domingo, 2 de outubro de 2016

REFLEXÕES SOBRE A CRISE NO PSOE




(Esgotado o folclore amargo dos jogos internos, a crise no PSOE merece atenta reflexão aos que se interessam pela renovação do socialismo democrático e da social-democracia, particularmente no quadro da Espanha das nações, ou seja, ponderando a influência das autonomias regionais)

Permitam-me que regresse à crise do PSOE que não esperava que se libertasse tão cedo, apesar de a ter intuído e até antecipado.

Três dimensões de análise suscitam para já atenção.

A primeira prende-se com o significado da queda anunciada de Pedro Sánchez. Esta não pode ser desligada da sua ascensão à liderança no partido. Há relatos entre os analistas espanhóis mais conhecedores da realidade interna do PSOE que interpretam a ascensão de Sánchez ao poder, embora tenaz e determinada e resultante de um longo trabalho com as diferentes sensibilidades regionais do PSOE, como uma convergência circunstancial de forças que se opunham ao seu adversário da altura, Eduardo Madina. O que esses analistas procuram significar é que mais do que a consistência de um passado, similar por exemplo à de Patxi Lópex, apoiante de Sánchez, o jovem Pedro mostrou na altura apenas tenacidade e determinação na conquista das diferentes sensibilidades do partido. A consolidação da sua ascensão estava fortemente dependente dos espanhóis eleitores o considerarem uma alternativa efetiva ao PP de Rajoy. Isso não aconteceu. A fragilidade teria de vir ao de cima. E veio, apesar da ginástica de Sánchez que tanto conseguiu um texto de acordo com o CIUDADANOS, um documento relevante que vale a pena ler sobretudo pela transversalidade de posições a que aspirava, como nunca deixou de admitir a hipótese, inverosímil aos olhos dos espanhóis e também aos meus, de um acordo PSOE-PODEMOS-CIUDADANOS. Sánchez morreu na praia, apoiado apenas pelo respaldo dos militantes que continuam a rejeitar ver um governo do PP emergir de novo, que continuam a manifestar-se com veemência, mas que pesam cada vez menos na sensibilidade do eleitorado.

A segunda dimensão de análise diz respeito às relações que podem descortinar-se entre a crise do PSOE e a emergência de forças inorgânicas e capitalizadoras não só do voto de protesto mas também da crise geral de representatividade e de identificação das principais forças políticas com os problemas e anseios da população comum. Esta é talvez a dimensão de análise que vale a pena seguir com mais atenção e regularidade. A questão não existe apenas em Espanha, ela tem relevância também em Itália (Renzi versus Movimento 5 Estrelas) e em Portugal, através sobretudo do relacionamento entre o PS e o Bloco de Esquerda, por exemplo. Não é por acaso que a crise do PSOE é música celestial para os ouvidos dos principais líderes do PODEMOS. Iglésias apressou-se a classificar o acontecimento como uma sequela da crise de regime e, também não por acaso, militantes do PODEMOS e da IZQUIERDA UNIDA estavam presentes nas imediações da Calle Ferraz em Madrid, ajudando à festa das manifestações dos militantes de base do PSOE que continuam a rejeitar veementemente a governação do PP.

A experiência do Bloco de Esquerda em Portugal é a primeira entre estes casos a viabilizar uma solução de governação à esquerda e vou dispensar-me de comparações em matéria de fiabilidade política entre o Bloco e o inorgânico PODEMOS. Numa primeira análise, o Bloco parece-me menos inorgânico do que o PODEMOS. Sánchez não terá avaliado bem essa situação. Não cortou rente, de início, a possibilidade de acordo com o PODEMOS. Foi sensível ao sorvedouro de votos que o PODEMOS tem imposto ao PSOE e é discutível que essa transferência resista a uma mera aproximação dos acelerados do PODEMOS a uma perspetiva de governação. Sánchez foi aqui apanhado de calças na mão. Não está de facto consolidada entre os partidos socialistas uma estratégia de resistência a essa fuga de eleitorado, até porque essa resposta depende bastante das forças políticas ao centro e à direita com que se pode governar. Compreendo perfeitamente que seja preciso um grande nariz para conseguir governar com o PP ou mesmo com o PSD desmiolado de Passos Coelho. Dizia alguém entre os testemunhos recolhidos pelo El País que o PSOE terá passado de partido identificado com a Espanha da transição democrática para um partido identificado com os problemas mais complexos em que a democracia espanhola está mergulhada. Análise exemplar. E uma das razões para essa transformação está na ainda registada incapacidade de resposta à ameaça de forças como o PODEMOS.

