(O tema do autoritarismo emergente tem, desde o advento dos populismos, atraído a minha atenção de leitor e das minhas incursões pela análise política. Tinha reservado para estas férias longas de agosto uma trilogia de obras das quais recomendo uma leitura conexionada. A primeira já foi aqui objeto de atenção, THE TWILIGHT OF DEMOCRACY de Anne Applebaum (Penguin Random House). A segunda está quase digerida, algo facilitado por estes dias de agosto invernoso (é o Norte carago!), SURVIVING AUTOCRACY de Masha Gessen (Penguin Random House). A terceira aguarda pacientemente, THE MONARCHY OF FEAR de Martha Nussbaum (Oxford University Press).
O livro de Masha Gessen é um poderoso libelo contra o autoritarismo da mentira da governação Trump nos EUA, aprofundando a um nível espantoso de evidência as incursões de Applebaum pela tentação autoritária em curso na sociedade americana. O meu conhecimento de Masha Gessen vem da minha assinatura da New Yorker e de alguns artigos desse jornalista sobre o totalitarismo soviético e sobretudo do modelo de personalidade e de poder que o consulado de Putin representa. Equivale, assim, a uma perspetiva de grande alcance, um conhecimento fortemente documentado do autoritarismo soviético para o capitalizar na análise de quatro anos de trágica governação de Trump.Interessou-me sobretudo o ponto de partida da abordagem. Sabemos que a vitória de Trump deixou muita gente abalada, pelo seu caráter inesperado, pela força oculta de um eleitorado desconhecido nos seus comportamentos mais profundos de rejeição das elites, pelas ameaças que transportava consigo. Uma das reações pós-eleitorais mais significativas foi a simbolizada pela intervenção de Barack Obama e que se pode resumir na máxima de que o “sol não deixou de nascer” mesmo depois da vitória de Trump. Por detrás do otimismo de Obama (do qual certamente o ex-presidente americano estará hoje profundamente arrependido de o ter expressado publicamente) está uma perspetiva que identifiquei em muitos comentários e apreciações que li e ouvi nos EUA e também por cá no rescaldo de tão penalizadora derrota, só possível aliás pelas características do modelo eleitoral americano que permite a vitória de um Presidente com uma votação inferior ao seu adversário. Tal opinião resume-se a uma convicção esperançosa na qualidade das instituições democráticas americanas. Por mais esdrúxulo e obtuso que seja um candidato ganhador, os fundadores da nação americana terão criado um sistema resistente a todas as derivas. As instituições vencerão e os maus da fita serão limitados.
Todos gostaríamos que essa avaliação fosse válida e credível. Mas a argumentação de Masha Gessen é demolidora, a dois níveis. Por um lado, evidenciando que a história americana está pejada de situações de excecionalidade e de suspensão na prática de alguns direitos democráticos elementares. Ou seja, a democracia americana não é assim tão perfeita e por isso a excessiva confiança depositada na qualidade das suas instituições talvez seja exagerada. Por outro lado, a obra traz-nos uma análise pormenorizada dos sucessivos passos concebidos e implementados pela governação de Trump até à declarada inépcia da sua reação face à pandemia. Passos que se iniciaram com a despudorada composição do seu governo, que se prolongaram com o desmantelamento das estruturas técnicas e políticas de suporte à governação e com a descabelada erradicação do conhecimento na preparação das decisões políticas. E sobretudo com a utilização persistente e organizada da mentira como arma de governação. O Partido Republicano parece rendido ao estilo e à insistente vontade dos seus representantes se acolherem sob o manto das benesses da proximidade a Trump, é o vale tudo a destruir anos e anos de pensamento republicano.
Depois da leitura do SURVIVING AUTOCRACY é difícil permanecer otimista quanto ao resultado das eleições americanas e quando à força mobilizadora da dupla Bidem-Kamala. Talvez tenham achado excessivo o apelo de Michelle Obama quanto á necessidade de votar como se as vidas dos americanos estivessem em jogo. Não sei se Michelle Obma aterá ou não lido o recentíssimo livro de Gessen. Eu, pela minha parte, depois de o ler, não tenho dúvidas de que o apelo de Michelle não foi excessivo. O problema é que uma grande parte dos americanos continua a ignorar a importância do que está em jogo.
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