(Anne Applebaum é uma das grandes jornalistas do nosso tempo, disso não tenho dúvidas. Conhecia-a de alguns artigos na imprensa americana, em jornais e revistas e sobretudo pelas suas obras de denúncia das derivas soviéticas. A obra que li estas férias num ápice versa sobre uma preocupação que transcende a da pandemia, as dificuldades da democracia e a emergência do autoritarismo).
O título é ele próprio um mundo: TWILIGHT OF DEMOCRACY – THE SEDUCTIVE LURE OF AUTHORITARIANISM (Crepúsculo da Democracia – a Atração Sedutora do Autoritarismo).
O registo da obra de Applebaum começa numa festa de início do milénio (31 de dezembro de 1999) algures numa casa recuperada no noroeste da Polónia, casa que pertencia à família de Radek Sikorski, marido da jornalista, então a desempenhar funções políticas no governo de centro-direita que governava a Polónia e posteriormente deputado europeu por esse mesmo partido.
O caráter simbólico daquela festa é duplo: a natureza esperançosa da data e o facto de nela reunir um conjunto de amigos e pessoas próximas do casal que posteriormente haveria de fraturar completamente devido à evolução política na Polónia e à pérfida emergência do partido Lei e Justiça presentemente no poder.
A tese de Applebaum é ela própria sedutora. Ela analisa as condições que tornaram possível o advento dos governos iliberais e autoritários na Polónia e na Hungria, como sinais de uma tendência mais geral para a qual as instituições e os regimes democráticos não encontraram ainda o antídoto adequado. Ela pretende mostrar que o advento desses movimentos não é possível sem a emergência de condições facilitadoras e sobretudo de um conjunto amplo e diversificado de personalidades que exercem o seu papel com uma eficácia tremenda. Recorrendo a uma expressão cunhada pelo intelectual e ensaísta francês Julian Benda, Applebaum designa esses personagens da permissividade de “escriturários” (clerc ou clerk). Ao contrário do que regra geral é frequentemente invocado para justificar alguns apoios sociais de Trump, os “escriturários” não são deserdados da globalização, vítimas do progresso tecnológico ou da desindustrialização precoce ou representantes de uma classe média fustigada pelas crises económicas:
“As pessoas que descrevo integram quer ideólogos nativos, quer ensaístas políticos de grande nível; alguns deles são autores de livros sofisticados, outros são responsáveis por teorias da conspiração virais. Alguns são genuinamente motivados pelos mesmos medos, a mesma raiva e o mesmo desejo por unidade que motiva os seus leitores e seguidores. Alguns foram radicalizados por encontros furiosos com a esquerda cultural, ou pela repulsa da fraqueza do centro liberal. Alguns são cínicos e instrumentais, adotando uma linguagem radical ou autoritária pela simples razão de que lhes traz poder ou fama. Alguns são apocalípticos, convencidos de que as suas sociedades falharem e têm de ser reconstruídas, qualquer que seja o resultado. Alguns são profundamente religiosos. Alguns apreciam o caos ou pretendem lançar o caos, como prelúdio para impor uma nova ordem. Todos pretendem redefinir as suas nações, reescrever os contratos sociais e, por vezes, alterar as regras da democracia de modo a não perderem mais o poder. Alexander Hamilton avisou-nos sobre a sua existência, Cícero lutou contra eles. Alguns deles foram meus amigos.”
Esta descrição dos facilitadores do autoritarismo e críticos profundos das características mais profundas das sociedades democráticas, a concorrência, a meritocracia, a tolerância é um verdadeiro manual de sociologia e de ciência política, escrita por uma jornalista com mundo e com origem no centro direita.
A sua análise da ascensão do Lei e Justiça na Polónia, de Victor Orbán na Hungria, a chegada ao poder de Boros Johnson e outros exemplos é um murro estômago para quem está de férias e que não deixou de pensar.
Rui Rio devia ler este livro. Alguma boa alma poderá fazer-lhe chegar um exemplar?
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