(Dos registos de leitura que me ficaram do TWILIGHT OF DEMOCRACY de Anne Applebaum talvez o mais forte tenha sido a identificação pela jornalista dos fatores que estão na origem das massas que têm validado democraticamente os diferentes modelos de autoritarismo iliberal que grassa por aí. Entre eles, o horror à complexidade e à diversidade e o apelo sinistro a uma fala unidade é arrepiante e não me tem saído do pensamento, mesmo em férias.
No último post, destaquei a ideia de Anne Applebaum segundo a qual o advento dos autoritarismos do tipo Polónia e Hungria, extensivo às manifestações do levantar cabelo da extrema-direita na Europa e no mundo, é indissociável do crescimento dos rebanhos de “escriturários” que lhe dão suporte e guarida em eleições.
A análise de Applebaum não se reduz e ainda bem aos casos húngaro e polaco, que ela conhece bem e de viva experiência. A sua análise das condições que tornaram possível a ascensão da extrema-direita VOX em Espanha é de uma grande utilidade para compreendermos os mais recentes desenvolvimentos em Portugal em torno do Chega de Ventura e das derivas que a sua projeção está a provocar, a começar pela tontice de Rui Rio no PSD. Entre as evidências recolhidas por Applebaum em torno da “Grande e Una Espanha”, podemos registar a presença ativa da análise de dados e da Internet das coisas (parece ser uma regularidade a partir do indício Cambridge Analytics) (Alto Data Analytics é agora o nome de uma sociedade especializada implantada em Madrid) e de um personagem estratega da comunicação política, Rafael Bardaji, que andou em tempos com Aznar até à sua derrota eleitoral nas eleições realizadas sob o ruído do atentado terrorista em Madrid.
E o que respira do universo de ideias geradas pelos preliminares do VOX é algo que está muito além do surto nostálgico de recuperar a dimensão da Espanha (O Great Again é já um clássico destes processos). O que parece haver (e a fonte principal encontra-se nas tais análises das redes sociais) é a emergência de um horror à complexidade, ao ruído da argumentação nas democracias modernas e à diversidade de posições para dar origem à sedução da unidade (falsa, mas preparada). Como é óbvio, a destruição em alguns campos eleitorais da velha polarização entre centro-esquerda e centro-direita, com a emergência da fragmentação de pequenos partidos não menos aguerridos por isso e não menos representados também no discurso político mediático, veio agravar esta questão. O que é um paradoxo letal, pois as democracias tornaram-se bem mais complexas e expurgar essa complexidade cheira naturalmente a esturro. A questão religiosa intensifica o problema e basta ver por exemplo o mapa religioso do Líbano para se perceber que por detrás daquele estrondo trágico da explosão em Beirute está um outro material explosivo, a que não falta massa combustível.
E o que me parece de grande alcance analítico é a conclusão de Applebaum segundo a qual a imprensa e a comunicação mais tradicional não são hoje capazes de oferecer uma dimensão nacional e global a esse debate em torno da complexidade e da diversidade. Citando:
“A questão não é apenas a existência de histórias falsas, factos incorretos ou mesmo campanhas eleitorais ou de especialistas em assessoria de comunicação: os próprios algoritmos das redes sociais encorajam as falsas perceções do mundo. As pessoas clicam nas notícias que querem ouvir; Facebook, YouTube e Google mostram então o que quer que seja com o qual concordem, seja de uma série qualquer ou de um tipo qualquer de política. Os algoritmos também radicalizam os que os usam. Se clicarem numa política anti-imigração perfeitamente legítima os sítios YouTube, por exemplo, conduzi-los-ão em poucos cliques a sítios nacionalistas brancos e depois a sítios xenófobos violentos. Porque foram concebidos para vos manter ao corrente, os algoritmos também favorecem emoções, especialmente a fúria e o medo. E porque são adictivos, afetam as pessoas de maneira inesperada. A raiva torna-se um hábito. A divisão torna-se normal. Mesmo que as redes sociais não sejam ainda a principal fonte de notícias para todos os americanos, já ajuda a moldar a política e os jornalistas a interpretar o mundo retratando-o. A polarização mudou-se do mundo online para a realidade.”
O horror à complexidade e o modo abjeto como muita gente, incluindo a televisão, a oculta e deforma para gerar uma sensação de pertença e de unidade, primeiro passo para a existência de rebanhos obedientes e ferozes adversários das elites da complexidade, é uma das grandes ameaças das democracias modernas. A ciência tem aqui um papel vital, mas alguma dela ainda não compreendeu o problema, apesar da extrema dificuldade de comunicação que a complexidade encerra.
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