domingo, 13 de dezembro de 2020

UMA PERSPETIVA INQUIETANTE SOBRE O TRUMPISMO


(A New York Review of Books de 3 de dezembro abre com um artigo de Fintan O’Toole, “Trump’s Undead Republicans- Democracy’s after life” que nos remete para uma vertigem profunda sobre o estado da democracia americana. Por mais que, nós Europeus, nos esforcemos por afastar-nos de tais tendências, sinto um arrepio quando dou conta que os trends do outro lado do Atlântico costumam preceder os que se manifestam do lado de cá. Malgré les différences ...)

 

O artigo de O’Toole é perturbador (link aqui), é o menos que posso dizer. Tudo se inicia com o facto que, segundo o cronista da NRB, “rodou a chave e fechou a democracia Americana numa indeterminada, talvez indeterminável, condição”. Às duas da manhã do dia seguinte ao ato eleitoral e quando os resultados finais estavam longe de estar conhecidos, Trump avançou com a ideia de que tinham ganho as eleições, colocando os EUA perante a inimaginável situação de que um momento épico na história americana tanto poderia ter ou não acontecido. Com pérfida antecedência, Trump minou para sempre o espaço pós-eleitoral, transformando-o numa terra de ninguém. A deriva impensável dos Republicanos conduziu-os a uma situação em que tanto uma derrota como uma derrota lhes é favorável, tudo em linha com a vitimização que Trump sempre assumiu como o construído ponto de união de quase metade da população americana, que se considera alvo de todas as injustiças e males do mundo globalizado, dominado por elites políticas que pressupostamente não os entendem e que eles também não conseguem entender. 

 

Trump é o artista capaz de colocar uma parte significativa da sociedade americana perante a diferença entre o que aconteceu e o que realmente aconteceu. No mundo de Trump não há derrota, sempre uma vitória acionada em última instância e sempre que necessário pelo seu mundo efabulado na sequência vertiginosa dos seus tweets (reduzidos neste momento à sua mais ínfima expressão, esclareça-se). O negacionismo em torno da ideia de derrota culmina exemplarmente a sua extensão para o mundo da própria morte. O episódio dos três dias de internamento para tratamento da infeção COVID-19 no hospital militar de Walter Reed e o seu regresso triunfal, precedido por aquele imponente passeio de automóvel nas cercanias da unidade hospitalar, como se tivesse ressuscitado de um sacrifício pelo povo e demonstrasse a sua infinita resistência ao cansaço. Com essa encenação, quase metade da população americana ficou indiferente às 230.000 vítimas americanas da pandemia e da incompetência da administração Trump na abordagem ao problema. O que Trump pretendeu mostrar, segundo Fintan O’Toole, foi cavar a diferença face a Joe Biden em relação ao post-mortem. Trump pretendeu jogar a carta de ser capaz de desafiar a própria morte, confrontando-se com um Biden que enfrentou no passado várias mortes de pessoas chegadas mas nunca a quis desafiar. As palavras de Trump proferidas na primeira manifestação após a saída do Walter Reed foram: “Consegui passar por isto. Dizem que estou imunizado. Sinto-me tão poderoso”.

 

O’ Toole salta daqui para uma curiosa invocação de Gramsci a propósito do conceito de crise. Ela consiste no desaparecimento do velho e na indeterminação ou interregno enquanto o novo não assume contornos definitivos. O cronista interroga-se e vai longe quando se questiona se o que está para vir nas cinzas do que parece em desaparecimento será a confirmação do valor das maiorias políticas ou, pelo contrário, a mais terrível tentativa de destruir esse princípio desde que a nação americana se dividiu na Guerra da Secessão? Por outras palavras, se a gestão ordenada da democracia ou o mundo tenebroso das autocracias validadas pelo voto?

 

É curioso que o velho idílio com a ideia do sonho americano atravessa também o confronto letal entre os dois mundos que estiveram em jogo nas eleições americanas. Trump dá como morto o sonho americano e apresenta-se como o ressuscitador do mesmo (levanta-te e caminha), ao passo que Biden e os Democratas sempre o consideraram vivo, não morto, embora necessitado de ajuda e fortalecimento. O Trumpismo escamoteia nesta matéria a questão fundamental de que é a plutocracia e o enviesamento da sociedade americana a favor dos mais ricos e mais poderosos que vai destruindo o sonho americano. O logro do discurso do Trumpismo todo ele é, estranhamente, post-mortem, quando se afirma capaz, segundo O’Toole, de reabrir minas de carvão, reavivar Detroit com a mesma indústria automóvel, negar as mudanças climáticas. Toda esta orientação transforma o Partido Republicano num partido umbilicalmente ligado a partir de agora não aos seus valores de raiz, mas ao autoritarismo e negacionismo de um líder, que identifica o povo como os seus votantes e apoiantes, nada mais. Esta deriva explica o que José Pacheco Pereira designou na sua crónica de ontem no Público de verdadeira tentativa de golpe de estado pós eleitoral. Mas também se estende, ainda segundo O’Toole, para as teses de alguns juízes do Supremo Tribunal de Justiça americano quando defendem que as crenças religiosas são o fundamento da comunidade política americana. Por isso os não religiosos não são patriotas e não integram o povo. Não por acaso tudo o que é seita religiosa está do lado de Trump.

 

Como é possível intuir a partir destas palavras, o artigo de Fintan O’Toole é perturbador. Ele mostra como 45% da população americana que votou, guiada exclusivamente pelos sentimentos do ressentimento e da vingança, está prestes a consumar um “take-over” hostil do Partido Republicano e a prolongar a típica crise Gramsciana: o velho desaparece mas os contornos do novo continuarão por algum tempo (muito?) por definir. Por isso, o mandato de Joe Biden e Kamala Harris será bem mais decisivo do que o tínhamos antecipado com aquela sensação de alívio que sentimos nos dias seguintes à eleição. 

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