(Jornal Expresso, 23 de agosto de 2020)
(Tenho para mim que as consequências económicas e sociais da pandemia vão ser tão severas que se abrirá um novo caminho para a economia e para a política económica que poderemos designar de economia pandémica. Nunca a interdependência entre economia e saúde foi tão estudada e creio que bem para além das implicações já assumidas por muitos de nós segundo as quais as condições de saúde constituem um elemento crucial da economia que não se esgota no PIB).
Estamos, genericamente na economia mundial e também irreversivelmente em Portugal, a entrar numa segunda fase de geração de efeitos económicos gerados pela pandemia. Até aqui, os impactos no PIB são fundamentalmente determinados pelos efeitos do “lockdown” a que o confinamento obrigou, prolongados pelas desiguais condições de reabertura das economias, algumas das quais já em processo de regresso a formas mais ou menos assumidas de confinamento. Mesmo que tenha sido possível manter alguns tipos de atividade em funcionamento e a distribuição logística tenha experimentado um impulso de iniciativa e organização, os efeitos do fechamento teriam que se manifestar. Há dias, o Expresso publicou um gráfico em que nas vinte economias mais importantes como destino das exportações portuguesas era visível a contração da atividade, na escala dos dois dígitos. As economias não aderiram sincronicamente ao confinamento, mas a sincronia dos efeitos de retração económica é visível. Por isso, apesar da pandemia evoluir globalmente a taxas muito diferenciadas, temos uma crise sincrónica da economia mundial. Por outras palavras, não há nenhuma economia que possa assumir para já o papel de motor da recuperação mundial.
(Jornal Expresso)
Ora, em meu entender, estamos já numa segunda fase de efeitos de perda económica. As atividades contraíram-se total ou parcialmente, nos casos mais afortunados com políticas generosas de apoio a processos de lay-off e outras formas de apoio às empresas e aos trabalhadores, mas é tempo da incerteza dos horizontes futuros se projetar na reconfiguração de planos de investimento e de dimensões de pessoal ao serviço. Ou seja, à medida que a configuração mais provável do futuro vai sendo conhecida, as empresas ajustam-se temporalmente às novas condições de procura, e não apenas nos casos mais evidentes de empresas do setor de transporte aéreo ou de turismo. Os malefícios da concentração económica, lucros e rendimento são agora mais conhecidos. Os gigantes tecnológicos animam as bolsas numa situação típica de exuberância irracional, mas tal dinâmica não tem os efeitos propulsores do PIB que se desejariam. E o que parece hoje cada vez mais evidente é que não haverá recuperação económica global sem que o vírus seja debelado. Como intuí desde o início, equacionar combinações alternativas de abertura (fechamento) de atividade e de aumento (diminuição) da dinâmica de contágio é um exercício puramente académico. A dança sinistra do abre e fecha corredores aéreos para fluxos turísticos é um simples exemplo de algo mais largo. As reaberturas pontuais de atividade destinam-se apenas a manter um nível mínimo de atividade, não constituindo uma via de recuperação económica robusta e sustentada. Essa virá do debelar do vírus e mesmo assim teremos que entrar em linha de conta com os efeitos de histerésis provocados pela pandemia (atividade que fecha e que não voltará a abrir, trabalhadores que abandonam o mercado de trabalho e a que a ele não regressarão mais, com queda óbvia e inevitável do produto potencial das economias.
Os economistas Janet Yellen (ex-governadora do FED-USA) e Jared Bernstein assinam no New York Times de 27 de agosto um artigo corajoso (link aqui), denunciando a tragédia do impasse do senado americano para desbloquear um novo pacote de ajudas à economia e aos cidadãos mais atingidos pela pandemia enquanto que a fome evolui avassaladoramente na sociedade americana (cerca de 30 milhões de americanos declararam recentemente que em suas casas não existe alimentação suficiente, 12% dos americanos, subindo essa percentagem para 16% na população negra e latina). A combinação necessária de política monetária (ação do FED-USA) e da política fiscal (decisão do governo federal) está coxa pois o Senado está refém da polarização política que o estilo de governação de Trump e o apagamento cúmplice e oportunista do partido Republicano provocaram. A ação do FED foi pronta e decisiva mas não chega, faltando a dimensão da política fiscal. Algo que esteve também eminente pelas bandas da União Europeia mas que aparentemente está a caminho de não se confirmar.
Cá pelo burgo, com a economia mundial em recessão sincrónica, a procura externa não pode por si só assumir todo o papel motor da economia portuguesa, por mais importante e decisivo que seja o não baixar a guarda em favor dos transacionáveis. Por ironia do destino, a reconstituição da geringonça pelo menos para 2021 e 2022 tem nesta situação uma oportunidade única de prolongamento. Seria trágico e incompreensível que o taticismo político dos três intervenientes matasse essa possibilidade. E estou, para bom entendedor, a incluir nesse taticismo o ultimatum faz de conta com que António Costa pretendeu pressionar o PCP e o Bloco de Esquerda.
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