(Reflexões
complementares sobre o Irão após a eliminação do Major General Suleimani. De novo a história parece repetir-se, mas no fundo o que se repete são as
incompreensões sobre as suas evidências.)
Nos fins dos anos 70, andava eu às voltas com
essencialmente dois temas de interesse académico e de pesquisa. Mais a
ocidente, o rescaldo da crise petrolífera dos anos 70 atormentava os
macroeconomistas de origem e fidelidade keynesianas em torno do conceito de
estagflação e a abertura que iria proporcionar à contrarrevolução das
expectativas racionais e do poder explicativo absoluto do mercado. Numa
perspetiva mais global, a da teoria e política do desenvolvimento, com flirts contínuos e fertilização cruzada
com a sociologia do desenvolvimento e a história económica, era sobretudo o que
vinha de outras paragens mais a oriente que gerava uma outra revolução, a da
economia do desenvolvimento, enterrando de vez o egocentrismo ocidental que
tanto dano provocou na disciplina.
A erupção da revolução iraniana em 1979, primeiro com uma
grande coligação que destruiu a influência do então conhecido em Portugal por
Xá da Pérsia Reza Pahlevi, depois com a ascensão do radicalismo islâmico dos
ayatolla e criação da República Islâmica Teocrática do Irão, teve um profundo
impacto na sociologia do desenvolvimento, particularmente na sociologia
americana. As razões para esse impacto perturbador situavam-se essencialmente
no espanto provocado por aquelas massas imensas de população, vestidas de negro
que apoiavam então o Ayatolla Khomeini. Depois da ilusão da ocidentalização
induzida pela monarquia autocrática de Pahlevi, a pergunta que muitos colocavam
era mais ou menos esta: onde estavam essas massas negras que ocupavam literalmente
o espaço público da rua nas manifestações de massa contra a influência
americana?
A prestigiada revista World
Development publicou em 1980
um número dedicado à influência dos fatores religiosos no desenvolvimento
económico, do qual ainda recordo o artigo de Charles Wilber e Kenneth Jameson,
ambos então na Universidade americana de Notre Dame, intitulado “Religious Values and Social Limits to Development”. Muitas
horas passei em torno desse artigo.
Não sou um especialista das questões iranianas para
descrever com minúcia o tipo de evolução da sociedade iraniana ao longo destes
40 anos. Mas sabemos que ela evoluiu, muito em função do quadro macroeconómico
iraniano (tão volátil quanto as receitas petrolíferas o são, não raras vezes)e
também de nichos de mudança que foram emergindo na sociedade urbana, obviamente
sem destruir as bases que então potenciaram o advento do radicalismo teocrático
islâmico. Nunca visitei o Irão mas tenho relatos de gente amiga, politicamente
insuspeita e simplesmente amantes da viagem e da descoberta do desconhecido,
que ficam deslumbrados com a espessura civilizacional que se intui a partir de
alguns territórios e do património visitável.
Por sua vez, o cinema de Abbas Kiarostami (O Sabor da
Cereja marcou-me profundamente) foi um auxiliar precioso. Sempre me fascinaram
os registos de interpretação das mudanças a partir de dentro, de alguém que não
rompe totalmente com as origens, embora ameaçadas pelo teocratismo mais ou
menos fanático. Foi também assim com os testemunhos dos intelectuais polacos
que viveram a partir de dentro a dissolução soviética, muitas vezes com
sofrimento e perseguição, de algo que poucos imaginariam vir a desembocar numa
das mais sinistras derivas populisto-religiosas dentro da Europa.
O acordo nuclear conseguido entre o Ocidente e o Irão
alimentou a esperança de que a convivência internacional a que o Irão se
propunha poderia pelo menos manter viva a ideia de transição de uma sociedade
menos rígida, embora todos soubéssemos que o prolongamento da questão
palestiniana e a profunda instabilidade do Médio Oriente fortemente baseada na
conflitualidade entre sunitas e xiitas constituíssem sempre derivas potenciais
da agressividade iraniana.
O regime teocrático iraniano não é flor que se cheire,
praticamente ninguém o ignora. Mas a sua forte colaboração na aniquilação da
Al-Quaeda e combate ao Estado Islâmico mostrou que a tensão podia ser gerida,
já que suprimir a fratura Xiito-Sunita é pura utopia.
Esta semana as tais massas negras imensas (fala-se de um milhão de pessoas) voltaram ao
espaço público na sequência do assassínio do seu herói nacional Suleimani,
arrastando obviamente consigo toda e qualquer ponta de mudança mais
laico-criativa na sociedade urbana iraniana. Tive a sensação de que a História
se repetia quarenta anos depois. Mas verdadeiramente o que se repete é a
incompreensão das suas lições. No seu repentismo, Trump ofereceu um bom
presente à radicalização do Estado teocrático e como há quarenta anos há
fatores religiosos de novo a ter que ser compreendidos. A primeira retaliação
iraniana é relativamente contida, mas capacidade ardilosa é coisa que não falta
no regime agora reforçado. Por isso, permaneço pessimista sobre a possibilidade
da contenção se sobrepor à radicalização e intensificação do conflito. E há
sempre Trump.
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