(Estou
convencido que as ondas de choque da investigação jornalística Luanda Leaks
estão ainda longe de terem produzido todos os seus efeitos e de revelarem toda
a extensão do tipo de tramas que acompanha regularmente estes casos. Por agora dá para refletir sobre mais uma maldição dos recursos naturais, a
angolana, compreender os limites de uma acumulação primitiva desestruturada
transformada em saque e ainda para meditar sobre os complexos do colonizador à
míngua de capital. Já não é pouco.)
À medida que a trama angolana em torno de Isabel dos
Santos como ponta de lança da família com o mesmo nome se vai desvendando, dou
comigo a pensar o que poderia ter sido a sagacidade empresarial de Isabel dos
Santos se colocada ao serviço de uma boa governação e de projetos de
desenvolvimento capazes de contornar a maldição petrolífera e não como
instrumento da mais ampla cleptocracia dos recursos de uma economia.
A tragédia angolana não é algo de substancialmente
diferente de outras maldições ou tragédias (“curse” é o termo com que a economia
do desenvolvimento cunha este tipo de experiências) que a dependência de
recursos naturais em economias ainda sem o seu modelo de desenvolvimento
estruturado tende a provocar. Não é por acaso que a emergência de booms
exportadores de produtos energéticos em economias já estruturadas (casos, por
exemplo, do petróleo na Noruega e do gás natural nos Países Baixos) não deixam
de provocar anomalias macroeconómicas estruturais sem contudo gerar tragédias
ou maldições como a angolana. Em Angola, como noutros países em que o petróleo
ou outros produtos naturais suscetíveis de gerar grandes booms de receitas de
exportação (ou de contração das mesmas em períodos de queda de cotações mundiais),
essa deriva estrutural está na origem de todos os males e acaba por conduzir a
uma dualização, contrapondo o fausto à mais das pungentes formas de pobreza.
Nestes casos, a opção da diversificação possível e dificultada
pelo próprio modelo de concentração das fontes de lucratividade num único
recurso tem regra geral uma de duas situações possíveis. Uma das vias é a da
crescente dependência face ao investimento estrangeiro que vai ocupando a
extração e posterior valorização ou até transformação, que vai acabando por
ditar localmente um modelo rentista também ele sem grandes perspetivas de diversificação
lucrativa. A outra via, que foi essencialmente a angolana, é a da utilização das
receitas do petróleo para tentar criar uma burguesia industrial que reinvista
esses excedentes que fazem as vezes de uma acumulação primitiva do capital. Não
é necessariamente uma via trágica, se e só se essa acumulação tender a ser
internamente reinvestida, apontando para uma transformação interna da economia
e construindo um mercado social de resposta às necessidades básicas de uma
vasta população abaixo do limiar de pobreza. Alguma capacidade empresarial
jogou pontualmente esse jogo, mas genericamente o processo transformou-se
rapidamente em saque, consumos de luxo, fuga de capitais, branqueamento, afastando
inexoravelmente o reinvestimento dessas elevadas somas de dinheiro do
reinvestimento na economia interna.
Chegam-me informações de Angola que apontam para uma
situação interna insustentável a nível social e há quem diga que, perante a
incapacidade de introduzir uma reviravolta no modelo económico de modo a
responder mais eficazmente à pobreza, o governo de João Lourenço tem na desmontagem
do império familiar Dos Santos a oportunidade de denunciar culpados adiando o
embate com a sua própria incapacidade de apresentar soluções.
E, como seria de esperar, o síndrome do país colonizador
que procura atrair os fluxos de capital do então colonizado apresentava em
Portugal um vasto potencial de crescimento por uma razão muito simples – a economia
portuguesa está à míngua de capital. Face a tão tentadoras oportunidades de
atração de fundos, designadamente para os não transacionáveis que deram o
estouro com a crise de 2011, lá se acena com o interesse nacional da atração de
fundos e com a preservação da estabilidade sistémica do universo financeiro
para se autojustificar a benevolência com que se abrem as portas, muitas
portas.
A intrépida Ana Gomes corre o risco de ter carradas de
razão quanto aponta o dedo acusador a reguladores e às principais entidades
financeiras de entrada desses capitais, mesmo reconhecendo que as malhas da lei
se apertaram nos tempos mais recentes e que, como costuma dizer o António Lobo
Xavier em defesa do seu mundo de interesses profissionais, o sistema financeiro
português está acima da média europeia em termos de cumprimento de regras de combate
ao branqueamento de capitais.
Em tudo isto, para além de me chocar a indiferença das
elites angolanas em relação à pobreza do seu povo, incomoda-me que gente que me
é próxima em termos de simples amizade, muito perto de se poderem retirar para
uma vida afastada da ribalta, sejam colhidos nesta futura avalancha de
revelações, suspeições, regulações tanto mais “light” quanto mais a
necessidade de não provocar ondas e não afugentar investidores.
E nestas coisas do passado que é reinterpretado em função
de novos dados reveladores é perturbador deparar com os olhos prazenteiros de
felicidade e de puro deleite com que ministros, financeiros, investidores, presidentes
de câmara e outros personagens recebiam a insinuante Isabel e sua comitiva. Há
imagens que valem por tudo e, nos próximos tempos, veremos seguramente esse
universo de agentes profundamente dividido em dois grupos: os que engrossarão
encarniçadamente a banda dos detratores de Isabel e os que, talvez mais
sabiamente, se entregarão ao mais profundo silêncio e recato. De qualquer modo,
antecipo grandes oportunidades para os grandes escritórios de advogados que
irão gerir o imbróglio nas empresas e sociedades em que Isabel dos Santos é
acionista ou investidora, seja lá sob que forma ou representação. Afinal alguma
coisa terá de mudar para que o essencial permaneça na mesma.
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