sábado, 8 de agosto de 2020

DESCENTRALIZAR? SERÁ MESMO ASSIM?




(Os tempos não correm de feição para a concretização de um modelo de desenvolvimento mais descentralizado em Portugal e há razões objetivas para este meu pessimismo, apesar de alguns discursos que pairam por aí vindos das bandas do Governo. Dedico alguns minutos de intervalo na modorra estival para o justificar).

Escusado será dizer que sou um convicto defensor de um modelo de desenvolvimento mais descentralizado para o país, não me interessando por aí além a fórmula para que o território (os territórios em concreto) possa(m) ter uma participação ascendente no desenho e implementação dos destinos do país. Sou mesmo dos que entendo que a descentralização é uma dimensão intrínseca do desenvolvimento, tal como a democracia, e tenho alguma nostalgia pelos tempos dos três DDD (democracia, desenvolvimento e descentralização) que levaram alguns de nós a apoiar as ideias de Maria de Lurdes Pintassilgo.

Tenho também a convicção de que a descentralização (e também a famigerada regionalização) devem ser entendidos como processos e não como decisões “decretadas”. Mas isso não significa que esses processos para serem iniciados necessitam quase sempre de roturas políticas que não podem deixar de assumir a forma de saltos legislativos, iniciando por essa via uma dinâmica constitutiva. Isso é tanto mais verdade quanto mais a história portuguesa é de centralismo instalado, segundo um modelo de Estado central e hierarquizado e eixos setoriais (quase sempre ministeriais) de intervenção versus municípios cuja influência no padrão de distribuição espacial da despesa pública é superior à vergonhosamente baixa percentagem de despesa pública realizada através desses municípios. Este modelo representa uma fórmula hábil para o centralismo se eternizar, reproduzindo-se, paradoxalmente, quer no comportamento mais passivo de alguns autarcas, quer no voluntarismo mais afoito que por si sós disputam uma parcela mais volumosa de recursos públicos centrais.

Seguindo à risca o princípio conhecido desde há muito de “regionalização não, descentralização, sim”, o discurso governamental fez-se à estrada da descentralização, prometendo mundos e fundos mas que o raio de uma folha EXCEL impreparadamente distribuída aos municípios acabou por suscitar muitas e variadas perturbações na putativa engrenagem da descentralização.

Ora, os tempos não vão de feição para corrigir esses irritantes. Direi mesmo que os tempos não vão de feição para a descentralização, antes pelo contrário e não me admiro que o Governo apareça a defender o seu contrário, invertendo o sentido da argumentação.

Que razões para o meu pessimismo?

São duas essencialmente essas razões e são de peso, atrevo-me a dizê-lo.

A primeira situa a pandemia no centro da argumentação. O caráter de exceção da estratégia de combate à pandemia favorece claramente o centralismo do poder de decisão. A gravidade e extensão dos desafios não se compadecem com experimentações e com os custos de transação e de descoordenação derivados da multiplicação não planeada de centros de decisão. Isto não significa que as decisões centrais não possam ser erradas ou incompetentes. Mas há uma tendência para o reconhecimento de que neste tipo de situações não podem inventar-se vozes de comando, a clareza de propósitos é necessária bem como a firmeza de decisões. É uma tendência de peso, diria quase generalizadamente aceite. Não é por acaso que a palavra guerra é tão generalizadamente utilizada e não apenas por decisores políticos.

A segunda razão prende-se com a dimensão gigantesca dos fundos de regeneração económica que estão em cima da mesa para combater a brutal recessão imposta pela abordagem à pandemia. Essa massa de fundos que merece a muitos a expressão “a última oportunidade” (quantas vezes ouvi eu já esta expressão ao longo da história democrática?) combina-se no nosso caso com a encenação mais ou menos teatral do plano de recuperação Costa Silva. Em meu entender, este é o casamento perfeito para a génese centralizada da programação e até já posso adiantar os descritores mais destacados da argumentação: necessidade de escala (fichas de projeto/clusters de projetos no mínimo de 100 milhões de euros?); instituições e operadores de projetos com capacidade de investimento e de execução; projetos estruturantes; atomização = ineficiência e dificuldades de absorção de fundos, etc, etc. Para além disso, como a recessão pandémica bateu forte em praticamente todo o território, incluindo os territórios mais desenvolvidos, então é necessário que a regeneração envolva todo o território. Tudo isto ignifica critérios de distribuição espacial que favorecem obviamente a regeneração centralizada.

A segunda razão é mais desmontável do que a primeira. Eu próprio não gostei muito de alguns protagonismos autárquicos que anteviram no surto pandémico a possibilidade de ressuscitar as suas tendências pombalinas adormecidas. A segunda tem força mas tem flanco suficiente para a crítica e desmontagem, até porque não é nova, apesar da magnitude de fundos não ter confronto histórico passado.

Mas por esta aragem reitero que os tempos não estão de feição para a descentralização e assim o centralismo vai cavando fundo, ou seja, reproduzindo-se diante das nossas convicções.

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