quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

DE NOVO AS IMENSAS MASSAS NEGRAS …



(Reflexões complementares sobre o Irão após a eliminação do Major General Suleimani. De novo a história parece repetir-se, mas no fundo o que se repete são as incompreensões sobre as suas evidências.)

Nos fins dos anos 70, andava eu às voltas com essencialmente dois temas de interesse académico e de pesquisa. Mais a ocidente, o rescaldo da crise petrolífera dos anos 70 atormentava os macroeconomistas de origem e fidelidade keynesianas em torno do conceito de estagflação e a abertura que iria proporcionar à contrarrevolução das expectativas racionais e do poder explicativo absoluto do mercado. Numa perspetiva mais global, a da teoria e política do desenvolvimento, com flirts contínuos e fertilização cruzada com a sociologia do desenvolvimento e a história económica, era sobretudo o que vinha de outras paragens mais a oriente que gerava uma outra revolução, a da economia do desenvolvimento, enterrando de vez o egocentrismo ocidental que tanto dano provocou na disciplina.

A erupção da revolução iraniana em 1979, primeiro com uma grande coligação que destruiu a influência do então conhecido em Portugal por Xá da Pérsia Reza Pahlevi, depois com a ascensão do radicalismo islâmico dos ayatolla e criação da República Islâmica Teocrática do Irão, teve um profundo impacto na sociologia do desenvolvimento, particularmente na sociologia americana. As razões para esse impacto perturbador situavam-se essencialmente no espanto provocado por aquelas massas imensas de população, vestidas de negro que apoiavam então o Ayatolla Khomeini. Depois da ilusão da ocidentalização induzida pela monarquia autocrática de Pahlevi, a pergunta que muitos colocavam era mais ou menos esta: onde estavam essas massas negras que ocupavam literalmente o espaço público da rua nas manifestações de massa contra a influência americana?

A prestigiada revista World Development publicou em 1980 um número dedicado à influência dos fatores religiosos no desenvolvimento económico, do qual ainda recordo o artigo de Charles Wilber e Kenneth Jameson, ambos então na Universidade americana de Notre Dame, intitulado “Religious Values and Social Limits to Development”. Muitas horas passei em torno desse artigo.

Não sou um especialista das questões iranianas para descrever com minúcia o tipo de evolução da sociedade iraniana ao longo destes 40 anos. Mas sabemos que ela evoluiu, muito em função do quadro macroeconómico iraniano (tão volátil quanto as receitas petrolíferas o são, não raras vezes)e também de nichos de mudança que foram emergindo na sociedade urbana, obviamente sem destruir as bases que então potenciaram o advento do radicalismo teocrático islâmico. Nunca visitei o Irão mas tenho relatos de gente amiga, politicamente insuspeita e simplesmente amantes da viagem e da descoberta do desconhecido, que ficam deslumbrados com a espessura civilizacional que se intui a partir de alguns territórios e do património visitável.

Por sua vez, o cinema de Abbas Kiarostami (O Sabor da Cereja marcou-me profundamente) foi um auxiliar precioso. Sempre me fascinaram os registos de interpretação das mudanças a partir de dentro, de alguém que não rompe totalmente com as origens, embora ameaçadas pelo teocratismo mais ou menos fanático. Foi também assim com os testemunhos dos intelectuais polacos que viveram a partir de dentro a dissolução soviética, muitas vezes com sofrimento e perseguição, de algo que poucos imaginariam vir a desembocar numa das mais sinistras derivas populisto-religiosas dentro da Europa.

O acordo nuclear conseguido entre o Ocidente e o Irão alimentou a esperança de que a convivência internacional a que o Irão se propunha poderia pelo menos manter viva a ideia de transição de uma sociedade menos rígida, embora todos soubéssemos que o prolongamento da questão palestiniana e a profunda instabilidade do Médio Oriente fortemente baseada na conflitualidade entre sunitas e xiitas constituíssem sempre derivas potenciais da agressividade iraniana.

O regime teocrático iraniano não é flor que se cheire, praticamente ninguém o ignora. Mas a sua forte colaboração na aniquilação da Al-Quaeda e combate ao Estado Islâmico mostrou que a tensão podia ser gerida, já que suprimir a fratura Xiito-Sunita é pura utopia.

Esta semana as tais massas negras imensas (fala-se de um milhão de pessoas) voltaram ao espaço público na sequência do assassínio do seu herói nacional Suleimani, arrastando obviamente consigo toda e qualquer ponta de mudança mais laico-criativa na sociedade urbana iraniana. Tive a sensação de que a História se repetia quarenta anos depois. Mas verdadeiramente o que se repete é a incompreensão das suas lições. No seu repentismo, Trump ofereceu um bom presente à radicalização do Estado teocrático e como há quarenta anos há fatores religiosos de novo a ter que ser compreendidos. A primeira retaliação iraniana é relativamente contida, mas capacidade ardilosa é coisa que não falta no regime agora reforçado. Por isso, permaneço pessimista sobre a possibilidade da contenção se sobrepor à radicalização e intensificação do conflito. E há sempre Trump.

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