(Na linha de
reflexões recentes sobre esta matéria, estarei hoje no Congresso Internacional Transformações e (in) consistências
das dinâmicas educativas, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
da Universidade de Coimbra para uma intervenção sobre o tema)
Uma perspetiva de outsider interessado sobre
o tema
Queria
começar por contextualizar a minha intervenção. Não sou seguramente o que
segundo o léxico deste congresso internacional se poderia designar por
especialista dos temas da educação. Desde a minha aposentação da Faculdade de
Economia do Porto, não estou integrado na comunidade de práticas que trabalha
sobre e em torno do tema. Sou antes um observador exterior dos rumos da
educação, mas um outsider interessado sobretudo na perspetiva do
desenvolvimento económico e social do país e dos seus principais territórios.
Nesta perspetiva de outsider interessado, é para mim relevante a relação
ambivalente que se estabelece entre a edução e os rumos do desenvolvimento do
país: em que medida a melhoria das qualificações da população portuguesa e dos
seus ativos pode contribuir para o desenvolvimento do país e em que medida os
padrões deste último impactam a procura e a oferta de formação. Esta relação
ambivalente atravessa decisivamente a minha prática e a minha própria formação
como economista do desenvolvimento e do território.
No âmbito da
primeira dimensão, importa ter em conta que a relação entre dotação de capital
humano e crescimento económico não é automática, uma coisa é existir uma
correlação relativamente robusta entre stocks
de educação secundária e superior e produto per capita, outra coisa bem
diferente é essa relação significar causalidade também robusta. O que quero
dizer é que essa relação tem mediações importantes, talvez as mais relevantes
sendo as de natureza organizacional.
No âmbito da
segunda dimensão, interessa-me sobretudo a questão do matching sempre complexo entre a oferta e a procura de formação no
mundo dinâmico do desenvolvimento. Nesta dimensão importa sobretudo discutir
que estratégia devemos assumir: se uma postura reativa, reagindo com o menor
lag temporal possível às carências de qualificações e competências que o
desenvolvimento empresarial e global vai exigindo, através nomeadamente da
engenharia institucional mais apropriada para o fazer; ou se ousamos uma
postura mais prospetiva, antecipando com risco as carências de qualificações e
competências que irão manifestar-se no futuro próximo.
É nesta
perspetiva que chego ao tema deste painel, Ensino Profissional e Diversidade de
Percursos Educativos, ele interessa-me nessa dimensão mais lata das relações
entre educação e desenvolvimento, embora como Presidente da QP e como alguém
que trabalha no planeamento de políticas públicas, a minha equipa esteja também
envolvida na chamada prospetiva territorializada das qualificações de tipo intermédio
(nível IV) em trabalhos que têm envolvido a ANQEP e algumas CIM do território
nacional.
Não vou aqui
contar-vos a história dos avanços e recuos do ensino profissional e do seu
contributo para a diversidade de percursos educativos e para a redução dos índices
de abandono e insucesso escolares (ontem mais aquele, hoje mais este último).
Basta-me considerar que esses avanços e recuos acontecem num contexto em que o
país vai procurando compensar a retórica normativa da legislação que aponta
para o aumento da escolaridade obrigatória com realizações que aproximem
decisivamente os índices reais das promessas legislativas dessa retórica
normativa. Claro que a retórica normativa não é um produto exclusivo das
políticas de educação em Portugal. Se projetássemos a situação do país em
termos do seu articulado jurídico, estaríamos seguramente melhor posicionados
em muitos domínios do que realmente é a nossa situação relativa face aos
outros, na Europa e no mundo.
Existe um mito (saudoso) em torno do ensino
técnico-profissional e das qualificações de tipo intermédio?
