terça-feira, 1 de dezembro de 2020

BONIFÁCIO À BOLEIA DE VENTURA

 

(Tenho a intuição de que, para efeitos de memória futura, o artigo de hoje no Público da historiadora M. Fátima Bonifácio vale a pena ser devidamente analisado. Tudo se passa como se uma certa direita, liberal e conservadora, da qual a historiadora se reivindica, saísse do armário político e o fizesse à boleia do Chega de André Ventura ...)

Sei que a historiadora cronista tem obra própria e que vale a pena ser lida. Sei que a deve irritar bastante, mas mesmo que o queira reconhecer a primeira referência que me vem à mente quando se fala de Fátima Bonifácio é o facto de ter sido  casada com o Engº João Martins Pereira (do qual se divorciou em 1978) um dos analistas da revolução democrática que mais me impressionou então. Sei que é injusto, mas talvez o faça pelo facto da historiadora de que hoje falo oscilar bastante entre algum revanchismo de direita e o rigor de algumas das suas análises.

Mas o artigo de hoje (link aqui) merece análise profunda, pois, reivindicando-se a historiadora de liberal-conservadora, afirma sem rodeios de que “a direita portuguesa, comedida, digerível e aprazível ainda não saiu do armário, e continua na defensiva, a desfolhar as páginas de um dicionário de eufemismos”. É uma leitura coerente do vazio em que a direita portuguesa se deixou mergulhar, com várias origens: o declínio em modo de autodestruição do CDS, a oscilação do PSD de Rui Rio que tanto louva o centro, o centro-direita e a filiação social-democrata como se deixa toldar pela proximidade ao poder, favorecida pela instabilidade do anticiclone dos Açores. Para além dessas dimensões, a direita alt-right à Steve Bannon ou à Tea Party  ainda não mostrou as suas garras, limita-se a aparecer esporadicamente entre alguns escritos no Observador, alguns dos quais não se consegue distinguir se se trata apenas de revanchismo histórico, cujas razões serão seguramente demasiado pessoais para ser compreendido por este vosso amigo. Fátima Bonifácio, por vezes, oscila em torno dessa mensagem, mas o artigo de hoje tem mais profundidade e pode ser esclarecedor de um futuro próximo.

As hesitações da tal direita “aprazível” de que fala a historiadora tornam-na no seu entender prisioneira da terminologia de esquerda que traça, ela própria, linhas vermelhas para mais facilmente arrumar os que ousem sair do armário e contrariar esse pretenso monopólio da história. E é aqui que entra o mais do que controverso branqueamento de André Ventura. Vejamos o argumento: “(…) Ora quer-me parecer que é altura de sair do armário e ocupar o espaço não socialista que resta, transitoriamente despovoado, e que ainda é considerável. Isto não se consegue com falinhas mansas, porque estas são imediatamente neutralizadas e acomodadas num cantinho dentro do regime, onde não perturbam a ordem e as primazias estabelecidas”.

Ou seja, André Ventura, com a sua capacidade de defender algo e o seu contrário, desmarcar uma reunião que não tinha convocado, estaria a fazer um grande serviço à tal direita que nem é extrema-direita, nem é centro-direita, preenchendo o que em contabilidade se chamava no meu tempo os gastos de primeiro estabelecimento. E com tanta necessidade de reconhecer em Ventura o que rasga caminhos, provavelmente sem o saber, Bonifácio não hesita em pintar com cores suaves a entrada em cena do Chega: “O Chega talvez ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo”.

Ou seja com tanto salamaleque para com o “outsider” acaba por branquear as tentações não democráticas do dito. Considerando-se possuidora de uma “visceral aversão a revolucionários e revoluções” (desculpe Fátima mas não poso deixar de pensar outra vez em João Martins Pereira), a historiadora acaba o artigo com rigor de influência de ideias, a citar como exemplo e inspiração o pensamento de Edmund Burke, que a conduz à ideia de evolução gradual, incremental, sem revolução. Por outras palavras, o conservadorismo de Fátima Bonifácio não rejeita a ideia de progresso, tão só o situa no incrementalismo das mudanças. Daí classificar-se de liberal-conservadora.

Sempre é um pensamento com consistência. Tenho dúvidas de que para o afirmar fosse necessário branquear o Chega e o Ventura. Talvez o problema não seja esse. Serão os liberais-conservadores assim tantos escondidos nos seus armários protetores e defensivos? Existirá mesmo esta direita como força política organizada e possível em Portugal? Que o panorama político em Portugal ficaria mais equilibrado com essa direita aprazível e apelativa não tenho dúvidas e por isso me dei ao trabalho de ler a crónica.

Mas para memória futura referenciei o artigo. Algo me diz que me será útil para compreender os candidatos ao preenchimento do vazio de que fala Bonifácio. O risco é louvar o rompimento de Ventura e acabar misturado com toda a sua tralha.

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