quarta-feira, 10 de novembro de 2021

DEBATENDO A BAIXA NA ORDEM DOS ARQUITETOS

 

 

(A Arquiteta Conceição Melo convidou-me para estar hoje na Ordem dos Arquitetos –secção Norte para debater o livro A Baixa do Porto (Book Cover Editora), conjuntamente com os seus autores Rio Fernandes, José Pedro Tenreiro, Pedro Marques de Figueiredo, Jorge Ricardo Pinto e Pedro Chamusca e mais dois arquitetos Adriana Floret e Nuno Grande. O convite era inicialmente dirigido ao meu colega de blogue que está felizmente a recuperar do problema de saúde que teve e nessas condições aí regresso de novo à minha intermitente passagem pelo tema da Cidade. Por uma boa causa e até porque o livro é um documento interessante, datado, mas permitindo refletir sobre as transformações que já há longo tempo vão marcando este espaço da Cidade.

Como referi, a minha reflexão sobre a Cidade em geral e sobre o Porto em particular tem muitas descontinuidades, não é o meu tema central de investigação/reflexão, a ele regresso intermitentemente por via de alguns trabalhos profissionais, convites para sessões deste tipo ou animação política, como o foram os dois encontros (um fechado e outro público) inseridos na reeleição de Rui Moreira. Apesar dessa descontinuidade e intermitente visitação do tema, apercebo-me que tenho evoluído segundo um padrão de reflexão que tendo a dividir em duas áreas:

·        Uma que é muito cara, é de natureza lúdico-afetiva e tem na literatura uma designação que muitos designam de elitista e por isso por vezes mal compreendida; chamo-lhe a perspetiva do “flâneur”. Muito inspirada nos escritos de Walter Benjamim (sobretudo The Arcades Project), por sua vez inspirada em Baudelaire, que equivale a uma lógica de percorrer a Cidade atento ao que vai mudando, muito ao nível do “descobrir um mundo que é aquele em que se vive” ou do “sair de casa como se viessem de longe”. Nesta abordagem, as minhas zonas de aplicação têm sido, por razões afetivas e familiares, o distrito artístico das Belas Artes (Avenida Rodrigues de Freitas e perpendiculares) e o Carmo-Carlos Alberto-Universidade-Hospital de Santo António, com atenção particular às atmosferas que por aí se estabelecem antes e depois da “turistificação” de que falam os autores e antes e depois do confinamento;

·        Outra, que está mais próxima das minhas áreas de investigação, é a da análise económica da Cidade, em que esta é vista como um espaço de produção e circulação de conhecimento, sempre em articulação com as marcas diferenciadoras da economia seja da própria Cidade, seja da aglomeração metropolitana (coração ou mais alargada) ou ainda da própria Região. Nesta abordagem, as zonas de incidência da minha atenção são a Asprela e imediações (espaço para um Porto Innovation District) e também o chamado distrito artístico envolvendo a Baixa.

Percebo pela natureza do convite da Arqª Conceição Melo que é esta segunda dimensão a pretendida para diversificar o debate. Se a evolução da discussão permitir fazer o jogo do participante mais indisciplinado, um olhar sobre a perspetiva do “flâneur” será também possível.

Na minha interpretação, a economia da Cidade e a sua projeção no que os autores do livro designam por Baixa são marcadas por uma profunda evolução nos tempos mais recentes (não é uma história económica da Cidade que me interessa), na qual identifico três fases.

A primeira fase designo-a pelo tempo da Cidade-região (não o sendo em termos rigorosos). O que marca esta fase é o facto da economia da Cidade refletir em grande medida a especialização produtiva regional, como o são a forte especialização no têxtil-vestuário, a dimensão portuária do inport-export (porto de Leixões), a presença da grande empresa industrial ou de armazenamento (velha distribuição) e das gráficas com alguma expressão de dimensão.

