sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A CROWN É UMA FICÇÃO

 


(A magnífica composição que encima o artigo do sempre perspicaz Antonio Muñoz Molina no Babelia, link aqui, e agora que a visualização da quarta temporada da CROWN da Netflix já cá canta sugerem-me um post de revisitação a este excelente produto televisivo. Foi preciso que a quarta temporada chegasse para que os espíritos devoto-protetores da Família Real se abespinhassem clamando que é uma ficção. Valha os Deus!)

A quarta-feira temporada já lá vai e adensam-se as expectativas quanto às restantes. Vá lá saber-se porquê, só agora surgiu o clamor quanto aos desvios de realidade que a série de Peter Morgan explora relativamente aos aspetos mais sórdidos ou, pelo menos, mais incómodos para bom conservador aguentar. Até o troca tintas Boris Johnson entrou na polémica, reclamando que os episódios da Netflix deveriam conter a menção “Isto é ficção”, para uma completa salvaguarda da imagem menos positiva que alguns membros da família real. Não sou obviamente um especialista da Família Real e dos seus pergaminhos e admito sem dificuldade que haja aspetos do enredo e da tipificação de algumas das personagens correspondam a imagens distorcidas de tão vetustas personalidades. A imprensa e alguns artigos de opinião, até de Francisco Seixas da Costa que emerge cada vez mais como embaixador socialista dos bons costumes citam alguns factos que dou como justificados: a carta que na série o Príncipe Carlos recebe de Lord Mountbatten (Uncle Dickie) escrita antes do seu assassinato pelo IRA não terá existido, o mesmo Príncipe Carlos não terá visitado tantas vezes a sua amante Camila como a série o insinua, a Família Real não terá tratado com tanto desprezo e arrogância o casal Thatcher na sua visita ao reduto de Balmoral e outras. Tanto me são relevantes estes episódios como eventualmente as infidelidades de Lady Di não terão sido tão arrebatadas como a série o sugere ou os traços de personalidade da Princesa Ana e da Princesa Margarida podem conter exageros ou diferenças em relação às personalidades. Tanto se me dá. Essencialmente, porque o que me interessa é a coerência da ficção, a capacidade de me colocar em frente ao écran suspenso daquela narrativa e dos pequenos dramas que aquelas personagens suportam sobre os ombros, no seio da saga “The Crown should go on”, como imaginamos que seja o que acontece com tantos anos de perpetuação da influência da família.

A verdade é que a apresentação da série da Netflix não integra nenhuma referência a se é ou não ficção, assim como também não inclui uma outra referência que poderia ser “baseado em factos reais”.

A CROWN não pretende ser um romance biográfico, é apenas uma série de ficção, de grande qualidade em meu entender, aliás com material do mais valioso, não para compreender os pequenos drama do isolamento a que os soberanos se votam a si próprios, mas por exemplo para perceber o que significou a ascensão de Thatcher ao poder, o seu conflito brutal com o imobilismo do Partido Conservador e a sua insensibilidade aos custos sociais das suas medidas, à sua maneira, de “We will make United Kingdom great again”.

Como Molina com a habitual clareza nos coloca “não há representação do real que não seja ambígua. O cérebro humano é um órgão muito propenso a deixar-se enganar pelas aparências, a construir visões fantasiosas do mundo a partir dos dados sempre muito esquemáticos que os sentidos nos veiculam”. E não deixa de ser curioso que os monarcas e soberanos também constroem visões fantasiosas do mundo que os rodeia.

Venha mais uma temporada, certamente já sem a força avassaladora que Olívia Colman (Rainha Isabel II) e Gillian Anderson (Margaret Thatcher) colocavam em todos os planos em que surgiam juntas ou próximas, mais do que quando se apresentam sem a presença uma da outra. E ainda é o próprio Molina que nos surpreende quando nos alerta que quanto melhor é a ficção mais ela nos sugere a realidade. E, de facto, THE CROWN é uma grande série.

Sem comentários:

Enviar um comentário