sexta-feira, 14 de outubro de 2016

ENSINO PROFISSIONAL E PERCURSOS EDUCATIVOS (parte II)




(Parte final do texto da intervenção no Congresso Internacional Transformações e (in) consistências das dinâmicas educativas, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Coimbra)

Uma longa caminhada a percorrer para que o ensino profissional corresponda a uma diversificação de percursos educativos socialmente inclusiva e reconhecida pelo mercado com a retribuição justa

A estratégia de transição que é necessário implementar para consolidar o ensino profissional não pode deixar de aproveitar o significativo crescimento observado no número de jovens matriculados em formações profissionalizantes entre 2005-06 e 2014-14. Carece de saber se os números de 2013-14 e 2014-15 significam a interrupção de uma tendência ou se, pelo contrário, representam algo de circunstancial.

Porquê então sublinhar necessidades de consolidação de um processo que aparentemente caminha para uma posição de equilíbrio entre o número de jovens em cursos gerais e científico-humanísticos e em vias profissionalizantes? As razões prendem-se sobretudo com as condições concretas em que a transição ocorreu e as insuficiências que foram geradas. Enunciarei algumas dessas insuficiências e desenvolverei na parte final da minha intervenção apenas uma dessas dimensões:

  • Uma grande parte da massa de jovens que tem vindo a aumentar as matrículas em vias profissionalizantes, designadamente em cursos profissionais (114.848 jovens em 2014-15), está no sistema vocacional mais como derradeira tentativa de os manter no sistema educativo do que propriamente como resultado de uma opção vocacional clara e fundamentada;

  • Persistem interrogações sérias quanto à especialização diferenciada para uma correta informação às famílias e aos jovens sobre a oferta disponível entre cursos profissionais de escolas regulares, escolas profissionais e sistema de aprendizagem;

  • São generalizadamente apontadas insuficiências gritantes em matéria de formação de professores e de orientação vocacional, tanto mais que o sistema enfrenta hoje públicos cada vez mais complexos e não foi ainda realizado o investimento em investigação de metodologias pedagógicas e educativas ajustadas a essa complexidade;

  • Persistem sinais de estigmatização do ensino profissional por parte da procura social das famílias, curiosamente mais acentuadas em ofertas formativas mais solicitadas por empregadores;

  • Há um longo trabalho ainda a fazer para harmonizar três fontes de procura de qualificações e competências dos cursos profissionais: a procura social das famílias, a procura dos empregadores e a procura estrutural determinadas por desígnios estratégicos do país acaso haja condições para eles serem estabelecidos.


É sobre este último tópico que centrarei a parte final da minha intervenção.

Como integrar progressivamente a procura de qualificações e competências num sistema ainda predominantemente dominado pela oferta?

Penso que não ficarão demasiado chocados se vos disser que, em meu entender, o sistema de educação e formação é ainda predominantemente dominado pela oferta, ou seja, escolas, universidades e politécnicos, centros de formação. Bem sei que me dirão que a oferta não se pode demitir de resposta aos desafios mais profundos que a educação nos coloca, que há condições que devem ser asseguradas para além das sugestões ou ditames do mercado, que a cidadania democrática impõe ofertas desligadas do tema da produtividade. Obviamente que sim e para um reformista como eu o mercado não é o senhor absoluto.

Mas, à medida que vou tomando contacto com a prospetiva territorializada de qualificações de tipo intermédio (nível IV) que a ANQEP e algumas CIM têm vindo a desenvolver, mais se me tem enraizado a ideia de que a política pública não pode andar à margem da melhoria das condições de matching entre oferta e procura de qualificações. E esse matching não tem necessariamente de limitar-se ao tema da empregabilidade, embora compreenda que ele tenda a revestir-se de progressiva relevância nas condições de desemprego juvenil ainda prevalecentes no mercado de trabalho em Portugal.

Mas que procura ou que procuras?

Tenho trabalhado com uma representação triangular da procura de qualificações (e competências) passíveis de ser oferecidas pelo ensino profissional, na qual diferencio os seguintes tipos de procuras: a procura estrutural associada a desígnios estratégicos democrática e politicamente assumidos pelo país ou que resultem de transformações estruturais irreversíveis (o envelhecimento demográfico ou a disseminação do digital, por exemplo); a procura social das famílias e dos jovens, que tendemos a tratar como se fosse uma só e na qual pode haver divergências entre o que a família quer e o que interessa ou entusiasma os jovens; a procura empresarial veiculada pelos empregadores, quando estes se pronunciam sobre as suas necessidades de recrutamento a curto e a longo prazo.

O modelo é complexo e pode tornar-se ainda mais complexo se o cruzarmos com diferentes posturas da oferta, como por exemplo oferta inerte e “mais do mesmo”, oferta reativa e oferta inovadora e proativa.

Discutamos as procuras.

