sábado, 22 de agosto de 2020

A MENTIRA DE PODER

 

(Enquanto que os primeiros ecos da Convenção Democrata aprofundam o meu pessimismo sobre as eleições americanas, regresso ao SURVIVING DEMOCRACY de Masha Gessen, referido no meu último post. Nunca tinha lido nada de tão analítico e matizado sobre a utilização da mentira como as longas descrições que Gessen elabora sobre o modelo de mentira Trumpiana. É de estarrecer qualquer um.)

A longa análise que Gessen dedica ao uso da mentira como instrumento devastador de ação política pela multiplicidade dos efeitos penalizadores que provoca representa a meu ver uma das mais profundas perspetivas sobre o modelo de governação de Trump. Mentira que como é óbvio transpareceu da sua campanha, mas que se instalou no próprio dia da sua posse, quer sobre a magnitude do conjunto de pessoas que assistiu à cerimónia, quer, pasmem-se os mais circunspectos, sobre o próprio estado do tempo durante o discurso do novo Presidente. Todos os olhinhos viram que choveu na cerimónia e que nenhuma pinta de sol se dignou ajudar à festa. Pois Trump jurou amplamente que com a sua intervenção o sol tinha aparecido e está tudo dito.

Poderia dissertar aqui amplamente em torno da análise de Gessen sobre esta faceta da governação Trumpiana, mas parece-me mais eficaz citar uma passagem da obra que mais atraiu a minha atenção:

(…) Trump deu aos americanos a possibilidade de escolha entre duas realidades e eles escolheram a sua.

Vão acreditar nos vossos próprios olhos ou nas caixas das notícias? Este é dilema das pessoas que vivem em sociedades totalitárias. Acreditar nas próprias perceções é uma peça solitária; acreditar nos próprios olhos e verbalizar isso é perigoso. Acreditar na propaganda – ou antes aceitar a propaganda como uma das realidades – traz a promessa de uma existência menos ansiosa, em harmonia com a maioria dos restantes cidadãos. A via para a paz de espírito reside na cedência do próprio pensamento ao do regime. Bizarramente, a experiência de viver nos EUA durante a presidência de Trump reproduz este dilema. Ser um cidadão comprometido na América durante a presidência de Trump significa viver num estado constante de tensão cognitiva. Não se pode tirar o presidente e as suas mentiras do nosso pensamento, porque ele é o presidente. Aceitar que o presidente redige tweets e diz coisas que não são verdadeiras, são conhecidas não para serem verdadeiras, mas para serem ouvidas ou lidas como mentiras do poder, e elas continuarão a ser transmitidas – no Twitter e nos media – depois de terem repetidamente contrariadas significa aceitar um desafio constante à realidade baseada nos factos. Com efeito, isso significa que as duas realidades – a Trumpiana e a baseada nos factos – acabam por existir lado a lado, em condições de paridade. A tensão seca. A necessidade de prestar atenção às mentiras é cansativo e é composta pelo sentimento de desamparo face às mentiras ridículas e repetidas. A maioria dos Americanos na época de Trump não estão sujeitos, como os cidadãos dos regimes totalitários, a um estado de terror. Mas mesmo antes do coronavírus, estavam sujeitos a uma constante e por vezes debilitante ansiedade. Uma via para se libertar dessa ansiedade é aliviar o pensamento aceitando a realidade Trumpiana. Uma outra – e essa é também uma opção assumida pelas pessoas sujeitas ao totalitarismo, é não prestar atenção, descomprometer-se e regressar à sua esfera privada. Ambas as abordagens representam vitórias para Trump no seu ataque à política.”

A isto chama-se mentira confundida com o poder. Por ser presidente posso dizer o que me apetecer. Os fact-checks contrariam o que é dito, inapelavelmente. Isso não importa. A mentira é reproduzida quantas as vezes que se revelarem necessárias. Alinhar com essas mentiras ou desligar é tudo o que o Trump deseja. Ambas servem os seus objetivos.

 

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