quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

DE MARLEY A NOTTING HILL

 

(O streaming tem-me encantado sobretudo pela qualidade de algumas das suas peças, sejam filmes ou séries. É o caso de Small Axe de Steve McQueen produzido para a BBC – Amazon que estou a visualizar na HBO. A história da Inglaterra contemporânea dificilmente poderá ser contada sem recorrer a este documento de cinco filmes, no qual McQueen, já nascido em Londres, se redescobre nas suas origens caribenhas, também com entrevista no Público.

Quando já há quase 50 anos (1972) fiz a minha viagem de curso a Londres e a Amesterdão, de deslumbre pela dimensão fechada e acanhada do país que tínhamos, estávamos a um ano do aparecimento da canção de Bob Marley (Small Axe - “If you are the big tree, we are the small ax”), em associação ao título que dá o nome a este conjunto de cinco filmes de Steve McQueen (link aqui). Quando, nessa estadia em Londres de uma semana antes de zarpar de barco pela Mancha até aos Países Baixos, Notting Hill emergia já como uma atração, tenho agora a perceção de que na altura víamos o local essencialmente como diversão turística. Por duas vezes que visitei Notting Hill desde essa visita inicial fui-me apercebendo da riqueza multiétnica das comunidades que nela residiam e de outras atmosferas que em 1972 me tinham escapado. Pelo primeiro filme deste universo de McQueen, Mangrove, o restaurante, bar, café, lugar de encontro caribenho que acabou por se transformar em centro de afirmação identitária do seu modo de vida em Londres, apercebo-me agora que, uma década antes da minha primeira visita, o Mangrove e os arredores de Notting Hill tinham sido palco de um momento incontornável da luta dos caribenhos em Londres pela sua dignidade, pelo direito à sua identidade e pelo reconhecimento oficial da brutalidade e discriminação implacável que a comunidade sofrera por parte da polícia local, demonizada no filme pela figura do sargento Culley.

Da minha pesquisa, retiro que o tema da canção de Marley que une com esse título o conjunto dos cinco filmes (só visualizei dois) constitui um provérbio caribenho: “the axe is already at the root of the trees”.

O primeiro longo filme, de mais de duas horas (128 minutos) é concebido em função do processo verídico dos 9 do Mangrove, um conjunto de caribenhos que foi acusado de instigar e comandar uma revolta violenta contra a polícia local, na sequência da revolta natural e da emergência de uma consciência coletiva gerada pela injustiça e perseguição que o restaurante e o seu proprietário (Frank Gilbert Crichlow) estavam a ser alvo. Uma grande parte do filme integra o julgamento dos 9 do Mangrove, em que dois membros da formação política dos Panteras Negras em Londres, os ativistas Darcus Howe e Altheia Jones-LeCointe assumem a sua própria defesa e que desmontam a acusação e consagram o reconhecimento oficial que haveria de conduzir a uma indemnização a Crishlow uns anos depois. A maneira como McQueen gere a tensão do julgamento é de quebrar o fôlego a qualquer um, mas a maneira como o Mangrove é filmado como meio de criação de uma atmosfera de identidade e de consciência coletiva é para mim o melhor do filme.

O segundo filme, Lovers Rock, representa o outro lado do binómio dor-alegria que marca para já a minha interpretação do Small Axe. Steve McQueen “infiltra” a sua câmara no interior de uma festa de aniversário local, plenamente caribenha e em que os donos da casa a preparam para a acolher, que deve ser compreendida no contexto da época em que os caribenhos tinham dificuldade de acesso a bares e discotecas londrinas. A câmara de McQueen consegue que nos consideremos espectadores dessa festa, onde a elegância e a sensualidade da dança e dos corpos se conjugam com aquela melopeia enleante da música. Dei-me ao trabalho de procurar no You Tube uma visualização de uma das canções marcantes da festa (Silly Games) com a qual o filme praticamente começa nas vozes de duas jovens, uma das quais irá ter no filme um forte protagonismo, que se preparam alindando-se para a festa. Janet Kay (link aqui) interpreta essa canção num festival ao vivo e é espantoso como a canção no ambiente do filme parece irreconhecível pela poderosa e sensual ambiência em que ocorre. A câmara cola-se ao ritmo daqueles corpos e aquela mistura de álcool, de contacto corporal e do ritmo incomparável daquela música. No desenvolvimento da festa, após a entrada de um personagem, barrado primeiro pela segurança informal do evento e que em função do grau de parentesco com a protagonista há pouco referida acaba por entrar, na sequência do aparente descontrolo que a partir desse momento é criado, uma dança violenta e guerreira parece representar o reavivar das raízes na origem.

Não faço a ideia se os três restantes filmes aguentarão a qualidade e o nível destes dois. Mas pelo que visualizei estamos perante uma das melhores coisas de 2020 em matéria televisiva. E já são algumas que o streaming me trouxe.

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