Quanto à procura estrutural, podem dizer-me que, nos tempos que correm, escasseia coragem para grandes apostas em termos de proposta à sociedade de grandes prioridades e desígnios de qualificações a produzir. A paixão da educação deu o que deu e a saída limpa, o afastar de novo resgate e a consolidação a todo o preço das contas públicas tem-nos viciado em lentes de “ver ao perto” e feito abandonar as de “ver ao longe”. Se a indústria ótica descobriu as lentes progressivas, também em matéria de produção de qualificações me parece possível cruzar as duas lógicas. Bom, mas mesmo dando de barato que os tempos não estão para grandes desígnios estratégicos, há transformações estruturais em curso que impõem por si só tendências que a oferta de qualificações não pode olimpicamente ignorar. Costumo dar os exemplos do envelhecimento demográfico e da disseminação transversal do digital para explicitar o meu pensamento. Mesmo sem grandes desígnios estratégicos proativos e democraticamente validados, a simples reatividade e ajustamento a essas tendências não pode deixar de impactar a oferta de qualificações.

A procura social das famílias e dos jovens é sobretudo determinada por dois tipos de fatores: a construção do valor social das profissões para as quais as qualificações oferecidas dão acesso e a taxa de retorno das qualificações em mercado. O primeiro conjunto de fatores tem que ver sobretudo com o modo como a comunicação social inculca nas famílias e nos jovens determinadas imagens de prestígio e notoriedade social das profissões e das qualificações associadas. A taxa de retorno das formações obtidas alimenta-se de impressionismo decorrente da experiência de cada um no mercado de trabalho, embora mais recentemente investigação universitária sobre retornos da educação tem vindo a ser mediatizada e pode completar esse impressionismo com resultados robustos de investigação reconhecida. Como sabem, a taxa de retorno define-se como o diferencial de salário que, em termos médios, o mercado de trabalho atribui a uma determinada qualificação quando comparada com a que é atribuída a um dado padrão baixo de qualificação. O tema é relevante em Portugal pois os diferenciais de retorno de formação qualificada conservam-se altos, mas estão em queda absoluta a partir do momento em que a massa de novas qualificações está a chegar ao mercado. Só as formações superiores com mestrado e doutoramento estão neste momento a resistir a essa queda, cavando aliás uma significativa divergência consoante esse complemento de formação superior é ou não assumido.

Existe no terreno uma generalizada avaliação por parte da oferta de cursos profissionais de que a procura social das famílias está enviesada favorecendo certas qualificações intermédias diremos terciarizantes e bastante menos propensa a qualificações muito solicitadas por empregadores de cunho fabril ou industrial. A forma como a situação de desemprego de técnicos intermédios é comunicada entre os que procuram um emprego tende também a influenciar essa representação social. Não há porém evidência segura de que indicadores de saturação de oferta tenham influência relevante na procura das famílias. Existem, porém, evidências de que existe uma significativa margem de manobra para trabalhar as expectativas e a procura das famílias, abrindo-se às Escolas um desafio sério no sentido de encontrar público para alguma inovação de oferta.

Finalmente, a procura dos empregadores encontra para ser explicitada em termos convenientes para o ajustamento da oferta algumas dificuldades. O conhecimento que os empregadores revelam dos cursos e qualificações oferecidos pela oferta de cursos profissionais é reduzido e bastante truncado. A equivalência entre qualificações (e a oferta que as disponibiliza) e profissões não é de fácil apreensão. Existe uma ampla margem de manobra para a melhoria do conhecimento recíproca entre oferta e empregadores. A existência no mercado de trabalho de jovens licenciados dispostos a trabalhar com remunerações bastante baixas exerce um efeito perverso na procura de técnicos intermédios, prejudica a empregabilidade de alguns cursos e acaba por influenciar a procura social das famílias.

O modelo de procura triangular que proponho nestas notas apresenta um elevado potencial para ser trabalhado em exercícios territorializados e com ampla participação de agentes interessados. Exige uma prática permanente e capacidade de aprender com as experiências. Exige também efeitos de demonstração e que a ANQEP e as entidades do Ministério da Educação com tutela sobre o ensino profissional e a sua regulação futura estejam efetivamente dispostas a abrir a política pública a tais práticas de concertação. Requer também que a oferta combata os seus próprios fatores de inércia. As CIM têm neste processo uma oportunidade de se afirmarem como entidades de concertação nos seus territórios de implantação.

Em resumo, mais do que o comportamento futuro dos números de jovens matriculados em vias profissionalizantes de ensino, há uma longa jornada para consagrar a diversidade equilibrada de percursos educativos na escolaridade obrigatória. Certamente que o ensino profissional não pode ficar indiferente aos riscos de obsolescência de progresso tecnológico e há seguramente competências a formar que permitam aos jovens ter capacidades de navegação profissional, para além dos conhecimentos técnicos intermédios que definem a orientação vocacional. Tal como aconteceu noutras fases da evolução do sistema educativo e de formação em Portugal, a um ciclo de explosão de oferta e de frequência sucede regularmente um ciclo mais exigente de qualificação do sistema e da qualidade da oferta. O ensino profissional não é seguramente uma poção mágica para resolver o problema dos jovens NEET em Portugal. A problemática do insucesso escolar não está dele afastada. A jornada será longa e por isso seria recomendável alguma estabilidade de processos e de prioridades. Mais do que consensos, compromissos quanto à estratégia de transição pertinente para atingir os objetivos fixados.

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