(The Guardian)
(A equipa económica de Joe Biden começa a tomar forma agora que Trump prega no deserto e que Giuliani estará mais interessado em livrar-se do COVID-19 e mudar de tinta para o cabelo do que propriamente litigar pela alucinada visão de fraude eleitoral que ajudou a propagar. Repito o meu argumento elaborado a propósito da indicação de Janet Yellen para Secretária de Estado do Tesouro. Os nomes são de peso e uma sensação ambivalente se forma nas minhas expectativas: é bom vermos que gente que lemos regularmente estará no coração das ideias para a política económica do governo Democrata; mas também é grande o risco que nos possam desiludir e com isso ver as ideias que defendemos tornar-se periclitantes com essa proximidade.
Como disse a equipa é de peso: Yellen para Secretária de Estado do Tesouro, Cecilia Rouse (Princeton) para chefiar o Council of Economic Advisors, a primeira mulher negra a assumir aquela função, Heather Boushey e Jared Bernstein para conselheiros e Neera Tanden para chefiar Office of Management and Budget (OMB).
Hoje, fixo-me num dos pensamentos mais arejados que emergiu na última década em matéria de desenvolvimento económico nos EUA, assumindo frontalmente a corrente que olha para a desigualdade como um importante obstáculo ao crescimento e desenvolvimento e não como uma simples qualificação normativa para o próprio desenvolvimento.
Heather Boushey faz parte de um vasto conjunto de economistas que dedicaram à desigualdade a atenção e importância que ela merecia, numa era em que os modelos económicos e financeiros instalados se limitaram a exacerbar desigualdades, apoiando descaradamente o 1% mais rico e dentro deste grupo a favorecer os 0,1% mais ricos. Com a treta do desagravamento fiscal, favorecendo a sua redução não para os impostos sobre o trabalho, mas antes sobre o capital, que representou numa síntese esquemática a política económica de Trump, as economias avançadas mais maduras emergiram como fontes declaradas de agravamento da desigualdade. Quebraram, assim, o pacto social que orientou o crescimento dourado dos anos 50 e 60 e assumiram em algumas dessas economias, com destaque para os EUA a variante da plutocracia mais descarada. Basta olhar para os apoiantes mais sonantes de Trump para se compreender essa conformidade.
A emergência desse pensamento que se escorou num outro olhar sobre a desigualdade, foi ainda crucial para desconstruir a velha norma da perspetiva sobre os menos desenvolvidos, “cresçam primeiro e redistribuam depois”, a qual como sabemos se transformou na mais hipócrita defesa dos estados autoritários no Terceiro Mundo, desculpando a violação dos direitos da igualdade com o crescimento económico e com a redistribuição a prazo.
Coerente com esses princípios, Heather Boushey rapidamente se destacou como Presidente e CEO de um dos mais importantes think-tanks nascidos na última década nos EUA, o Washington Center for Equitable Growth, que apresenta como sub-título o sugestivo “Evidence for a Stronger Economy”, afinal a consequência das evidências teóricas e empíricas de que a desigualdade penaliza o crescimento económico. Vale a pena uma viagem pela página web da instituição para compreender a riqueza da abordagem (link aqui).
Boushey assina com Bradford DeLong e Marshall Steinbaum a obra que considero seminal sobre as raízes e fundamentos do que poderíamos chamar a Economia pós PIketty – After Piketty – The Agenda for Economics and Inequality (Harvard University Press). É ainda autora a solo do Unbound: How Economic Inequality Constricts Our Economy and What We Can Do About It (Harvard Univesity Press), que é talvez a melhor obra que conheço sobre a fundamentação da ideia central de que a desigualdade representa um constrangimento para o crescimento económico.
É esta mulher de 50 anos que vai integrar o Council of Economic Advisors de Biden. Parece que finalmente aquela figura dos economistas, encerrados em torres de marfim e limitados à proteção defensiva dos modelos e de viciação da realidade, estará não em extinção (haverá sempre uma verdadeira prole de brilhantes economistas que não arriscarão nunca um dedo para se misturar e intervir na realidade em auto-reprodução permanente), mas a ser combatidos por quem vai à luta e testar as suas ideias.
Que a clarividência e a sabedoria estejam com eles, neste caso com elas.
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