segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

“PARA SALVAR A ECONOMIA, SALVEMOS PRIMEIRO AS PESSOAS”

 

(Este é o título de um artigo publicado no Institute for New Economic Thinking, incontornável entre os muitos que tenho trazido para este blogue e que mostra, entre outros aspetos, o espantoso envolvimento da academia americana na compreensão dos melhores rumos para abordar a tripla crise, sanitária, económica e social. Sim, à medida que se conhecem melhor os custos da pandemia em economias como a americana, e aqui também a academia tem-se movido com eficácia, é também possível desmontar os que por várias vias procuraram demonstrar que os lockdowns não funcionaram.)

Até impressiona o modo como a academia americana (por vezes tão acusada pela agressividade da competitividade interna) se tem aberto ao exterior para acompanhar criticamente a gestão pandémica no mundo e particularmente nos EUA, em que cada dia que passa, é mais claro compreender a sacrossanta estupidez de Trump e da sua equipa nessa gestão. O Washington Post investigava há dias o vastíssimo número de personalidades que pela sua convivência, proximidade e colaboração com Trump viram para sempre as suas carreiras marcadas por patologias diversas como a corrupção, o encobrimento de favores, o negacionismo e outras doenças do tipo. Se tivermos em conta que Trump deixa também atrás de si, através da incompetente gestão pandémica, um rastro massivo de mortes que em grande medida poderiam ter sido evitadas, temos em Trump uma espécie de negativo de Midas, em tudo que tocou provocou danos irreparáveis.

O artigo de autoria de Phillip Alvelda, Thomas Ferguson, and John C. Mallery, publicado em novembro passado pelo Institute for New Economic Thinking (link aqui), um think tank que se tem destacado na procura de novos rumos para a ciência económica e para o seu ensino, traz-nos o que considero ser uma das mais coerentes demonstrações de que para salvar as economias da crise pandémica é preciso salvar as pessoas primeiro. A análise realizada pelos três autores só é possível porque o conhecimento circunstanciado dos custos económicos da abordagem à pandemia (envolvendo queda do PIB, aumento de despesa pública e incremento de dívida) é hoje obviamente mais perfeito do que o era há nove meses. A base de dados do FMI sobre os custos da intervenção pública na gestão da crise (Fiscal Policies Database in Response to COVID-19, link aqui) é um bom exemplo desse conhecimento mais pormenorizado. Mas também aqui a academia americana, neste caso, Harvard, deve ser convocada. O peso pesado Lawrence Summers que tantas vezes tem sido convocado para este blogue (o Interesse Privado, Ação Pública é seguramente uma das tribunas que mais tem assumido essa convocação) publicou recentemente com David Cutler também de Harvard no Jornal da American Medical Association (link aqui) o que me parece ser a primeira estimativa credível dos custos da pandemia nos EUA, cerca de 16 milhões de milhões (trillion) de dólares, equivalente a cerca de 90% do PIB anual americano.

O gráfico (não necessariamente intuitivo e de fácil leitura) que abre este post situa em dois quadrantes a comparação entre os custos económicos (definidos não só pela quebra de PIB mas também pelos aumentos de despesa de estímulo à economia e de dívida contraída) e os custos sanitários, medidos pelo número de mortes relativamente à população. As linhas a tracejado verde e vermelho agrupam os países que, respetivamente, assumiram rapidamente a estratégia de fechar duramente durante algum período para conter a disseminação do vírus e os que tendo atuado mais tarde nessa abordagem investiram desde logo em estímulos fiscais à economia. Não certamente por acaso, alongam-se pela linha verde os países como a China, Taiwan, Austrália, Nova Zelândia, Islândia, Singapura, Vietname e Tailândia que são conhecidos como tendo tido melhores resultados e que certamente recuperarão economicamente mais depressa. Em contrapartida, os casos também conhecidos de insucesso alongam-se pela linha e quadrante vermelho. Portugal aparece no espaço intermédio, sobretudo devido a uma reação em tempo certo na primeira onda e atraso de reação na segunda (os números de hoje parecem começar a dar razão ao esforço de confinamento parcial nas últimas semanas).

Os números trazidos por Summers e Cutler para uma economia americana que reagiu tarde no confinamento que Trump tudo fez para torpedear e até negar um valioso investimento em materiais de proteção mostram a crueza das comparações: a resposta rápida teria custos na escala dos milhares de milhões ao passo que os custos reais derivados da estupidez, incompetência e negacionismo passam para a escala dos milhões de milhões. Face a este confronto caem por terra inúmeros artigos que precocemente vieram a terreiro clamar contra a ineficácia dos lockdowns[1]. Claro que não somos parvos e não se ignoram os diferentes contextos de atuação naquele grupo de países que segue a linha verde. Mas o ponto não é esse. Em democracia e nos regimes mais autoritários e mais vinculativos o enforcement do confinamento não é o mesmo e tem de ser adaptado. O fundamental é reconhecer a vantagem do lockdown precoce e atempado e aí não há dúvidas: salvar primeiro pessoas para poder mais rapidamente salvar a economia.

O artigo do Institute for New Economic Thinking é ainda precioso porque acrescenta um conjunto de recomendações para além dessa convicção pragmática e revelada por nove meses de intensa observação.

Uma ideia central é a de que existem dados objetivos para priorizar em termos de custo-benefício o investimento público. Investimento massivo na disseminação de máscaras da melhor qualidade possível e na comunicação insistente e direta para a sua utilização e das medidas de distanciamento físico e higiene, investimento na melhoria do transporte público, no ar condicionado, filtros e ventilação apresentam um elevadíssimo retorno do investimento. Para além disso, a subsidiação de trabalhadores não essenciais para evitar disseminação em profissões não estritamente necessárias ao funcionamento da economia, o decisivo investimento nas condições de vida e de trabalho de trabalhadores essenciais e o investimento em condições de rastreabilidade, vigilância, testes e reporte de resultados constituem outra dimensão do protocolo de boas práticas. E tudo isto baseado na utilização do enorme potencial de mobilização de dados em tempo real, que constitui a grande mudança face a outras pandemias.

As terapias médicas baseiam-se muito como sabemos em protocolos que reúnem em determinadas condições de conhecimento as boas práticas. Também na abordagem à gestão global da pandemia existem hoje condições para definir com a melhor informação possível as boas práticas de abordagem.

Para terminar, arrepiou-me a descrição que os autores do artigo realizam da enorme estupidez que foi a não autorização por Trump do plano de investimento massivo em máscaras e materiais de proteção:

O custo de tal programa envolveria um investimento na ordem de um milhar de milhão de dólares, em comparação com o estímulo económico do 2º trimestre compatível com os dados do gráfico (que abre este post) de 1,7 milhões de milhões de dólares, um número que entretanto cresceu até agora para 3 milhões de milhões de dólares adicionado das perdas de PIB. A eficácia das medidas em confronto vai de 1.000 para 1 a favor da primeira intervenção. Por outras palavras, um milhar de milhão de dólares gasto em máscaras e distanciamento físico teria tido um efeito similar ao de um estímulo de um milhão de milhão de dólares e poderia ter salvo cerca de 200.000 vidas de Americanos”.

Este número é também uma medida imperfeita do narcisismo de Trump.



[1] Que o artigo do Institute for New Economic Thinking explicita na bibliografia, todos na linha de Wall Street Journal e Companhia.

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