Nas minhas
digressões e trabalhos de planeamento, há seguramente poucas reuniões com
empregadores ou organizações que os representem em que não se fale do capital
perdido com a precoce destruição do ensino técnico-profissional observada em
Portugal, numa espécie de trauma não resolvido gerado pela transformação
democrática. Talvez exista esse mito e aparentemente ele não desapareceu do
mercado de trabalho. Não vou discutir essa questão. É para mim suficiente
reconhecer que, mesmo que não tivesse sido operada essa eliminação, o
técnico-profissional que hoje existiria teria que ser necessariamente adaptado
ao contexto económico e social dos dias de hoje, pois não é seguro que a
mobilidade social ascendente do técnico-profissional de ontem fosse uma certeza
hoje com os problemas de mobilidade social ascendente hoje manifestados, seja
entre os que são apanhados pela armadilha da pobreza, seja os que na sempre
difícil tarefa de quantificar a classe média têm experimentado sérios reveses
de progressão social.
Não raras
vezes, aqueles empregadores que clamam pelas virtualidades do passado do
técnico-profissional são os que preferem contratar um jovem licenciado que
aceita rebaixar a sua remuneração para obter o desejado emprego do que recrutar
um diplomado pelo ensino profissional que tanto apreciam.
Precisamos urgentemente de uma estratégia de
transição para consolidar a afirmação equitativa e inclusiva do ensino
profissional
A história
das frustrações nacionais está cheia de consensos sobre objetivos estratégicos
que afinal não deram em nada. Há quem diga que isso se deve a estarmos perante
falsos consensos. No meu entender, não diria assim. Trata-se, outrossim, de
consensos incompletos. Há consenso sobre os objetivos estratégicos, mas não os
há quanto às transformações que é necessário realizar para lá chegar a partir
da sempre impura (e por vezes desajeitada situação de partida). Ou seja, em
termos mais claros, não há consenso sobre a estratégia de transição a assumir
para lograr o cumprimento dos objetivos.
Exemplifiquemos.
Não é
difícil chegarmos a um vasto consenso democrático sobre a necessidade de
valorizar o ensino profissional, que até pode acolher os que alimentam o mito
saudoso do técnico-profissional do antigamente. O ensino profissional
corresponde a um objetivo louvável de diversificação de percursos educativos
conducentes a uma maior empregabilidade de jovens, respondendo simultaneamente
a necessidades de empregadores que procuram qualificações não oferecidas pela
formação secundária regular, não vocacional, e que não requerem formações
superiores universitárias ou politécnicas. No entanto, a sua consolidação,
envolvendo designadamente a sua generalização nas escolas regulares do ensino
público, não arranca de uma tábua rasa, mas sim de uma situação de partida
imperfeita, impura, que é necessário transformar para se atingir o referido
objetivo.
E há uma
imensidade de situações que tornam essa transformação não necessariamente
consensual:
- Foi assumido que ensino profissional (com dupla certificação) oferecido pelas escolas do sistema público coexistiria com as Escolas Profissionais, de constituição anterior e criadas no âmbito de dinâmicas da sociedade civil local: poderia não ter sido esta a orientação e, por exemplo, ter sido assumido o desenvolvimento possível das Escolas Profissionais;
- Desde o princípio que foi assumido que o reforço dos cursos profissionais teria de coexistir com a continuidade de presença de outras modalidades de formação vocacional com dupla certificação, como por exemplo o Sistema de Aprendizagem de iniciativa do IEFP: sabemos como é historicamente “fácil” (passe a ironia) a interação e o diálogo institucional entre os serviços de educação e de emprego;
- Não está ainda totalmente resolvido se o ensino profissional pode aspirar a estudos de continuidade no ensino superior, universitário ou politécnico, ou se, pelo contrário, será atribuída prioridade à formação de um ensino superior de curta duração (TeSP) para assegurar essa continuidade: as hesitações com que os TeSP foram criados e a grande confusão quanto aos seus objetivos permitem inferir que essa questão não está estabilizada;
- Outros admitiram a possibilidade de constituição de um sistema dual, à alemã, como se um sistema dessa natureza pudesse ser criado a partir do nada;
- E para incendiar mais esta questão o governo anterior, através dos hoje defuntos Cursos Vocacionais, procurou estabelecer a diferença entre percursos profissionais em idades demasiado precoces.
Sem comentários:
Enviar um comentário