quinta-feira, 6 de agosto de 2020

JORGE SILVA MELO



(Com um Vítor Gonçalves algo mais intimidado do que o habitual, a Grande Entrevista de ontem à noite foi mais um memorável tempo de televisão distendida e sensível, muito pela magia do personagem Jorge Silva Melo). Uma certa Lisboa datada, a das elites criativas em extinção, passou por aquela entrevista e, para usar uma expressão do entrevistado, com o espectador “sugado” pela força daquela voz metálica incomparável).

A Grande Entrevista da RTP 3 é um programa único no contexto da televisão portuguesa. Coisas relevantes, personagens únicos, ambiente de sensibilidade, o prazer de ouvir a palavra dos outros e um jornalista que prepara bem o seu trabalho e que não precisa de agitar a crista para ser ouvido, seja pelo entrevistado, seja pelo público. Afinal é tão simples fazer televisão de serviço público, fugir ao grotesco, cultivar a sensibilidade, passar para a écran a verdade das pessoas.

Jorge Silva Melo é uma espécie em extinção do nosso espaço intelectual e não apenas devido ao facto, como ontem o assinalou com crueza, de fazer parte do universo das companhias de teatro independentes, criadas no tempo da rebeldia e em que as companhias nacionais produziam como agora de diz “spin-off’s” de direção teatral. Como ontem o assinalou com aquele espírito crítico indomável, rebeldia essa que está hoje internalizada nas companhias nacionais, para espanto de muitos e para desconfiança da minha parte. Seria o mesmo que, por estranho acaso, as organizações mais tradicionais e hierárquicas começarem de repente a acolher incubadoras de projetos criativos.

É um personagem datado de uma certa elite criativa lisboeta, é um facto, como o é também, por exemplo, Luís Miguel Cintra referenciado ontem na entrevista por ter saído de Portugal à procura de novos rumos e bases para a sua criatividade praticamente em simultâneo com JSM, embora para sítios diferentes. Com formação tradicional no colégio dos Maristas e depois rendido à qualidade de então do corpo de professores do Liceu Camões, diria uma República dentro da República, JSM mergulha em Londres e em Berlim nos ventos da mudança da criação teatral (sempre a velha influência exógena) e chega a Portugal com o dínamo suficiente para não só criar uma companhia independente mas para se tornar num dos grandes intelectuais de referência do país. Nunca emparedado por qualquer força política, o que lhe garantiu sempre uma sábia distância ao espectro de influências da política partidária em Portugal, a entrevista conseguiu trazer-nos novos aspetos de uma personalidade ímpar, sobretudo por se manter na linha de água convivendo e trabalhando com gerações mais novas de atores e atrizes e de criadores. A sua referência à alegria de José Medeiros Ferreira é tocante, assim como a sua alusão ao modo fluido como hoje é um diretor teatral que concede muito mais margem de manobra aos seus atores, conduzindo o seu espetáculo em função das sensibilidades dos atores às incidências da obra.

Retive a sua classificação das grandes atrizes de sempre em dois modelos – o da imposição pela força criativa e o da sedução pela qual somos “sugados” pela personagem, aderindo e misturando-nos com a trama e com a cena.

Pois ontem considero que fui sendo “sugado” pelo ambiente da entrevista. Televisão sensível, cativante, própria de uma noite de férias.

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