(Nesta civilização apressada em que estamos mergulhados perdemos por vezes a perceção da importância do simbólico. O primeiro dia de administração da vacina da Pfizer – BioNTech em Portugal acumulou símbolos de natureza diversa e penso que as pessoas em geral o perceberam.)
Ao dia 27 de dezembro fez-se história e em torno dessa marca histórica várias manifestações do simbólico se cruzaram na perceção dos portugueses.
Os jornais e televisões deram ampla cobertura ao facto do primeiro indivíduo a ser vacinado em Portugal ter sido o Professor António Sarmento da Faculdade de Medicina do Porto e do Hospital de S. João. Mas que escolha mais simbólica. O Professor António Sarmento responsável pelo serviço de infetocontagiosas do Hospital foi das personagens mais sensatas a comunicar durante a primeira vaga do COVID-19, uma daquelas personalidades em que sabemos que podemos confiar e que fazem do SNS em Portugal uma referência acima do nosso nível de desenvolvimento socioeconómico. E, para além disso, uma pessoa de dedicação extrema à causa do serviço público. Como o disse o próprio António Sarmento, outros haveria que talvez merecessem mais ou também a honra mediática da primeira vacinação. Mas para além de marcar a competência com que o HSJ se tem organizado para fazer face à pressão, é para mim simbólico que tenha sido a maneira ímpar de estar daquele Professor e profissional de mão cheia a marcar mediaticamente a primeira vacinação, à qual se junta a enfermeira Ana Isabel Ribeiro que o amigo Manuel Ferreira rapidamente identificou como uma ilustre vimaranense da sua terra.
Uma outra carga simbólica se junta ao início da vacinação. Embora três países se tenham antecipado, não sei se por razões logísticas compreensíveis se por qualquer fascínio idiota de romper o acordo celebrado, nunca uma decisão como a logística da vacinação mostrou tao visivelmente aos cidadãos que a Europa pode existir. Alguns, como Pacheco Pereira, desvalorizaram a decisão de distribuição inicial das vacinas em simultâneo. Mas trata-se de uma decisão simbólica que pode representar muito em termos de perceção do alcance de estar na União. Certamente que se, algumas das produções de vacinas previstas falhar, poderá haver tentações nacionalistas e lá se vai outra vez o espírito europeu. Mas até agora o comportamento da Comissão Europeia e do Conselho têm estado à altura do desafio e isso também pertence à dimensão do simbólico e pela primeira vez isso não tem que ver com a atração dos Fundos Estruturais.
Nestes dias, tem sido dada relevância mediática à cientista húngara, hoje Vice-Presidente da BioNTech, Katalin Karikó, que investiu praticamente e com teimosia toda a sua vida nos trabalhos que possibilitaram os avanços da BioNTech, entretanto associada à Pfizer, que simbolicamente também é propriedade de dois investigadores filhos de imigrantes turcos na Alemanha. Os trabalhos de Katalin juntaram-se posteriormente aos de Drew Weissman na Universidade da Pensilvânia para explorarem a técnica do ARN mensageiro que está na base da rapidez com que a BioNTech/Pfizer e a Moderna concluíram a vacina para ainda antes do fim de 2020 se iniciar o processo de vacinação.
O que é simbólico no contributo de Katalin Karikó é a persistência e teimosia numa ideia e sobretudo o estilo de cientista à antiga que a investigadora húngara protagoniza, com a aposta de uma vida no desenvolvimento dessa mesma ideia contra todas as recusas e rejeições e sem sinais exteriores visíveis de riqueza, fiel às suas origens de pobreza, filha de um talhante cuja manipulação das vísceras animais lhe terá segundo ela despertado a curiosidade científica. Nada mais simbólico do que este facto para assinalar o retorno da ciência como única forma de se sobrepor à instabilidade dos nossos comportamentos em sociedade.
Mas ainda no mesmo plano simbólico e por mais arrojada e disruptiva que fosse a ideia de Katalin e Weissman e de muitos outros cientistas que não terão merecido a mesma atenção mediática, a rapidez assombrosa com que, contra todas as expectativas e embora sem dar guarida à despudorada manipulação de opinião que Trump se preparava para concretizar se a vacina tivesse surgido uns meses antes, só foi possível dado o grau muito particular de concentração e de organização das relações entre a I&D empresarial e pública e a indústria farmacêutica. Sou dos que penso que a concentração monstruosa para que a indústria farmacêutica está a evoluir é perigosíssima. Há uma relação de interdependência crescente entre os custos proibitivos da inovação disruptiva na indústria farmacêutica e a concentração progressiva da indústria. Estão aqui em causa problemas sérios de viabilização do conhecimento como bem público. Mas, neste caso só uma forte concertação e cooperação global entre I&D pública e privada ou com financiamento público desta última e um forte envolvimento da indústria farmacêutica poderia viabilizar os avultados investimentos que tornaram possível o feito espantoso do fornecimento da vacina neste tempo. O que também é uma dimensão simbólica do estado da arte da investigação científica disruptiva nestas áreas.
Mas quando há investimento privado ele pressupõe obviamente retorno. E o modo como esse retorno vai ser assegurado pode ser também simbólico da evolução futura do capitalismo da ganância. O meu colega de blogue trazia há dias para a reflexão, entre outros, de leitura muito sugestiva, o livro de Paul Collier e John Kay (Greed is Dead – a Ganância morreu). Ora, teremos neste processo a revelação se de facto essa ganância está ou não morta. Se o retorno do investimento avultado que tornou possível a vacinação em tempo tão rápido for concretizado com o lucro justo do risco associado e permitir uma distribuição equilibrada pelo mundo do acesso à vacina, então Collier e Kay terão razão neste domínio. Se, pelo contrário, esse retorno for exorbitante e condenar os países menos desenvolvidos e mais fracos a morrer durante mais tempo por acesso tardio às vacinas então a ganância fármaco-medicamentosa terá aqui ainda um reduto indestrutível.
Em ambos os casos haverá uma dimensão simbólica, a da esperança ou a da ganância que persiste.
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