(Vénia
a um artigo do meu filho Hugo Figueiredo publicado ontem no Observador e não
vem inspirado por correntes de alt-right. No fundo, o difícil reconhecimento em Portugal de que o acesso à formação
superior é um instrumento decisivo de combate à desigualdade, sobretudo se o
tecido empresarial compreender o retorno necessário da qualificação?)
Citação integral:
“O Ensino Superior como Elevador Social
Hugo Figueiredo
A universalização progressiva do ensino superior deve ser
um desígnio nacional assumido frontalmente, sem medos, nem qualificações.
23 Jan 2020, 00:14
Portugal é, como se sabe, um país muito desigual. E a
desigualdade tende a gerar imobilidade social. Uma sociedade imobilista não
permite demonstrar e premiar adequadamente o talento, as novas ideias ou a
demonstração de capacidades cognitivas ou socioemocionais transformáveis em
maior produtividade e riqueza agregada. Não permite, sobretudo, valorizar a
diversidade dessas ideias de forma independente da sua origem social. Sujeita a
sua validade à capacidade de ultrapassar barreiras que, consistentemente ao
longo dos percursos de formação, permitem que as elites sejam capazes de
reproduzir, para os seus filhos, as suas próprias vantagens. No caso português,
o desempenho escolar no ensino obrigatório, quando medido pela capacidade de
obter classificações elevadas ou evitar reprovações, parece assumir maior
importância do que a própria segregação de alunos por escolas, por exemplo. O
papel das famílias no apoio a estas trajetórias de sucesso é importantíssimo
tal como o é na formação da capacidade de aprendizagem nos anos mais precoces
(logo na educação pré-escolar).
O que me interessa discutir neste artigo, porém, é a
forma como o acesso e os diferentes percursos no ensino superior poderão ser,
cada vez mais, mecanismos de propagação de desigualdades.
O conceito de mobilidade social é amplo. Mas é sobretudo
a baixa mobilidade entre gerações que caracteriza (negativamente) a sociedade
portuguesa. A mobilidade ascendente é baixa, a mobilidade descendente é hoje
mais provável. Dados recentes mostram que o emprego dos pais determina em
grande medida o dos filhos. A probabilidade relativa de um filho de um
trabalhador industrial português, por exemplo, vir a assumir um cargo de gestor
é das mais baixas entre os países da OCDE. O nível de capital humano dos pais
como determinante do número de anos de educação dos filhos é também
desmesuradamente importante.
Neste contexto, assegurar o ingresso e a conclusão de um
curso superior é hoje uma condição necessária para evitar, em particular, a
possibilidade de estagnação ou despromoção social. Em primeiro lugar, porque os
elevados benefícios salariais e coletivos desse investimento continuam a
justificá-lo. Em segundo, porque um curso superior desenvolve, idealmente, as
capacidades de pensar criticamente e de forma abstrata, de adaptação e de
resolver problemas que cada vez mais empregadores precisam e que não podem ser
substituídas por máquinas ou robôs. Fornece igualmente um espaço de
desenvolvimento de comportamentos, valores e posicionamentos éticos essenciais
às democracias e às suas instituições. Nesse sentido, a universalização
progressiva do ensino superior deve ser um desígnio nacional assumido
frontalmente, sem medos, nem qualificações. Aliás proponho desde já um teste
simples para os que argumentam que “o ensino superior não pode ser para todos”:
a sua tomada de posição aplica-se aos seus filhos ou apenas aos filhos dos
outros?
Não basta, contudo, universalizar qualquer ensino
superior. A expansão do acesso pode muito provavelmente coexistir com uma
crescente estratificação e com o aumento das desigualdades. Nesse caso, se o
sistema de ensino superior for incapaz de evitar o surgimento de novos
mecanismos de reprodução intergeracional de desigualdades, o potencial de
desencontro de expectativas é enorme e prejudicial à sua generalização.
Considere uma forma simples de avaliar os impactos de
várias políticas relativas ao ensino superior à luz desta perspetiva: sempre
que essa medida resultar em maior seletividade ou no aumento das disparidades
da despesa por aluno e, consequentemente, do hiato de qualidade entre as
instituições de elite e as restantes, o potencial de imobilismo está instalado.
A possibilidade de os empregadores confundirem sinais de privilégio com sinais
de capacidade é muito maior do que possamos querer acreditar. E no contexto de
um mercado de trabalho muito segmentado e com um número relativamente limitado
de bons empregos, o potencial de reprodução de desigualdades é enorme.