A terceira dimensão de análise não a vi ainda discutida e por isso a trago para aqui. Na crise do PSOE, que ontem gerou a demissão de Sánchez após a sua derrota no Comité Federal, a natureza deste Comité merece atenção particular. Ele reflete a estrutura das autonomias regionais e as sensibilidades políticas que se têm acantonado em torno dessa organização. Aqui vale a pena sublinhar que há uma diferença substancial entre estas sensibilidades regionais e as que, por exemplo, se acantonam nas federações regionais do PS em Portugal. É que estamos a falar de personagens políticos que têm experiência efetiva de poder regional e não estão apenas acantonados em torno de interesses dirimidos com a estrutura partidária central. Alguns dos “barões” regionais do PSOE estão amarrados a eleitorados representados nas suas regiões e que os catapultaram para o poder. Veja-se por exemplo o caso da raposa Susana Diáz que personifica o PSOE profundo da Andaluzia, onde a resiliência evidenciada ao permanente avanço do PP está baseada em profundas relações de subsidiação, de apoios e outras formas de reprodução de confiança política. Outros personagens existem em regiões em que o PSOE também tem governado, caso das Astúrias, da Estremadura, por exemplo.

Alguns destes barões regionais opuseram-se a Sánchez com o argumento de que a abstenção viabilizadora de um governo PP por parte do PSOE defenderia melhor o interesse de Espanha do que a ida para umas duvidosas (do ponto de vista dos seus resultados) terceiras eleições em dezembro. Dei comigo a pensar como é que esses críticos de Sánchez terão interpretado o pretenso interesse de Espanha. Na perspetiva de uma sensibilidade politicamente forjada em torno de uma autonomia? Ou num cálculo provavelmente correto de defesa dos interesses regionais e do seu eleitorado?

Uma estrutura política federal, como aquela em que o PSOE está organizado, sob o pressuposto de que a saída para Espanha está na ideia de Espanha das nações, coisa que a sanha centralizadora do PP nunca conseguirá deglutir, não pode ignorar estas questões, que podem ser consideradas custos da democracia federalizada. Esses custos tendem a sobrepor-se aos benefícios identitários de uma Nação das Nações quando as ideias para o todo são frágeis, inexistentes ou simplesmente em busca de um novo equilíbrio. O que é precisamente o caso da situação atual em Espanha. Nem o próprio PP consegue explicar realmente a folga macroeconómica que lhe caiu dos céus. É por isso que nesse contexto que, em meu entender e, por mais paradoxal que isso possa parecer para um defensor convicto da descentralização e do modelo federal para Espanha como eu, Sánchez viu a sua queda favorecida e até impulsionada pela amarração regional de algumas das suas principais figuras. Aliás, com um cenário de governação do PP que pode prolongar-se por toda uma legislatura, a defesa do bolo regional no orçamento global não deixará de ser uma das preocupações cruciais destes personagens.

Por agora, resta apenas a interrogação se haverá ou não terceiras eleições, Enquanto isso, o PSOE irá permanecer fraturado e num limbo de indefinição estratégica. Caso não haja novas eleições, não deixará de ser curioso observar como se comportariam os deputados pelo PSOE, talvez eles fraturados pelos acontecimentos desta semana.

A instabilidade segue dentro de momentos.

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