domingo, 30 de outubro de 2016

LUZ DE PASSAGEM




(Breve reflexão sobre a morte de João Lobo Antunes, totalmente descomprometida e sem qualquer vivência com o desaparecido)

Há várias maneiras de passar pela vida, das agruras do anonimato mais pleno até ao protagonismo mais natural e espontâneo ao mais preparado e estruturado. Passagens pela vida com luz brilhante, intensa, até à mais completa escuridão.

Como observador exterior e sem qualquer vivência de contacto com o agora desaparecido João Lobo Antunes, com a exceção dos relatos de António Lobo Antunes nas suas crónicas cada vez mais intimistas, devo concluir que uma passagem pela vida como a do Professor deve ser de retribuição absoluta, apesar da doença fatal. Não é de facto vulgar assistir-se à comunhão de vários domínios, da ciência, da medicina, da cultura e da política na homenagem a uma personalidade que parte, mesmo tendo em conta a propensão algo mórbida para os consensos post mortem. Desta comunhão, de que retiro voluntariamente a política, pois ser mandatário de Sampaio e depois de Cavaco é coisa que tenho alguma dificuldade em entender, fascina-me sobretudo a tríade ciência-medicina-cultura que João Lobo Antunes internalizava naturalmente e que me leva a uma tradição de alguma medicina portuguesa, hoje provavelmente em desaparecimento acelerado, oportunidade para uma evocação dos saudosos Corino de Andrade e Nuno Grande, sobretudo ditado pelo contexto que caracteriza a formação em medicina.

Numa atividade focada na saúde humana e na compreensão da vida, essa articulação entre a ciência, a medicina e a cultura enriquecia a prática médica com um humanismo ímpar, muito para lá dos prodígios da técnica, cirúrgica inclusive, da tecnologia de suporte ao diagnóstico.

João Lobo Antunes protagonizava essa ciência e medicina reflexivas e qualquer que fosse o seu caráter, disso não posso falar por desconhecimento, deixa um legado inestimável na preservação dessa tradição da velha medicina portuguesa, nele enriquecida com a valia da investigação.

Que a LUZ de passagem pela vida que a sua prática representou possa contribuir para que na medicina portuguesa não se perca essa inspiração.

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