Alguns exemplos da dificuldade em negociar o equilíbrio
necessário entre a massificação do ensino superior e o controlo dos seus níveis
de hierarquização são já aparentes. A redução de propinas, ou mesmo a ideia de
um ensino superior tendencialmente gratuito, não deve ser implementada se
acelerar os problemas de subfinanciamento crónico que caracterizam o nosso
sistema. Resultará provavelmente na diminuição assimétrica do nível da
qualidade do ensino de primeiro ciclo e reforçará a probabilidade de abandono
sobretudo de alunos provenientes de famílias de menor rendimento. Um debate
sério deste tipo reconhece esse perigo e dá prioridade à necessidade de um novo
contrato social capaz de garantir um reforço significativo do investimento no
ensino superior público. Já no contexto de dificuldades de financiamento, o
foco na progressividade da partilha de custos e no reforço de mecanismos de
ação social é muito preferível. Tal como é tornar essa ação o mais transparente
e previsível possível. Por outro lado, a crescente importância dos mestrados
quando associada à liberalização das suas propinas (eventualmente como forma
compensatória) alargará certamente os problemas de mobilidade social. A verdade
é que continuam a ser os percursos relativamente longos e seletivos no ensino
superior aqueles que resultam em maiores benefícios salariais.
Também as preocupações de gestão da rede e da definição
do número de vagas devem ser analisadas à luz da mesma ideia. Maior
seletividade e maior autonomia nos processos de seleção de instituições de
maior prestígio são garantia de menor mobilidade social. Pelo contrário, o foco
deverá estar, quer no alargamento do número de vagas nas instituições mais capazes
de promover percursos de mobilidade ascendente, quer no reforço do
financiamento dedicado à criação de mecanismos de inclusão e diversificação de
oferta capazes de atrair alunos de contextos mais desfavorecidos: a criação,
por exemplo, de curricula mais diversificados ou modulares, com componentes
mais experienciais ou mais vocacionais também em instituições generalistas; a
criação de programas de tutoria ou mentoria que auxiliem a integração desses
públicos e a sua transição do ensino secundário; a criação de anos zero ou
ofertas fundacionais que permitam alargar as vias de entrada nessas
instituições e a homogeneização de competências. Todos estes objetivos exigem
provavelmente mecanismos de financiamento dedicados explicitamente ao aumento
da qualidade do ensino e não apenas subsídios genéricos a alunos ou
instituições.
Será ainda necessário considerar que algumas
intervenções, implementadas com objetivos desejáveis, possam ter consequências
não antecipadas. A tentativa de corrigir assimetrias regionais, por exemplo, a
partir da transferência de vagas para o interior ou regiões menos
desenvolvidas, por exemplo, pode aumentar o nível de seletividade nas
instituições de maior prestígio localizadas nos grandes centros urbanos. A
estratégia de criação de vias de acesso próprias e a necessidade de promover a
integração dos alunos do ensino profissional no superior – um objetivo
essencial – deve procurar ser o mais centralizada possível, assim como
transversal a todas as instituições públicas (e não apenas orientada para
instituições politécnicas). A centralização de critérios ou de exames de acesso
é, ao contrário do que alguns possam acreditar, promotora de inclusão. A opção
por concursos meramente locais ou por total autonomia na definição de critérios
de admissão, pelo contrário, aumenta a possibilidade de criar uma segunda ou
terceira divisão no ensino superior. Sobretudo se a separação de vias de acesso
permitir que o ensino profissionalizante abandone a pretensão de combinar um
ensino prático e vocacional com o desenvolvimento de competências fundacionais
de banda larga. O futuro do emprego penalizará, a prazo, perfis excessivamente
técnicos e rígidos. A necessidade de criar mecanismos de acesso ao ensino
superior que avaliem o desempenho das escolas secundárias com base em critérios
capazes de evitar corridas de desempenho nos exames nacionais é ainda uma
discussão que merece ser aprofundada. Mas, também aqui, esse alargamento de
critérios não deve resultar em maior discricionariedade de critérios de admissão
e maior seletividade. Também aqui a formalização de procedimentos e a
homogeneização pode ser amiga da inclusão.
Finalmente, promover a função de elevador social do
ensino superior exige a capacidade de identificar concretamente quais as
instituições e mesmo os ciclos de estudos em cada área que cumprem melhor essa
função. A utilização de dados administrativos massivos que cruzem a dimensão
socioeconómica das famílias, o percurso no ensino superior e a posterior
integração no mercado de trabalho começa hoje a ser exequível também em
Portugal. O tratamento e posterior disponibilização pública de forma
absolutamente anonimizada, transparente e intuitiva de estatísticas e
relatórios individualizados de mobilidade e de (in)sucesso no mercado de
trabalho poderá promover decisões individuais mais informadas, criar mecanismos
de competição saudável entre instituições e permitir que o financiamento
público seja mais eficiente e sujeito a demonstração de resultados. O potencial
de transparência existe. A realidade das escolhas individuais e da ação
política ainda não o aproveita devidamente. Como resultado, estes debates
continuam muitas vezes a ser feitos com base em impressões ou visões
distorcidas da realidade que atrasam mais do que promovem uma maior igualdade
de oportunidades."
Professor Auxiliar na Universidade de Aveiro e
investigador do CIPES (Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior)
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