A segunda fase é marcada pelo desmoronamento da primeira que se processa por diferentes vias:

  • O fortalecimento da Região em termos de oferta de serviços às empresas, incluindo as atividades de I&D e de transferência de tecnologia, com particular expressão na criação de uma área de influência da Universidade do Minho, com padrões de localização mais próximos das concentrações dos clusters industriais; esta transformação acontece não obedecendo a um padrão que é comum a algumas cidades de maior dimensão e porte do que o Porto, saindo as atividades de menor valor acrescentado e permanecendo as mais expressivas na criação de valor, as que são capazes de pagar os elevados custos do solo e de m2 de arrendamento; neste caso é mesmo de saída “absoluta” que equivale ao fortalecimento desses clusters nos territórios de maior concentração industrial;
  • Outra via é a debandada dos centros de grandes empresas e de alguns serviços públicos, seja para outras zonas da Cidade, seja para outros municípios do coração metropolitano, seja ainda para o centralismo da capital, zarpando em direção à proximidade do poder; esta debandada significa sobretudo a queda da massa de emprego acolhido pela Cidade e pela Baixa, com a evidência de que o comércio da Cidade nunca aproveitou esse potencial de emprego, num anquilosamento de modelso de gestão e de atendimento que, em grande medida, só veio a experimentar uma mudança com a chamada turistificação da Cidade;
  • O aparecimento de uma pujante coroa de grandes superfícies nos municípios do coração metropolitano é uma outra via do desmoronamento;
  • E, finalmente, o fortalecimento progressivo da base económica dos municípios referidos nos pontos anteriores completou a obra.

Na minha perspetiva, a economia da Cidade e a sua projeção na Baixa, vivem um processo de recomposição, em que identifico as seguintes tendências:

  • Usando o termo dos autores do livro em debate, a “turistificação” da Cidade, traduzida não apenas nos mecanismos da reabilitação habitacional, alegados sinais de gentrificação e também  profunda recomposição da oferta comercial;
  • Em segundo lugar, a própria recomposição económica da AMP através da sua pujante participação no Sistema Regional de Inovação do Norte, especialmente nos domínios das (i) tecnologias digitais, robotização e automação, (ii) ciências da vida e da saúde e (iii) energia; no âmbito desta transformação, defendo que o Porto e a AMP podem aspirar a um Innovation District, com todas as suas consequências do ponto de vista da atração de investimento direto estrangeiro, talentos, mais estudantes estrangeiros, investigadores e tecníologos, outras culturas e modos de vida, uma cultura ecológica mais refinada e assumida e obviamente função residencial para acolher essa dinâmica;
  • Por fim, considero que a relevância do Porto como distrito artístico continua interrogada, seja na via do distrito cultural “tout court”, seja por via das indústrias criativas; essa afirmação está longe de estar confirmada não por problemas de massa crítica de recursos (somos poucos e continuaremos a sê-lo, a não ser que a dinâmica anterior aconteça), mas também porque existe uma baixa intensidade de cultura colaborativa, seja no interior do bloco artístico-cultural, seja entre este e a indústria.

Estas três dinâmicas de recomposição económica da Cidade tanto podem convergir e interagir através de laços de relacionamento que não conseguimos ainda antecipar, como podem evoluir por si só, umas eventualmente perdendo gás, outras ganhando força e expressão na Cidade. Para mim, a política pública sempre foi a arte do possível em contextos que estão já em movimento, o que equivale a reconhecer o seu alcance limitado em alguns contextos. As dinâmicas de recomposição atrás identificadas e a intervenção pública possível para o seu desenvolvimento e enquadramento ilustram a preceito essa minha conceção.

Quanto à primeira dinâmica, “turistificação”, sou dos que analiso a questão com pinças. Sei que o Porto é uma Cidade muito pequena, logo massas relativamente reduzidas fazem-se sentir, sobretudo se atraídas para um conjunto reduzido de pontos focais e o mercado do acolhimento organizado tende a reduzir esses pontos focais. O impulso para o alojamento local terá sido desequilibrado, gerando uma forte necessidade de regulação, em parte dispensado pela pandemia. Bem sei também que a tensão entre utentes e residentes está aí a desafiar também essa regulação. Mas confesso-vos que tenho muita dificuldade em imaginar o contrafactual de tudo isto. O que seria a Cidade sem este choque ou impulso conforme lhe queiram chamar? E não estou seguro que fosse melhor. Depois, tudo o que me soa a truncar ou limitar artificialmente a abertura da Cidade a quem a procura inspira-me grande preocupação. Coisas bem piores por aí começam … Além disso, esse fechamento parece-me contranatura para as nossas Cidades – sempre precisamos da interação com os outros para não estiolar ou entrar na decrepitude. E, depois, grande parte dos fluxos turísticos e dos perfis dos grupos que os alimentam não me parecem incompatíveis, antes favorecem, as atmosferas de diversidade (de que falava a incontornável Jane Jacobs a propósito da morte e vida das grandes cidades americanas) e de convivialidade já existentes na Cidade e que tinham dificuldades em afirmar-se porque minoritárias numa Cidade envelhecida. Não tenho qualquer pretensão a posições definitivas e abrangentes sobre este tema, mas no espaço preferencial da minha observação de “flâneur”, a área do distrito artístico, a chamada “turistificação” em nada prejudicou, antes favoreceu o clima muito particular de atmosferas que por lá se sentem. Claro que as longas filas à porta da Lello espantavam e irritavam, e começam de novo a espantar e a irritar. Ms isso é também uma oportunidade para revisitar ou mesmo descobrir outras preciosidades mais alternativas (entre as poucas que já existem), essas seguramente não “turistificadas”. E não é assim que nos acontece também noutras Cidades?

