados. Os comuns dos mortais não se deslocam no território apenas por razões afetivas de retorno às raízes identitárias, respondem a incentivos e isso não representa menoridade alguma. A procura de melhor qualidade de vida pode esbater obviamente questões de remuneração, mas o usufruir dessa maior qualidade de vida pressupõe sempre um limiar de rendimento. Os investidores respondem a oportunidades lucrativas de investimento, independente da diferença importante a estabelecer entre os mais “curto prazistas” e os que estão preparados para ajuizar dessa lucratividade. Quando investidores que consideramos consistentes rejeitam o que a política de reequilíbrio territorial considera ser uma oportunidade, talvez devêssemos compreender melhor as razões dessa rejeição e trabalhar com esses investidores no sentido de compreender as alterações suscetíveis de justificar a mudança de decisão. Finalmente, os empreendedores avaliam oportunidades concretas de investimento. Admitir que planeadores ou amadores da política de reequilíbrio territorial podem sobrepor-se ou substituir-se à intuição dos empreendedores é um erro grave e conduz também a resultados desastrosos.

A notícia do Público é importante porque vem corroborar a minha ideia de que os agentes do reequilíbrio territorial, neste caso os médicos, também eles se deslocam no território respondendo a incentivos, sendo por isso fundamental trabalhar esse universo e compreender bem os fatores que podem influenciar esse “should I stay ou should I go?” de gente tão especializada. Julgo que estamos todos de acordo concluindo que a existência de um SNS ou de medicina convencionada de qualidade nos territórios é uma condição necessária para qualquer política consequente de reequilíbrio territorial. Nesse sentido, compreender a natureza e intensidade dos incentivos mais pertinentes parece ser algo de fundamental na concretização dessa política.

Poderemos atender ao que boa gente refere que a classe médica é por razões a montante da sua entrada na profissão gente acomodada e pouco propensa a mudanças de vida que impliquem deslocamento no território. Os tempos do regime de médicos na periferia como fase da tramitação para o exercício pleno da profissão já vão longe, embora muita gente ainda fale dessa experiência como algo de essencial nas suas próprias vidas. Assim, nunca compreendi integralmente as razões dos concursos públicos para a colocação de médicos no Algarve ficarem frequentemente muito aquém do preenchimento pleno. Tenho vindo, por mera curiosidade profissional, a aprofundar conhecimento sobre essa matéria, falando e interrogando membros da classe médica. Já compreendi que a remuneração pode não ser a variável independente que pesa mais na decisão e que as condições de organização e trabalho nas instituições de acolhimento (hospitais) podem ser mais determinantes da decisão do que a resposta a um sobre-salário. 

O exemplo hoje convocado para esta reflexão mostra que os tempos do “wishful thinking” nas políticas de reequilíbrio territorial devem ser rapidamente abandonados e criticados com veemência, sob pena de estarmos a transmitir aos autarcas das regiões menos desenvolvidas expectativas erradas e principalmente dissuasoras do que deveria constituir o cerne da sua intervenção – intervir nas condições ao seu alcance e suscetível de impactar as decisões de quem se desloca, de quem investe e de quem olha para esses territórios com uma oportunidade e espaço de empreendimento. E, com isso, estaremos também a dar consistência às próprias políticas públicas, contribuindo para um vez por todas desconstruir a ideia do seu poder ilimitado.

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