quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

CITANDO LENINE

 

                                                (Salvador Dali - A Persistência da Memória)

(“Há décadas em que nada acontece, ao passo que existem semanas em que as décadas acontecem” é uma máxima que o imaginário da internet atribui a Lenine. Embora não tenha conseguido apurar com rigor a fonte na vastíssima obra do revolucionário russo em que se baseia o referido imaginário, acho que ela representa bem o que este estranho ano de 2020 nos trouxe, se por semanas entendermos os nove -dez meses do nosso descontentamento.)

Confesso que fiz algumas pesquisas mas que só me confirmaram que o imaginário da internet cita esta expressão, mas não identifica regularmente a fonte. E como, fruto da passagem do tempo, as Obras de Lenine estão numa estante em Seixas, não tive oportunidade para verificar se o imaginário webiano está ou não correto, ou se é como aquelas coisas que tanto são afirmadas que se substituem à realidade.

Mas o que me atrai na fórmula é a sua capacidade de traduzir a fonte de aceleração de processos que vivemos em 2020, muito provavelmente prolongada para 2021, enquanto o processo de vacinação, que evoluirá diferenciadamente por todo o mundo (até agora Israel tem apresentado uma evolução espantosa de intensidade), se misturar com a incidência da disseminação viral e progressivamente se impor.

Como economista especialmente interessado na dimensão longa do tempo em economia e nas mudanças estruturais que só nesse tempo longo têm maturação suficiente, visibilidade e interpretação possível, estamos de novo confrontados com a mesma regularidade histórica de outras grandes mudanças. Essa regularidade diz respeito à diferente perceção das mudanças quando essa perceção se constrói após a manifestação do tempo longo e quando ela é vivida no tempo das coisas acontecerem. Quando as mudanças e a aceleração das mesmas são percecionadas após o tempo da sua maturação estar avançado a sua interpretação é mais inequívoca. Porém, quando as percecionamos no momento em que ocorrem e que não sabemos ainda se vão gerar mudanças definitivas a indeterminação é grande.

É isso que está a acontecer no tempo presente. Todos os dias nos jornais de componente mais reflexiva e mais abertos à investigação somos bombardeados com antecipações do chamado novo normal, visões mais ou menos apocalípticas das mudanças que se vão impor à inércia, prospetivas variadas de novas qualificações e competências que vão ser exigidas. A essas antecipações para gostos variados contrapõem-se os arautos das mudanças ilusórias, aqui e ali temperadas com algum negacionismo ou com formas variadas de resistência à mudança. Como sempre aconteceu na história do tempo longo e das maturações de largo alcance haverá alguns, apenas alguns, que irão distinguir-se na efetiva antecipação das reais oportunidades, alguns ganhando empresarialmente dinheiro-inovação, outros marcando um lugar na história do avanço do bem público. Outros irão ficar ao pé da oportunidade, rodearam-na, até a intuíram, mas não a agarraram.

Alguns temas foram particularmente comentados:

  • A viabilidade do tele-trabalho como elemento definitivo a ter em conta na relação casa-emprego e na mobilidade associada;
  • A aceleração da transformação digital;
  • A transformação dos modos de consumo e a consequente adaptação ou inovação nos modos de venda e entrega;
  • A transformação da logística da distribuição;
  • A organização do próprio habitat e a perceção da importância chave da habitação em termos sanitários.

Não é a altura certa para elaborar sobre estes domínios de prospetiva definitiva ou meramente ilusória, o tempo longo o dirá. Interessa-me mais neste momento realçar algumas dimensões da aceleração referida que, embora sem entrarem no domínio da prospetiva das grandes mudanças, vieram repor ideias e convicções que pareciam abaladas.

Muitos já disseram que 2020 nos devolveu a importância da ciência e do conhecimento. É algo de muito relevante. Não que a ciência nos tenha sido devolvida como um deux-ex-machina todo poderoso e sem conflitualidade. Vimos inclusivamente como as roupagens da ciência foram utilizadas para a glória efémera mediática de alguns, mas vimos também como a utilização equilibrada e sensata da evidência e da sua explicação científica se sobrepôs claramente e como, intuitivamente e sem cultura científica muito desenvolvida, o cidadão aprendeu a distinguir entre as duas utilizações da ciência. O que é notável, pois nunca como hoje foi necessária uma cultura de comunicação e divulgação da ciência. A complexidade dos problemas e a profunda divisão do trabalho científico, muito carenciado de plataformas de integração disciplinar, tornam cada vez mais difícil essa comunicação, exigindo a proliferação de muitos Carl Sagan, Richard Attemborough e outros com essa competência de transformar o complexo em ideias simples. Mas o que foi evidente é que a cooperação de recursos na investigação científica é crucial, seja sob a modalidade de “open science”, seja sob a forma de parcerias avançadas entre a investigação patenteada e realizada “in-house” em grandes grupos empresariais e outras formas de progressão do conhecimento.

Mas a dimensão mais relevante a assinalar é o reconhecimento de que a combinação pandemia-ciência constituiu um golpe devastador nas pretensões do populismo político. Recordo que, tal como o trouxe para este blogue, uma das dimensões mais reveladoras do populismo é o seu desprezo pelo conhecimento das chamadas elites, em que obviamente a ciência está representada (link aqui). Mais do que desprezo, o populismo mais assanhado e desbocado (inspirado ou protagonizado por Trump) tudo fez para desvalorizar aos olhos da população ululante o papel do conhecimento e dessas elites. Todos nos recordamos do modo como Trump tratou o epidemiologista americano Anthony Fauci, cuja paciência e resistência para aturar as tiradas trumpianas ficarão nos anais da ciência pelo que elas representaram de persistente defesa do valor e alcance do conhecimento científico. A combinação pandemia-ciência arrasou essa tendência. Não sabemos se representou um golpe mortal, só o tempo longo o irá revelar.

Mas a aceleração do tempo das mudanças que enfrentamos trouxe ainda uma outra realidade que poderíamos sintetizar na fórmula “a pandemia deu sinais de grandes oportunidades de mudança”, o que não significa que a lógica dos comportamentos das pessoas e das instituições as transformem em realidade. Estou a referir-me ao que os processos de confinamento trouxeram sobretudo no plano urbano à despoluição ou descarbonização. E aqui há que distinguir entre dois tipos de sinais – o errado e o que é promissor. O sinal errado é o perigo de se confundir despoluição ou descarbonização com crescimento zero. Esta ideia é recorrente no capitalismo. Já nos anos 60, quando o tema do esgotamento dos recursos naturais estava no centro do debate, as teses do crescimento zero tiveram alguma presença mediática e na literatura. O sinal promissor é a pandemia mostrar que se podem equacionar outras oportunidades de avanço de novas soluções que não impliquem esse crescimento zero, ou seja que não exijam cidades desertas e sem vida. A partir do momento em que talvez tardiamente (conflitualidade da ciência) se compreendeu que a qualidade do ar pesa na transmissão viral por aerossóis, a redução da poluição urbana transformou-se também ela numa via para controlo da disseminação. Um vulto notável da gestão e do planeamento estratégico, Henry Mintzberg, foi dos primeiros (link aqui), fora do mundo da epidemiologia e da infeciologia, a salientar este aspeto e a bater-se por essa ideia.

Nota final:

Mais de seis mil casos de contágios confirmados no dia de hoje. Pode ser ainda um efeito estatístico de feriados e de interrupção de comunicação e contagem? Pode ser. Mas a ciência também avisou que a distensão do Natal a isso poderia conduzir. Só nos próximos perceberemos a tendência.

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