sábado, 26 de dezembro de 2020

ECONOMIA DO CONSUMO NATALÍCIO

(Só a qualidade e sábia heterodoxia do Timothy Taylor, editor do incontornável Journal of Economic Perspectives, no seu Conversable Economist, me fariam nesta época natalícia rever Adam Smith. Mas, numa aberta entre algumas pontas de trabalho que tenho para fechar antes do fim de ano, a leitura do capítulo III do Livro II da Riqueza das Nações é sempre retribuidora, revelando a sua natureza de leitura obrigatória para qualquer formação de base no ABC da economia ....)

O CONVERSABLE ECONOMIST (link aqui) de Timothy Taylor é um dos meus blogues económicos de eleição. O blogue faz jus à personalidade do editor do Journal of Economic Perspectives, aberto, sensível e tolerante e profundamente heterodoxo no modo como liga a ciência económica aos problemas reais das sociedades concretas e contemporâneas.

O post datado de 24 de dezembro (link aqui) versa naturalmente sobre o tema Natal e, fiel ao uso coerente da ciência económica, escolhe para especificação desse tema a relação entre os presentes de Natal e a escolha entre bens duradouros e outras ofertas mais efémeras como proporcionar ou presenciar um espetáculo a alguém ou uma refeição de eleição ou seja bens de consumo imediato, isto é, que se esgotam irremediavelmente no ato de consumo.

A curiosidade da escolha do editor do Conversable Economist está sobretudo no pretexto para meditar sobre a obra de Adam Smith.

Tinha material na estante, além do que o próprio Tim Taylor cita no post, para rever na língua original de Adam Smith a referida meditação. Porém, recordando-me da notável tradução que Teodora Cardoso (com a colaboração de Luís Cristovão Aguiar) realizou dos dois tomos da Riqueza das Nações para a Fundação Calouste Gubenkian (agora com acesso livre on line), decidi-me pela versão em português (excelente, repito).

O tema da diferença entre o valor e impacto económico das despesas de consumo em bens duradouros ou em bens de consumo imediato é abordado por Smith no capítulo III do livro II dedicado à acumulação de capital e à diferença entre trabalho produtivo e improdutivo. Smith distingue entre o trabalho realizado por um operário (produtivo) e o trabalho concretizado por um criado (improdutivo), ambos merecedores de remuneração que é paga a partir do valor global do produto. Enquanto que o trabalho do operário acrescenta à matéria-prima com que trabalha o valor da sua própria manutenção e o do lucro do patrão, o do criado não acrescenta qualquer valor. Visto do lado do patrão, este recupera o valor do adiantamento salarial feito ao trabalhador enquanto que a manutenção do criado não é recuperável. Smith acrescenta a esta diferença o facto do produto do trabalho do operário, materializado no preço do produto, poder futuramente colocar em movimento uma quantidade de trabalho igual à que lhe deu origem, ao passo que os serviços do criado desaparecem com o serviço prestado, não permitindo futuramente gerar uma quantidade igual de trabalho desse serviço. Em grande medida, a subsistência dos trabalhadores improdutivos tem origem na renda da terra e nos lucros do capital, já que a parcela disponível do salário dos trabalhadores produtivos (operários) é excessivamente pequena para proporcionar esses “luxos”.

Adam Smith usa habilmente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo para situar a relação entre capital e rendimento, sendo essa proporção que determina a relação entre atividade (associada ao investimento e ao trabalho produtivo) e a ociosidade (associada ao trabalho improdutivo e ao rendimento não transformado em capital). Adicionalmente, Smith parte desta distinção para dissertar sobre o valor da parcimónia (frugalidade) na acumulação de capital em oposição à prodigalidade. No meio do raciocínio, Smith tem tempo e oportunidade para incluir uma referência a Portugal: “Londres, Lisboa e Copenhaga são, talvez, as três únicas cidades da Europa que são simultaneamente residência da corte e centros comerciais, ou seja, cidades cujo comércio não se destina apenas ao seu próprio consumo, mas também ao de outras cidades e países”.

Depois de uma longa digressão pela formação do capital público e do valor comparativo da frugalidade e da prodigalidade, Smith desenvolve uma ideia complementar, que se refere à influência que a composição da despesa de consumo exerce sobre o aumento da riqueza pública. Aí surge a distinção entre a despesa entre bens de consumo imediato e a despesa em bens de consumo duradouros. A posição de Smith é clara e a favor dos bens duradouros e da sua capacidade de existência por longos períodos de tempo. Curiosamente, um dos argumentos para essa defesa é a da transmissibilidade inter-temporal de famílias de mais posses para famílias de classe média e inferiores, dada a baixa de preço que sofrem ao longo do tempo e dessas transmissões, hoje em alguns casos com valor zero, como desafortunadamente alguns herdeiros o testemunham quando pretendem vender em mercado os produtos de algumas heranças. Curiosamente também, Smith defende os bens duradouros pelas implicações de frugalidade que proporcionam. Ao tempo, a sanção social para os que são obrigados a rever em baixa padrões de consumo é menor para gente bem-dotada de bens duráveis. E, em terceiro lugar, a manutenção de bens duradouros gera um maior impacto económico do que idêntica quantidade de despesa em bens de consumo imediato, pelo maior efeito que provoca em termos de geração de trabalho produtivo.

Obviamente os tempos de Smith não são os tempos de hoje da obsolescência rápida dos próprios bens de consumo duradouros, induzida pela rapidez do progresso tecnológico e pelo efeito que ele gera na competitividade interempresarial.

Mas curiosa é a transposição que Tim Taylor faz das observações de Smith para a quadra natalícia. Podemos de facto optar por presentes de consumo duradouro ou por presentes de consumo imediato, ambos podem ser retribuidores do afeto que pretendemos transmitir.

Mas nos tempos que correm …

Nestas férias natalícias, quero o mais possível gozar dos prazeres de curto-prazo das decorações, dos nossos bolos e bolachas caseiros confecionados todos os anos, das reuniões de famílias para uma maratona de séries já predeterminadas e outras. Mas depois de uma estadia de um ano em casa, sinto que os meus pensamentos sobre presentes se viram muitas vezes para assumir compromissos sobre planos ou viagens futuros: ou seja, consumo de curto prazo (imediato), mas diferido para um futuro com menos constrangimentos”.

Ora, eis uma matéria que Adam Smith não poderia imaginar: os efeitos de uma pandemia sobre os modelos de consumo e sobre os trade-offs sobre consumir hoje ou amanhã.

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