domingo, 6 de dezembro de 2020

MANK OU A MEMÓRIA DE ROSEBUD

 

(E cá estou eu rendido às maravilhas da Netflix, enquanto vejo com alguma preocupação os números de infetados deste fim de semana de confinamento alargado a teimarem, apostados em não me oferecerem uma desaceleração sustentada. Mank de David Fincher é um filme notável, afinal uma outra maneira de ver o MEU FILME de todos os tempos, CITIZEN KANE de Orson Wells.

A palavra mágica que o magnata da imprensa Charles Foster Kane balbucia no momento da sua morte enquanto acaricia um daqueles brinquedos com um simulacro de flocos de neve no seu interior e que constitui a cena final do fabuloso CITIZEN KANE de Orson Wells é um dos mistérios interpretativos que tem acompanhado a resistência do filme a tantos anos de obras primas que lhe sucederam. Desde a prosaica interpretação de que Rosebud seria o nome com que Wiiliam Randolph Hearst, a figura que inspirou a de Kane, tratava a genitália da sua mulher, a artista comediante Marion Davies, até interpretações mais sofisticadas de que no momento da morte as memórias de criança nos surgem mais claras e transparentes (Peter Bradshaw no Guardian, link aqui), Rosebud é um desafio permanente à nossa imaginação interpretativa.

Mank é um projeto notável de reconstituição dos ambientes dos anos 40 em Hollywood, com flash-backs permanentes para os anos 30, anunciados pelo bater de uma máquina de escrever que desliza sobre a tela, no qual um jornalista- escritor-argumentista, Herman J. Mankiewicz (notavelmente representado por Gary Oldmann), no meio de uma crise simultaneamente criativa e moral procura em tempo recorde, com uma perna partida e tensões alcoólicas à solta, escrever o argumento de CITIZEN KANE, pressionado pelo próprio Wells e por um pau-mandado deste último.

As figuras diversas que se movimentam naqueles anos loucos de Hollywood logo a seguir à Grande Depressão de 1930 são tão loucas e “fora da caixa” como aqueles tempos o eram. O irmão de Herman Mankiewitz, Joseph J. Mankiewicz, que haveria de suplantar como realizador a fama do argumentista (Cleópatra, por exemplo), em Mank é uma espécie de personagem que convida permanentemente o irmão argumentista à razão. Os fundadores e então patrões da Metro Goldwin Mayer, Louis B. Mayer e Irving G. Thalberg, são os representantes do sistema e que apoiados na força simbólica do rugir do leão procuram assegurar que a eleição do Republicano Merriam se sobreponha ao impulso socialista que a candidatura do escritor Upton Sinclair suscitou nas eleições para o Estado da Califórnia em 1934. William Randolph Hearst (interpretado por um sempre notável Charles Dance, Guerra dos Tronos e The Crown), é um magnata de imprensa e do cinema que pode ser considerado a figura que inspirou a criação de Charles Foster Kane em CITIZEN KANE.

A figura do argumentista Herman J. Mankiewicz representa o típico liberal progressista e de coração social mole, permanentemente atormentado, incapaz de se submeter a qualquer orientação ou patrão, dotado de uma criatividade literária que Wells compreendeu para utilizar no seu revolucionário filme, sempre refém da sua tentação pelo jogo e pelas apostas e mordendo álcool à mínima oportunidade, carregado de dívidas. Percebe-se que o argumentista terá tido alguma influência indireta na inspiração de alguns filmes documentários que seriam hoje considerados “fake news” políticas para influenciar a derrota de Sinclair nas eleições de 1934. Percebe-se que é naqueles tempos que se cava o ódio e medo com a palavra socialismo que marca o comportamento eleitoral de muitos americanos ainda hoje.

Por mais paradoxal que possa parecer, num filme de tons cinzentos – banco e preto, cuja fotografia seguramente estará entre os nomeados para o Óscar nessa categoria, é a palavra sobretudo do argumentista Mankiewicz e da personalidade de William Randolph Hearst que ganham força no desenvolvimento da narrativa, diálogos de uma qualidade rara de autoria de Jack Fincher, pai de David Fincher. Mankiewicz era um notável escritor mas também um orador terrível, de um sarcasmo destruidor e a interpretação de Gary Oldmann (recordam-se de Winston Churchill no Darkest Hour, A Hora Mais Negra de Joe Wright) realça na sua espantosa dimensão física de alguém que caminha para a destruição essa característica.

Curiosamente e apesar da sua natureza revolucionária para a história do cinema, o único Óscar alcançado entre nove nomeações seria ganho em co-autoria por Mankiewicz e Wells na categoria de argumento. Não no filme mas na vida real, as perturbações do alcoolismo determinaram uma morte relativamente precoce com 55 anos de alguém que praticamente esgotou a sua criatividade com aquele argumento.

Dada a sua relação com o background de CITIZEN KANE, o que bastaria para reafirmar a sua importância, mas também pela sua qualidade intrínseca, MANK é um objeto fílmico ímpar e creio que o melhor trabalho até agora de David Fincher (de quem tinha visto O Estranho Caso de Benjamin Button e a Rede Social e também o episódio piloto de HOUSE OF CARDS). Talvez tenha sido esta última experiência que o levou a entrar na tentação da Netflix. Ainda bem que o fez para nosso desfrute. 

Nota final:

Há dias o New York Times publicou uma longa reportagem-entrevista com David Fincher que é uma excelente contextualização de Mank. Assina-a Jonah Weiner (link aqui)

 

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