Tinha ouvido falar do filme em relatos de Cannes (onde foi Grande Prémio do Júri a meias com “Os Miseráveis”) e através de uma amiga brasileira do meu filho. E não saí desiludido do “Trindade” (um projeto que se consolida no Porto, aliás como o do “Ideal” em Lisboa). “Bacurau”, um trabalho realizado por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, é realmente um dos grandes momentos de cinema do ano findo, “não apenas porque é um filme de resistência (e já o era antes de Bolsonaro) mas sobretudo porque faz aquilo que o melhor cinema faz: pega nos ingredientes do passado e, qual chef visionário, torna-os num prato novo que abre pistas para o futuro” (cito o crítico do “Público”, Jorge Mourinha).
E continuo: “Para quem quiser ver, está tudo no genérico, naquele majestoso zoom do espaço sideral para o interior pernambucano ao som de Gal Costa cantando Objecto não identificado de Caetano Veloso. É uma explicação e um aviso das duas horas que se seguem, filhas espirituais da geleia geral do tropicalismo mas também do vanguardismo vale-tudo de Glauber Rocha (e se há Glauber aqui, Deus meu): é Spielberg, é Carpenter, é Tarantino, é Hawks, é western-spaghetti-feijoada com candomblé ácido e sopa de coco, é o Brasil como enorme caldeirão de culturas e experiências, sempre descontraído e vai-com-os-outros até ao momento em que é preciso marcar posição – e aí, gente, ninguém o pára. E ainda: “Este Brasil do futuro, esta aldeia esquecida pelos políticos oportunistas, esta aldeia perdida que a tecnologia “apaga” dos mapas com desígnios sinistros e que é transformada pelos gringos numa reserva de caça, é um grande filme popular dos anos 1950, um western sobre um rancho cercado pelos barões do gado, a aldeia gaulesa do Astérix a resistir ao invasor romano (com poção mágica e tudo). E é um comentário raivoso sobre o imperialismo e a colonização, um olhar sobre a própria história do Brasil enquanto país manietado, um elogio da comunidade (e que bonito é ver Bacurau, a aldeia, a unir-se contra o invasor gringo, consubstanciado na pessoa de um Udo Kier deliciosamente cabotino, nessa cena seminal com uma imperial Sônia Braga).”
Concluo, sugerindo que não deixe de ver (e que “se for, vá na paz”): “uma meditação sobre o Brasil enquanto vítima do imperialismo, colonizado social e cultural, pais do futuro onde o futuro não é para todos”, numa definição sintética ratificada pelo realizador Kleber Mendonça Filho com os acrescentos de que “essa é a história da humanidade” e de que “eu acho que ‘Bacurau’ inclusive é leve [a esse respeito]”. Uma obra inquietante mas poderosa!
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