domingo, 9 de outubro de 2016

A SEMÂNTICA DO PERDÃO




(Já não há francamente pachorra para este tipo de controvérsias que excitam tanto os nossos jornalistas, que reagem como animaizinhos amestrados à possibilidade de as desencadear, embora não acrescentem rigorosamente nada à resolução do bicudo problema que nos saiu em sorte)

O governo em funções irá lançar (anunciou que vai lançar mas é este o hábito por estes dias) um programa de estímulo ao cumprimento de dívidas ao fisco e à segurança social que visa gerar receita fiscal ao longo dos próximos anos, mas que pelas condições em que será lançado muito provavelmente poderá ainda em 2016 gerar receita que ajude ao cumprimento do défice dos 2,5% do PIB ou abaixo dele. Estava escrito nas estrelas que o jornalismo nativo iria encontrar nesta matéria vasto campo para esgrimir as contradições de comportamento no governo e depois na oposição ou vice-versa.

A pimenta necessária para gerar a reação pavloviana do jornalismo luso está na palavra perdão fiscal. Com políticos que falam como gralhas desesperadas em busca de um sound bite de glória, é facílimo encontrar uma contradição entre o que se disse ontem na oposição e o que se diz agora no governo, ou o contrário também é verdadeiro. No caso do PS, coube pelos registos mais conhecidos ao então deputado Eduardo Cabrita zurzir no programa de estímulo à concretização de dívidas fiscais lançado pelo PAF, para agora o atual governo recusar liminarmente a designação de perdão fiscal, já que não há perdão de dívida mas antes perdão de juros e de custas judiciais.

Como é óbvio, perdão de juros faz parte de uma ideia mais alargada de perdão fiscal, pois sabemos o ónus que representa a carga de juros que se acumula sobre uma dívida fiscal ou de contribuições para a segurança social ao fim de algum tempo. A explicação mais lúcida que ouvi do assunto foi a do próprio secretário de Estado Rocha Andrade, que foi apanhado a usar a expressão perdão fiscal e como cheirou a esturro o caso da GALP a existência de um litígio fiscal entre esta empresa e o fisco fez o resto. Mas, desautorizado ou não, Rocha Andrade foi o único que fez a diferença ao explicar que o programa do atual governo permite o pagamento a prestações da dívida, o que não existiria no programa do governo anterior que apostava tudo na cobrança antecipada para um dado ano.

Como é também óbvio, um programa desta natureza, mesmo que alongado no tempo, não deixa de ter um objetivo de cobrança de receita fiscal. Não podemos também ignorar que estímulos desta natureza podem gerar um efeito de risco moral. Tantos programas de estímulo ao pagamento de dívidas acabarão sempre por despertar em alguns a ideia que vale a pena atrasar pagamentos, já que um programa qualquer tenderá a emergir para evitar o pagamento de juros e com a morosidade da justiça essa opção pode colher e ser favorável ao infrator.

Mas uma coisa não pode ser ignorada. A magnitude das dívidas ao fisco e à segurança social é demasiado volumosa para ser deixada às maleitas da justiça em termos de recursos humanos. Por isso, a semântica do perdão fiscal é ridícula, mais valeria assumir a contradição entre o passado e o presente, confirmar que é perdão fiscal de juros e de custas judiciais e que em termos de análise custo-benefício os resultados prováveis do programa são superiores ao risco moral de tal política. Polémicas semânticas desta natureza dispensamo-las bem. Não acrescentam rigorosamente nada à resolução dos problemas que nos batem à porta. E contradições entre afirmações do passado e do presente, quando não materializam o propósito de enganar toscamente o eleitor, rapidamente são esquecidas. Mas falar menos talvez não fosse má ideia.

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