(À data em que escrevo, Trump esperneia por tudo quanto é lado, agora essencialmente para o lado Republicano, focado na marcação de terreno nesse campo. O malfadado presidente americano parece disposto a usar até à última gota a sua presença na Casa Branca, iniciando uma reta final de política sem vergonha. Nesta reflexão, estou principalmente interessado em olhar Trump como um acelerador do populismo mais macabro, plutocrático quanto baste. A ideia é simples. Quando perde influência, o efeito acelerador tende a funcionar em sentido inverso.)
A parte final do mandato de Trump ficará para a história americana como o exemplo mais flagrante da chamada política sem vergonha. Já o referi aqui em post anterior que uma preciosa investigação de Jonathan Last (link aqui), e que por lapso tinha situado no Washington Post, identificava, uma por uma, as personalidades que, por terem contactado e mantido cumplicidade próxima com o Presidente (e não estou a falar de contágio viral), ficaram para sempre marcados como pouco recomendáveis ou mesmo com reputação totalmente destroçada e na lama mais sórdida. É impressionante o número dessas personalidades a começar no Procurador Geral Bill Barr que ficará conhecido como o Procurador-Geral mais desonesto num século de justiça americana. A política sem vergonha tem assumido nos últimos dias a forma dos perdões de personalidades a contas com a Justiça americana, numa linha clara de salvar o próprio coiro, pois nunca se sabe o que a nova Casa Branca pode fazer em termos de meter o nariz nas decisões mais controversas de Trump.
Mas, em meu entender, Trump foi a bandeira e acelerador do populismo que viu no presidente Americana a clara demonstração de que mais eficaz do que o lobbying indireto sobre o poder é ocupar o próprio poder e fazer dos seus mecanismos uma via mais direta para a plutocracia. Houve de tudo. Desde os seguidores mais rasteiros como Bolsonaro aos mais elaborados do ponto de vista das redes e tramas tecidas com afinco e persistência como Orbán na Hungria, sentiram-se inspirados pela onda. Até o inenarrável Ventura se sentou confortado com o facto da primeira potência económica do mundo (por quanto tempo?) ser comandada por um troca-trintas e um trafulha que se sentia capaz de vergar o próprio vírus. Claro que na prática, tal como Boris Johnson rapidamente compreendeu, uma coisa é o ambiente inspirador do personagem, outra bem diferente é tentar fazer política bilateral com tal personagem.
Embora não possa dizer-se que haja uma simetria rigorosa de comportamentos desta natureza na alta e na baixa, não é muito arriscado antecipar que o efeito-acelerador de um personagem deste calibre tenderá a gerar um contra- efeito quando perde o poder e se vê afastado dos mecanismos que usou em proveito próprio.
A vitória de Biden e o que se antecipa de mudanças na política americana, sobretudo em temas que se revelaram sensíveis para o negacionismo populista,
Gera inevitavelmente uma outra ambiência na política americana. Isso não significa, porém, que os aficionados de Trump na cena internacional sejam desalojados do poder apenas pela queda do seu ídolo inspirador. Personalidades como Vicktor Orbán foram montando com tempo e minúcia as suas redes e fontes de eliminação de campos adversos como a justiça ou a imprensa. Mas o facto de toda a oposição a Orbán se ter unido numa frente eleitoralmente una e parecer estar disposta a tirar partido de alguns desaparecimentos de figuras de proa do Fidesz (atingidos pelo escândalo de algumas orgias em Bruxelas, um clássico) é um sinal dos tempos. Não tenho informação que me garanta que a frente de oposição ganhe as próximas eleições (apesar de liderar as sondagens). Mas suspeito estarmos perante um dos primeiros efeitos do chamado contra-efeito da queda do acelerador Trump.
Por cá, o inenarrável Ventura voltou-se para Marine Le Pen. Não subestimemos a líder populista e nacionalista francesa. É bem mais dura de roer do que o populismo de Trump.
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