A segunda dinâmica de recomposição é aquela em que mais acredito, mas também devi dizer que as dinâmicas provenientes da investigação e da transferência de conhecimento e tecnologia para as empresas (isso é que é inovação) tardam a ser compreendidas no plano institucional, onde a inovação parece ter chegado a um “plateau”. Tem escasseado inovação institucional e decisão política para configurar um Porto Innovation District, não me admiraria que um Braga Innovation District aparecesse mais cedo. A ação da UPTEC e dos interfaces INESCTEC, INEGI e I3S, entre os principais, tarda em ser mais coordenada (essencialmente porque a questão do ecossistema Universidade do Porto não tem ainda governação capaz). O epicentro desta dinâmica estaria obviamente concentrada na zona da Asprela-Paranhos, com extensão para a parte norte da zona oriental da Cidade, particularmente Contumil.

Quanto à terceira via de recomposição, devo dizer que já estive mais otimista. Os distritos culturais e criativos só com massa suficiente de conhecimento simbólico a circular tendem a prosperar e isso só é possível com gente criativa em quantidade. A nossa “geografia do cool” existe, mas precisa de se reproduzir. O nosso modelo de microcélulas culturais e criativas é resiliente, aguenta tudo, desde o desprezo do centralismo às gerências municipais pouco sofisticadas culturalmente, mas é débil em intensidade colaborativa, ocupadas que estão em lutar pela sobrevivência. ESMAE/IPP, Pólo da Reitoria U. Porto, Rivoli com perda de gás, Serralves, Casa da Música, Galeria da Biodiversidade/Jardim Botânico carecem ainda de uma visão comum para além da razão de existirem e justificarem o interesse de quem as visita. A U. Porto parece ter despertado (honra seja feita à criatividade da Professora Fátima Vieira e sua equipa) para essa visão, pelo menos quanto ao envolvimento das suas peças. Mas se para o Porto Innovation District até posso imaginar soluções de inovação isntitucional, já para a consumação do distrito cultural e criativo a minha imaginação parece bloqueada.

Intervir nestas dinâmicas pressupõe escolhas políticas e cívicas em torno de duas visões – Visão A (Competitividade e Internacionalização) e Visão B (o Porto na transição energético-climático- digital socialmente inclusiva). Não são Visões totalmente disjuntas, podem ter pontos comuns, mas claramente que os focos são diferentes e dessa diferença resultarão padrões de evolução muito diferenciados para a Baixa, em termos de morfologia, reabilitação, animação e recomposição social. Para além de que carecem de bases políticas e de cidadania ativa (inovação social) diferentes.

E é esta questão que fundamentalmente me interessa, tanto na pele do “flâneur” acidental e intermitente à procura de descobertas no mundo em que vivo, tanto na perspetiva do analista económico das transformações económicas. E certamente que outros livros e a interpretações sobre a Baixa virão.

Nesta minha revisitação intermitente da Cidade, mergulho frequentemente em novas referências bibliográficas, mas curiosamente regresso sempre aos “basics” e Jane Jacobs é seguramente um porto de abrigo para a minha curiosidade. Do “The Death and Life of Great American Cities” de 1961 fico com esta passagem, um verdadeiro porto de abrigo:

As cidades são um imenso laboratório de tentativa e erro, de fracasso e sucesso, na sua construção e no seu desenho. Este é o laboratório no qual o planeamento da cidade deveria estar a aprender e a formar e testar as suas teorias. Em vez disso, os que praticam e ensinam essa disciplina (se assim pode ser chamada) ignoraram do sucesso e do fracasso na vida real, não tiveram curiosidade pelas razões do sucesso inesperado e deixam-se guiar em vez disso pelos princípios derivados do comportamento e da aparências das cidades, subúrbios, sanatórios da tuberculose, feiras e imaginárias cidades de sonho – ou seja de tudo menos as próprias cidades”. Pag. 9 da edição de 1993 da Random House.

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