(E subitamente o
tema da desigualdade emerge no discurso do FMI, resta saber se para consolar más
consciências ou para ter impacto em programas futuros de ajustamento)
Todos os leitores deste
blogue já compreenderam que a facilidade ou dificuldade com que o pensamento económico
se transmite à decisão política, seja ela de países, ou de instituições responsáveis
ou com intervenção na regulação da economia mundial, constitui um tema de eleição
das minhas preocupações recorrentes. Assim é.
Por outro lado, o tema
da relação entre capitalismo e desigualdade tem vindo sistemática e
regularmente a ser discutido neste blogue como um domínio no âmbito do qual se
jogará muito, em meu entender, do eventual e desejável ressurgimento da
social-democracia e do socialismo dito democrático. Como sabem, há os que
defendem que o capitalismo será sempre promotor de desigualdade e que, por
isso, a desigualdade deve ser considerada como um dano colateral desse sistema,
inevitável e incontornável. O pensamento reformista que inspira este blogue não
sustenta essa posição. Existe uma diferença que se designa de as variedades do
capitalismo e algumas dessas variedades mostram que é possível aspirar e concretizar
modelos de crescimento e de alocação de recursos na economia de mercado de
pendor mais distributivo. Temos vindo ainda a defender que a desigualdade é
fruto de escolhas políticas no âmbito dessas variedades de capitalismo, sendo
por isso matéria de opções políticas. Não ignoramos que a investigação de
Piketty mostrou que os períodos em que o capitalismo gerou desigualdade
transcendem claramente aqueles em que o crescimento foi predominantemente
distributivo. Mas essa conclusão decorrente dos trabalhos do inspirado e hoje
popular economista francês só mostra precisamente o que queremos demonstrar, ou
seja, que a desigualdade é fruto de opções de política económica e de políticas
públicas em geral.
Regressando ao tema da
transferência do conhecimento em economia para a decisão política, é novidade
relativa a progressiva atenção que escritos económicos produzidos por
investigação realizada entre os muros da instituição FMI têm dedicado ao tema
da desigualdade. Sabemos que, tal como acontece noutras instituições que
acolhem investigação económica, estão sempre a lembrar-nos que os resultados
obtidos não comprometem a instituição de acolhimento mas apenas os seus
autores. Mas há sinais de que a atenção ao tema da desigualdade já ultrapassou
os muros da investigação paga por essas instituições. O FMI é um bom exemplo
dessa tendência. A imagem que abre este post põe na boca de Christine Lagarde
palavras que decorrem diretamente de resultados de investigação muito recente,
apadrinhada pela instituição. Bem sei que Madame Lagarde não é propriamente um
modelo de verticalidade e que não é propriamente uma revolucionária das ideias
de mudança nas instituições. Mas precisamente por isso é que as suas palavras
adquirem outro significado. Lagarde é seguramente uma calculista, alguém que
mede bem o peso dos efeitos das suas palavras. Ora, sendo assim, a sua alusão à
ideia de que a desigualdade penaliza a sustentabilidade do crescimento resultará
de uma avaliação que não será meramente circunstancial, do tipo palavrinhas a
abater para sossegar as hostes e travar a animosidade crescente contra a instituição.
Além disso, são palavras que decorrem em grande medida de investigação acolhida
no seio da própria investigação. Veja-se aqui a síntese do economista chefe do FMI
para a área do desenvolvimento económico, Prakash Loungani, que bem documenta a
relevância dessa fonte.
É um facto que Lagarde
ao falar de sustentabilidade do crescimento está a pensar em tendências a longo
prazo. Mas todos sabemos que o longo prazo não se constrói no vazio. O longo
prazo é uma sucessão de curtos prazos. E, por isso, a invocação do tema da
desigualdade coloca a instituição FMI em dificuldades. Por outras palavras, os
programas de ajustamento, que visam corrigir, sabemos, situações de curto
prazo, não poderão passar ao de leve pela penalização que desigualdade impõe ao
crescimento. É que esses programas de ajustamento (veja-se o que aconteceu em
Portugal) promovem claramente o crescimento da desigualdade. Assim sendo, o FMI
terá de reconhecer que os seus programas de ajustamento estão a colocar em
risco a sustentabilidade futura do crescimento económico e isso é entrar de
cabeça no furação da contradição.
É aí precisamente que
quero chegar. Não quero admitir que a alusão de Lagarde à desigualdade esteja
ao mesmo nível das suas cogitações sobre os últimos trends de moda que inspiram
a sua postura de extrema elegância. Trazer para ribalta o tema da desigualdade
e da sua penalização do crescimento a longo prazo implicará a prazo uma
completa revisão dos programas de ajustamento macroeconómico, o que não
significa que tal se produza a curto prazo. A disseminação das ideias no sentido
de alterar paradigmas estabilizados de intervenção é lenta. Mas água mole … ou
pelo menos é assim que um reformista convicto deve pensar.
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