(Os tempos não correm de feição para a concretização de um
modelo de desenvolvimento mais descentralizado em Portugal e há razões
objetivas para este meu pessimismo, apesar de alguns discursos que pairam por
aí vindos das bandas do Governo. Dedico alguns minutos
de intervalo na modorra estival para o justificar).
Escusado será dizer que sou um convicto defensor de um modelo de
desenvolvimento mais descentralizado para o país, não me interessando por aí
além a fórmula para que o território (os territórios em concreto) possa(m) ter
uma participação ascendente no desenho e implementação dos destinos do país.
Sou mesmo dos que entendo que a descentralização é uma dimensão intrínseca do
desenvolvimento, tal como a democracia, e tenho alguma nostalgia pelos tempos
dos três DDD (democracia, desenvolvimento e descentralização) que levaram
alguns de nós a apoiar as ideias de Maria de Lurdes Pintassilgo.
Tenho também a convicção de que a descentralização (e também a famigerada regionalização)
devem ser entendidos como processos e não como decisões “decretadas”. Mas isso
não significa que esses processos para serem iniciados necessitam quase sempre
de roturas políticas que não podem deixar de assumir a forma de saltos
legislativos, iniciando por essa via uma dinâmica constitutiva. Isso é tanto
mais verdade quanto mais a história portuguesa é de centralismo instalado,
segundo um modelo de Estado central e hierarquizado e eixos setoriais (quase
sempre ministeriais) de intervenção versus municípios cuja influência no padrão
de distribuição espacial da despesa pública é superior à vergonhosamente baixa
percentagem de despesa pública realizada através desses municípios. Este modelo
representa uma fórmula hábil para o centralismo se eternizar, reproduzindo-se,
paradoxalmente, quer no comportamento mais passivo de alguns autarcas, quer no
voluntarismo mais afoito que por si sós disputam uma parcela mais volumosa de
recursos públicos centrais.
Seguindo à risca o princípio conhecido desde há muito de “regionalização
não, descentralização, sim”, o discurso governamental fez-se à estrada da
descentralização, prometendo mundos e fundos mas que o raio de uma folha EXCEL
impreparadamente distribuída aos municípios acabou por suscitar muitas e
variadas perturbações na putativa engrenagem da descentralização.
Ora, os tempos não vão de feição para corrigir esses irritantes. Direi
mesmo que os tempos não vão de feição para a descentralização, antes pelo
contrário e não me admiro que o Governo apareça a defender o seu contrário,
invertendo o sentido da argumentação.
Que razões para o meu pessimismo?
São duas essencialmente essas razões e são de peso, atrevo-me a dizê-lo.
A primeira situa a pandemia no centro da argumentação. O caráter de exceção
da estratégia de combate à pandemia favorece claramente o centralismo do poder
de decisão. A gravidade e extensão dos desafios não se compadecem com experimentações
e com os custos de transação e de descoordenação derivados da multiplicação não
planeada de centros de decisão. Isto não significa que as decisões centrais não
possam ser erradas ou incompetentes. Mas há uma tendência para o reconhecimento
de que neste tipo de situações não podem inventar-se vozes de comando, a clareza
de propósitos é necessária bem como a firmeza de decisões. É uma tendência de
peso, diria quase generalizadamente aceite. Não é por acaso que a palavra guerra
é tão generalizadamente utilizada e não apenas por decisores políticos.
A segunda razão prende-se com a dimensão gigantesca dos fundos de
regeneração económica que estão em cima da mesa para combater a brutal recessão
imposta pela abordagem à pandemia. Essa massa de fundos que merece a muitos a
expressão “a última oportunidade” (quantas vezes ouvi eu já esta expressão ao
longo da história democrática?) combina-se no nosso caso com a encenação mais
ou menos teatral do plano de recuperação Costa Silva. Em meu entender, este é o
casamento perfeito para a génese centralizada da programação e até já posso
adiantar os descritores mais destacados da argumentação: necessidade de escala
(fichas de projeto/clusters de projetos no mínimo de 100 milhões de euros?);
instituições e operadores de projetos com capacidade de investimento e de
execução; projetos estruturantes; atomização = ineficiência e dificuldades de
absorção de fundos, etc, etc. Para além disso, como a recessão pandémica bateu
forte em praticamente todo o território, incluindo os territórios mais
desenvolvidos, então é necessário que a regeneração envolva todo o território. Tudo
isto ignifica critérios de distribuição espacial que favorecem obviamente a
regeneração centralizada.
A segunda razão é mais desmontável do que a primeira. Eu próprio não gostei
muito de alguns protagonismos autárquicos que anteviram no surto pandémico a
possibilidade de ressuscitar as suas tendências pombalinas adormecidas. A
segunda tem força mas tem flanco suficiente para a crítica e desmontagem, até
porque não é nova, apesar da magnitude de fundos não ter confronto histórico
passado.
Mas por esta aragem reitero que os tempos não estão de feição para a
descentralização e assim o centralismo vai cavando fundo, ou seja,
reproduzindo-se diante das nossas convicções.
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