(A operação autorizada por Trump de
eliminação do Major-General iraniano Quassem Suleimani e, simultaneamente, de Abu
Mahdi al-Muhandis, o líder da milícia Kata’ib Hezbollah, representa um
acontecimento de consequências imprevisíveis e lança-nos simbolicamente na
instabilidade de 2020. Podemos discutir a génese de tal operação, que
aparentemente estaria destinada aos chefes da milícia do Hezbollah e só muito
em cima da hora se alargou a Suleimani, mas por detrás de toda essa discussão
está a consumação do que muitos e há muito tempo avançavam, a perigosa
imprevisibilidade do decisor Trump)
Comecemos por recordar as particularidades do regime
iraniano, em que a simbiose entre o Estado e a poderosa liderança religiosa é
em si perturbadora. Para além disso, o regime não é flor que se cheire, no que
diz respeito ao seu apoio a forças e milícias com quem é difícil coexistir.
Recordemos ainda que, após a decisão americana de abandonar o Iraque após a sua
desgraçada saga em torno das putativas armas de destruição maciça de Saddam
Husseim, a influência iraniana no universo político e social do Iraque não
parou de aumentar. Mas convém ainda recordar que o combate contra o ISIS Estado
Islâmico não teria sido bem-sucedido sem a preciosa colaboração dos iranianos,
ansiosos também por quebrar a influência sunita naquelas paragens, combate esse
em que a participação do agora abatido Major-General foi decisiva e amplamente
reconhecida.
Acho que ninguém irá ser capaz de nos tempos mais
próximos, incluindo os próprios americanos, de fazer prova do que foi alegado
para justificar a eliminação de Suleimani, chefe da força de elite iraniana.
Sob a sua liderança, os iranianos estariam a preparar uma onda de atentados
contra postos e/personalidades americanas na região, na sequência da escalada
iniciada com os recentes acontecimentos na embaixada americana em Bagdad, o que
explicaria o seu regresso do Líbano em companhia de Abu Mahdi al-Muhandis. O
Major-General iraniano não era uma pessoa qualquer, pois corresponde a um herói
nacional em vida e não custa imaginar que a sua eliminação tenderá a recentrar
de novo o apoio em torno da liderança religiosa iraniana, mesmo daqueles que
espreitavam uma transição e mudança nos apertados interstícios de mudança que
se anteviam em regime tão complexo e estruturado.
Eliminar uma personalidade deste calibre com base em
argumentos de acontecimentos futuros ainda não demonstrados constitui um ato de
guerra declarada e a declaração de Trump de que quiseram terminar e não iniciar
uma guerra parece idiota. De uma assentada, finaram-se as esperanças de uma
transição iraniana mais rápida em linha com alguns segmentos da sociedade mais
urbana e aumentaram exponencialmente as condições para um agravamento da
situação política naquelas paragens, sabe-se lá com que proporções e obrigando
inapelavelmente os americanos a regressar à região com uma magnitude de efetivos
que não desejariam associar ao processo.
E já que estamos a invocar putativos acontecimentos
futuros, é tão estimável invocar a argumentação americana como presumir que a
política interna americana, com impeachment à mistura e eleições à porta, pesou
na decisão de Trump. Afinal, sabe-se que todo o repentista desatinado não
consegue realizar análises custo-benefício para além do alcance do seu nariz,
ou seja no plano imediato. Pela sua própria natureza, Trump é incapaz de pesar
na balança da decisão toda a violência que a decisão de eliminar Suleimani
tenderá a provocar. E por isso digo que aqui está, depois de algumas ameaças, a
primeira decisão de Trump que demonstra os perigos da sua imprevisibilidade.
É claro que não podemos ignorar os antecedentes da
decisão anteriormente assumida de incluir na lista do terrorismo internacional
os Guardas da Revolução Iraniana, o que para efeito das condições em que a decisão
é tomada não é indiferente. Mas de qualquer modo uma decisão desta natureza
deveria ter sido tomada num outro contexto de ponderações que a personalidade
de Trump é incapaz de assumir. E esse é que é o verdadeiro risco.
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