(Com um Vítor Gonçalves algo mais intimidado do que o
habitual, a Grande Entrevista de ontem à noite foi mais um memorável tempo de
televisão distendida e sensível, muito pela magia do personagem Jorge Silva Melo). Uma certa Lisboa datada, a das elites criativas em extinção, passou por aquela
entrevista e, para usar uma expressão do entrevistado, com o espectador “sugado”
pela força daquela voz metálica incomparável).
A Grande Entrevista da RTP 3 é um programa único no contexto da televisão
portuguesa. Coisas relevantes, personagens únicos, ambiente de sensibilidade, o
prazer de ouvir a palavra dos outros e um jornalista que prepara bem o seu trabalho
e que não precisa de agitar a crista para ser ouvido, seja pelo entrevistado,
seja pelo público. Afinal é tão simples fazer televisão de serviço público, fugir
ao grotesco, cultivar a sensibilidade, passar para a écran a verdade das
pessoas.
Jorge Silva Melo é uma espécie em extinção do nosso espaço intelectual e
não apenas devido ao facto, como ontem o assinalou com crueza, de fazer parte
do universo das companhias de teatro independentes, criadas no tempo da
rebeldia e em que as companhias nacionais produziam como agora de diz “spin-off’s”
de direção teatral. Como ontem o assinalou com aquele espírito crítico
indomável, rebeldia essa que está hoje internalizada nas companhias nacionais,
para espanto de muitos e para desconfiança da minha parte. Seria o mesmo que,
por estranho acaso, as organizações mais tradicionais e hierárquicas começarem
de repente a acolher incubadoras de projetos criativos.
É um personagem datado de uma certa elite criativa lisboeta, é um facto, como
o é também, por exemplo, Luís Miguel Cintra referenciado ontem na entrevista
por ter saído de Portugal à procura de novos rumos e bases para a sua
criatividade praticamente em simultâneo com JSM, embora para sítios diferentes.
Com formação tradicional no colégio dos Maristas e depois rendido à qualidade de
então do corpo de professores do Liceu Camões, diria uma República dentro da
República, JSM mergulha em Londres e em Berlim nos ventos da mudança da criação
teatral (sempre a velha influência exógena) e chega a Portugal com o dínamo
suficiente para não só criar uma companhia independente mas para se tornar num
dos grandes intelectuais de referência do país. Nunca emparedado por qualquer
força política, o que lhe garantiu sempre uma sábia distância ao espectro de
influências da política partidária em Portugal, a entrevista conseguiu
trazer-nos novos aspetos de uma personalidade ímpar, sobretudo por se manter na
linha de água convivendo e trabalhando com gerações mais novas de atores e
atrizes e de criadores. A sua referência à alegria de José Medeiros Ferreira é
tocante, assim como a sua alusão ao modo fluido como hoje é um diretor teatral
que concede muito mais margem de manobra aos seus atores, conduzindo o seu
espetáculo em função das sensibilidades dos atores às incidências da obra.
Retive a sua classificação das grandes atrizes de sempre em dois modelos –
o da imposição pela força criativa e o da sedução pela qual somos “sugados”
pela personagem, aderindo e misturando-nos com a trama e com a cena.
Pois ontem considero que fui sendo “sugado” pelo ambiente da entrevista.
Televisão sensível, cativante, própria de uma noite de férias.
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